texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/03/2012
Dama do Bling é o melhor nome de cantora já anunciado na face da Terra ou do YouTube. Na minha exaltada opinião, só é comparável a Tati Quebra-Barraco ou Poly Styrene. Mais incrível: ela é moçambicana e sua música é fenomenal. Fico – eu que tenho a pretensão de estar em dia com novidades pop lusófono – envergonhado de confessar que só ouvi sua voz pela primeira vez há poucos dias. E por caminho tortuoso, em matéria do MTV Iggy sobre a extrema vitalidade do rap na Nigéria. O texto, sem dar importância à informação, lá numa dada hora, dizia que Sasha P, primeira dama do hip hop local, havia gravado com uma tal Dama do Bling. Meu alarme de curiosidades pós-modernas tocou com vibração máxima. Epa! Que venerável dama é essa? Como pode haver alguém no mundo com esse nome vitoriano/kraftwerkiano sem que eu tenha sido avisado?
No YouTube encontrei o clipe (produzido pela Bang Entretenimento e “direcionado pelo DJ Marcell, o melhor da África Austral”) da “Dança do remexe”, de quatro anos atrás. Era prova que eu e o Brasil estamos totalmente desatualizados: poderia ter sido hit por aqui tão poderoso quanto “Dança kuduro”, de Daddy Kall e Latino. A primeira imagem é daquele tipo chamado de “money shot” pelo business de Hollywood, filmada para fazer o queixo do público cair provando orçamento farto. Um helicóptero pousa e é recebido por uma frota Mercedes-Benz. Logo aparece a Dama do Bling rebolando com figurino, cabelo e maquiagem de Nicki Minaj (não sabe quem é? foi homenageada até com uma Barbie com a cara dela), antes de Nicki Minaj fazer sucesso. Gosto até da letra: “vamos juntos fazer o chão saltar/ Dama vai, dança, requebra, não sossega/ fecha os olhos como se fosse cabra cega”.
Tive a honra de, em 1997, ter visto o primeiro show de rap realizado em Maputo, mais precisamente no Centro Cultural Franco-Moçambicano, situado na Praça da Independência, esquina com avenida Samora Machel, a meio caminho entre as avenidas Karl Marx e Vladimir Lênin (o registro da noitada histórica faz parte do documentário Além-Mar). O que mais me impressionou, ao olhar o público vestido de Wu-Wear (marca de roupa do coletivo Wu-Tang Clan) foi constatar a velocidade da “alfabetização” da juventude local na linguagem do rap dos EUA, país que era considerado vilão número 1 pelos governos comunistas que sucederam os colonizadores portugueses. Vários garotos que entrevistei ainda tinham lembrança vívida do tempo em que até o uso de jeans era crime ideológico punido com reeducação em Niassa, a Sibéria escaldante nacional.
Esse show aconteceu antes da popularização da internet (lembro que a internet comercial brasileira só apareceu em 1995). Hoje conexões por computadores e celulares tornam possível a formação de cena de hip hop continental, como provam as parcerias da Dama do Bling com a nigeriana Sasha P (música excelente, vídeo sensacional – repare nos efeitos especiais de luta) ou a queniana Yvonne. Essa música eletrônica pan-africana já está pronta para fazer sucesso no resto do planeta. O jornal The Guardian decretou que o rap afro-híbrido é “o novo som do underground britânico” ou “a cena mais quente hoje no Reino Unido”. O DJ Abrantee deu nome para a moda: afrobeats, com s para diferenciá-lo do afrobeat de Fela Kuti e outros avós dos rappers de Lagos.
Além dos elogios sempre suspeitos dos trend hunters ingleses, há sinais mais fortes de alavancagem comercial da turma da Dama do Bling. Exemplos eloquentes: Kanye West contratou o nigeriano D’Banj – autor de Oliver Twist, o hit dançante mais divertido de 2012? – para seu selo G.O.O.D. Akon assinou com Sarkodie, de Gana. Para a geração de Fela, Franco e Ladysmith Black Mambazo, esse reconhecimento mundial demorou décadas. Hoje, a internet tornou tudo praticamente instantâneo, sem precisar da grande mídia ou das grandes gravadoras para fazer a informação circular. Agora são os “grandes” que correm atrás dos “pequenos”, e cenas culturais surpreendentes nascem – muitas vezes se beneficiando daquilo que os grandes chamam de pirataria – em todos (e entre todos) os continentes.
Há cenas que praticamente só existem na internet e nas ruas/pistas de dança, sem mediação da mídia tradicional. Veja este domingo, no Esquenta!, o MC Nego Blue acompanhado pela banda do DJ Marlboro. Nego Blue me era tão desconhecido quanto a Dama do Bling. Quem me chamou a atenção para sua música foi Renato Barreiros, que trabalhou como pesquisador nesta temporada do Esquenta! e antes teve papel importante na evolução da versão paulistana do funk carioca quando fazia parte da equipe da subprefeitura da Cidade Tiradentes, extremo leste da cidade de São Paulo. Naquele período pioneiro o poder público, ao contrário do que aconteceu no Rio, soube dialogar com o novo ritmo. Renato combateu os preconceitos dos outros políticos e organizou festivais oficiais. Quem diria: o funk carioca é hoje o som da periferia paulistana, com sotaque local.
Pena: notícias recentes mostram que a polícia chega agora nos bailes já detonando bombas de efeito moral. Tal atitude pode empurrar tudo para a marginalidade. Perde-se assim enorme oportunidade de aproximação com a nova cultura jovem. Nomes como MC Nego Blue, MC Dedê e MC Boy do Charme têm clipes com vários milhões de views no YouTube e agendas lotadas de shows já em vários estados brasileiros. O poder público não aprende com seus próprios erros e acertos. Funk vai voltar a ser sempre assunto para a secretaria de segurança, desprezado pela “cultura”?