texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 16/12/2011
Poucos meses depois do início da presidência Obama, a revista Make trazia na capa uma proposta audaciosa: ReMake America (ou ReFaça a América). A página 1 estava ocupada por um manifesto que poderia ser transformado em programa de governo, ou receita para desenvolvimento econômico mais sustentável. Vale a pena citar algumas de suas recomendações, que foram divididas em cinco tópicos básicos: faça coisas; uso de energia; transporte; comida e água; aprendizado. Veja como não se trata de nenhuma utopia: “faça coisas que outras pessoas precisem”; “faça coisas para que você não precise comprá-las”; “crie um negócio que empregue pessoas que façam coisas”; “faça coisas mais perto do lugar onde vão ser usadas”; “conserte as coisas em vez de trocá-las”; “cultive sua própria comida”; “encoraje a curiosidade e o aprendizado autodirigido”; “aceite o fracasso – o fracasso é parte do aprendizado”.
Não consegui descobrir o número de leitores da Make. A revista foi fundada em 2005 e só lança quatro números por ano. Talvez sua face mais visível não seja a publicação em papel, nem o site, mas sim grandes encontros chamados Maker Faire. O primeiro deles, realizado perto de San Francisco em 2006, reuniu 20 mil pessoal. A Maker Faire de 2011 juntou 100 mil, e já há feiras semelhantes realizadas em outras cidades americanas e até africanas. Esse crescimento chamou a atenção da revista The Economist, que no início de dezembro publicou artigo com a seguinte declaração apoteótica: “o movimento ‘maker’ pode mudar como a ciência é ensinada e impulsionar a inovação. Ele pode mesmo anunciar uma nova revolução industrial.”
Criada por Dale Dougherty, um dos fundadores da empresa O’Reilly Media (que teve início nos anos 80 com a publicação pioneira de manuais de programas de computador), a Make tem como inspiração principal a estratégia descentralizada de produção dos softwares livres, incentivando sua aplicação para muito além da informática. Seu mandamento: produza com código aberto, de modo colaborativo. A revista está repleta de textos e fotos com passo a passo para a produção sem segredos de equipamentos como uma máquina de lavar roupas que funciona sem eletricidade ou uma impressora 3-D.
Comparado com o barroquismo da Adbusters, tudo na Make tem pinta de ciberpuritanismo. A Adbusters também poderia ser vista como mais europeia, com uma profusão de citações de filósofos franceses pós-Maio 68, e a Make como mais americana – no sentido mais pé-no-chão, e mesmo ingênuo (ingenuidade diferente daquela escorada em corpos sem órgãos deleuzianos), sem floreios intelectuais, que a cultura da América pode ter.
Pensando nessa dicotomia Europa/Améria, ou Adbusters/Make, paralizante ou empobrecedora, andei à procura de um pensamento que pudesse conectar os dois lados de forma original. Foi assim que me deparei com os últimos textos de Michael Ventura em “Cartas às 3 da madrugada”, coluna – primeiro no L.A Weekly e hoje no Austin Chronicle – publicada há 3 décadas. Sua crença: movimentos como o “maker” e o “Occupy Wall Street” são sinais sim do “fim do capitalismo e de sua reposição por um modo de comércio para o qual, ainda, não há um ‘ismo’.”
Michael Ventura é meu pensador americano favorito. Seu livro “Shadow dancing in the USA” tem lugar garantido na minha lista de melhores obras do século XX. Foi ali, nos anos 80, que me deparei com palavras que – entre muitas outras coisas – me fizeram perder os preconceitos, que certa filosofia europeia me vendera como chiques, contra shopping centers: “os jovens vão para tais lugares porque se sentir em casa na cacofonia de formas é o que eles mais desesperadamente precisam aprender, e eles não estão aprendendo isso na escola. Nós estamos profundamente mais desconfortáveis no mundo do que eles estão. O que procuram não é algo que saibamos como ensinar.” Claro: nada disso é enunciado com sofisticação desconstrucionista. Tudo é meio rasteiro (fiz a citação só para mostrar que ele não é anti-consumo como o pessoal também rasteiro – e isso não é crítica – da Adbusters), mas muitas vezes precisamos de um índio americano para nos revelar o que estava oculto “quando terá sido o óbvio”.
Esse mesmo livro termina com o artigo “Previsões: os próximos 200 anos”. Foi publicado em 1985, estamos ainda no início dos tais dois séculos, mas tudo que ali foi previsto praticamente já é passado: “a criação de um sistema econômico mundial”; “avanços na cibernética, biologia, pesquisa espacial e cerebral”; “fortalecimento dos povos mulatos, negros e amarelos”; “equalização de homem e mulher”. Só falta “a criação de uma nova cosmologia que substituirá o judeu-cristão-muçulmanismo”(anunciando a “exaustão” do extremismo de origem islâmica ele dizia: isso não é aparente agora pois só extremistas aparecem na mídia e não vemos os “milhões que só querem viver vidas normais” – os milhões representados pelo pessoal da praça Tahir?)
Nesse artigo, o que mais me impressionou não era uma previsão e sim uma constatação: “as crises de nosso mundo se expressam como crises políticas mas elas não têm solução política. Isso deixa bem louco todo mundo envolvido em suas resoluções. As únicas soluções possíveis são culturais, e soluções culturais não podem ser legisladas e geralmente elas não podem ser impostas. Soluções culturais evoluem. E as pessoas têm dificuldade de explicar como elas evoluem. O que é uma mera ideia num século vira instituição poderosa no próximo. É por isso que expressar ideias é tão importante. Nada acontece sem elas.” Eu digo: por isso é essencial ficar atento ao que a Make publica. As novas ideias, as mais poderosas delas, estão ali.
Tags: Make, Maker Faire, makezine, Michael Ventura, Shadow Dancing in The USA
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