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além do Ocidente

28/07/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27/07/2012

Ernesto Neto, ao montar exposição na França, foi surpreendido pela pergunta de uma finlandesa, que fazia pesquisa universitária sobre arte brasileira: “como se sente trabalhando no Ocidente?” Assim descobriu que o Brasil não era considerado país ocidental. Também me lembro da minha descoberta da nossa existência fora do Ocidente. Era 1989, tinha acabado de voltar da África, onde ouvira as pessoas dizendo “lá no Ocidente”, como terra distante. Pensei: nunca usamos essa expressão no Brasil; isso deve ser sinal de que não questionamos nosso lugar no mundo, imaginado bem no meio da civilização ocidental. Então, abri a revista francesa Art Press e encontrei artigo que reunia entrevistas com cinco artistas não-ocidentais. Um deles era Cildo Meireles. Foi um terromoto identitário. Como ninguém tinha me ensinado essa lição na escola?

Confesso que fiquei revoltado. O artigo da Art Press era parte de dossiê sobre a exposição “Les magiciens de la terre”, hoje mítica por ter aberto as portas do mercado de arte ocidental para artistas do “resto do mundo”. Cheguei a escrever textos desnecessariamente agressivos contra Jean-Hubert Martin, curador da exposição, que hoje me parece gente boa. Não era ressentimento por ter sido expulso de uma suposta sala vip das civilizações. Ficara incomodado com uma declaração de Martin: “não encontramos em todos os países onde fomos objetos que pudessem figurar na exposição. Na América do Sul, notadamente, fora o Brasil, tivemos decepções pois encontramos artistas situados num sistema idêntico ao sistema da arte ocidental, com galerias, museus etc. E as produções desses artistas nos pareceram dependentes de nossos grandes centros, quando o que procurávamos era uma outra coisa – coisas que pudessem renovar o olhar, renovar o interesse.” Aquilo me soou como ordem: para expor nos “nossos grandes centros” (aqui no Ocidente), vocês precisam ser exóticos, diferentes. Em outras palavras: teríamos que fazer macumba para turista curador.

A reação do Ernesto Neto, diante da pergunta da finlandesa, foi bem mais bacana. Ele passou a questionar seus amigos europeus. “Pode me dizer, com sinceridade: o Brasil é um país ocidental?” Muitos de seus interlocutores nunca tinham imaginado que isso pudesse ser uma dúvida: “claro que o Brasil não é Ocidente!” Ernesto foi se alegrando com as respostas, mesmo quando denunciavam preconceitos e clichês (“vocês são sensuais”). Aquilo se transformou em libertação, até virar convicção (e frase que apareceu em sua exposição “Dengo”): “não somos ocidentais – que ótimo!”

Seu “que ótimo!” não é crítico, não está cuspindo no prato onde comeu. A civilização ocidental foi mesmo uma obra prima da Humanidade (apesar do que trouxe de tragédia para o mundo), mas demonstra sinais evidentes de cansaço, de que já teve seus 15 minutos de fama imperial. Ela nos deu a régua e o compasso – euclidianos e não-euclidianos – para construirmos outras civilizações. Devemos ser dignos de seus melhores ensinamentos. Não podemos ser otários para insistir em seus impasses.

Então: virar país desenvolvido não é chegar ao lugar onde o Ocidente está (o Ocidente não precisa nos absorver; sua salvação não virá com mais do mesmo). Temos esta missão impossível: propor para o mundo outra ideia de desenvolvimento, ou de arte (e criatividade). Do lado de fora do Ocidente, podemos olhar com igual interesse para outras civilizações, e aprender com todas elas. Não estou sendo relativista, dizendo que tudo se equivale. Em todas as civilizações houve o bom e o ruim. Quero o bom, misturar o melhor de todos os lugares.

Quando pratico ioga, cada célula do meu corpo agradece a invenção da civilização indiana – e o fato de podermos hoje exercitar todas aquelas posturas sem precisar ter vivido com sistema de castas. Quando tomo uma pho, sopa vietnamita, venero o trabalho secular, colaborativo e anônimo da culinária chinesa, e sinto alívio por poder saborear alimento tão sofisticado sem ter vivenciado as guerras que espalharam a cultura do Império do Centro pela Ásia. Quando leio “Línguas indígenas – memórias de uma pesquisa infinda”, excelente coletânea de artigos de Yonne de Freitas Leite sobre alguns dos mais de 200 idiomas que existem no Brasil, eu fico encantado com as múltiplas possibilidades de expressão criadas aqui neste nosso canto no planeta, mas isso não me traz nostalgia da antropofagia não cultural. Repito: quero o melhor disso tudo junto, e não acho que estou querendo demais.

Posso ser ingênuo, ou otimista exagerado, mas continuo acreditando piamente que existe algo no Brasil que nos torna mais capazes de enfrentar o desafio da mistura. Houve e há aqui, por exemplo, o encontro entre duas tecnologias do êxtase: o xamanismo indígena (a alma viaja para o mundo dos espíritos) e a possessão africana (o espírito se manifesta neste mundo). A convivência íntima entre essas visões de mundo incompatíveis pode nos dar jogo de cintura metafísico (e criativo) realmente espantoso. Nosso destino é ser onça. O início de nossa história do futuro está escrito em “Meu tio, o Iauaretê” de Guimarães Rosa: mestiço que vira índio e vira onça e termina com nome africano, dando o bote, no ar, para tudo ficar bom-bonito. Só temos que dar um jeito de escapar do tiro. Escapando poderemos copiar Gil. Ele disse: “para mim raiz só de mandioca.” Diremos: “Ocidente é só um bar de Porto Alegre que serve comida Hare Krishna.”

pessoas e conteúdos

21/07/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 20/07/2012

Já passou o bombardeio literário? Fico sempre bem impressionado com a repercussão da FLIP na imprensa. É um dos poucos eventos culturais – junto com as Fashion Weeks e o Rock in Rio – que sai dos segundos para os primeiros cadernos, disputando espaço e urgência editorial com as notícias mais importantes do dia. Considero divertido encontrar Jennifer Egan e Teju Cole, ou Carlito Azevedo homenageando Carlos Drummond de Andrade, entre inauguração pré-sal de Dilma Rousseff ou reunião de Angela Merkel para conter a crise do Euro.

Esse acompanhamento “em cima da hora” das palestras é antecedido, durante meses a fio, por muitas entrevistas exclusivas com convidados. Os anúncios das confirmações de cada escritor também ganham as manchetes. Até hoje, uma busca pelo meu nome na internet vai encontrar entre os primeiros resultados, e repetido em centenas de sites, o press-release da minha participação, em mesa secundária, na FLIP 2010. É a união entre trabalho de assessoria de imprensa impecável com receptividade extraordinária por parte dos jornalistas.

Amor eterno enquanto dura? Neste ano de 2012, notei um esfriamento no namoro FLIP-imprensa, que por pouco não virou momento tenso para discutir a relação. A participação de várias estrelas literárias foi descrita como “morna” ou “pálida”. Só me acalmei quando a Folha de S. Paulo decretou que a edição foi salva “aos 45 do 2º tempo”. O jornal reatou o romance com manchete bem assanhadinha na sua geralmente sisuda primeira página: “Com debates divertidos, Flip empolga no último dia”. (Vinha logo abaixo de “Novo presidente do Egito restaura Parlamento”.)

Divertido? Empolga? Fique tranquilo, não vou passar aqui sermão em jornalista e público que vão a encontros literários em busca de entretenimento. Não vou esbravejar contra a “lógica do consumo” que tomou conta da cobertura e da atitude da plateia mesmo em eventos de Alta Cultura. Sou contraditório (esse é meu bordão): gosto de Guy Debord e também do espetáculo. Porém, preciso defender com unhas e dentes o nosso direito ao morno, ao pálido, e – radicalizando – ao chato. Alguns dos espetáculos mais marcantes da minha vida, ou alguns livros que mais amei, foram de uma chatice avassaladora – e só atravessando vastos desertos de tédio (pois sou muito disciplinado) consegui perceber suas belezas. Se a chamada Alta Cultura perder essa permissão de nos entediar, muitas obras primas da Humanidade deixarão de ser criadas.

Também preciso defender os escritores malas. É muita crueldade exigir que, além de escrever bem, tenham talento para divertir ou esquentar plateias impacientes, com déficit de atenção ou com hiperatividade só controlada com muita ritalina. Ficou chato, não está a fim de enfrentar a chatice? Navegue pela internet do seu smartphone, mas mantenha um ouvido ligado no palco: quem sabe daqui a vinte minutos o escritor morno não solte uma frase brilhante de poucos caracteres e perfeitamente retuitável?

Sempre que participo de palestras, penso em Elizabeth Costello, personagem ranzinza de J. M. Coetzee. Suas falas públicas são desastrosas. Mesmo seu filho admite: “Não é o métier dela, a argumentação. Ela não deveria estar ali.” Mas os convites continuam, até para participar de ciclos de debates em cruzeiros marítimos. É uma escritora famosa e o mundo tem uma quantidade assombrosa e crescente de feiras literáriase eventos de “pensamento”, criando um mercado enorme que precisa ser alimentado com mais e mais atrações. O escritor aceita os convites insistentes. Dizer não a todos eles seria tão difícil quanto – para usar lugar comum em artigos sobre a FLIP – andar de salto alto nas ruas de Paraty. (Antônio Prata sugeriu, em coluna na Folha, que escritores emburrados, blasés e que não respondem “educadamente às perguntas que lhes fazem” deveriam ser tragados por um alçapão. Recomendo a mesma punição para algumas plateias, que poderiam procurar diversão alhures. Estou em dia raro de defesa de poderosos e eruditos: os escritores também voaram meio mundo, e o público muitas vezes os recebe com perguntas imbecis, que tiram qualquer um do sério. Cito novamente o filho da Elizabeth Costello: “palestras públicas atraem malucos e pirados como um cadáver atrai moscas.”)

Mesmo assim, com tanta demanda, talvez as Elizabeths Costellos do mundo (e esse tipo de maluco) tenham seus dias contados. Eventos tipo TED já nos acostumaram com conferências de 10 minutos todas embaladas por imagens velozes no power point e performances impecáveis/ensaiadas de palestrante transformado em show-man, com tiradas bem-humoradas, indignadas ou politicamente incorretas (é isso que esquenta o público) emitidas com timing perfeito. Ler demora, é chato: o grande público quer um resumo divertido.

Ou quer apenas um ponto de encontro badalado, para ver e ser visto, e depois ter assunto para comentar no Facebook. O Facebook parece ser destino e modelo para tudo (é o condomínio fechado que engoliu a cidade). Como bem identificou meu amigo José Marcelo Zacchi, hoje diretor do IETS (e uma das pessoas que mais gosto de copiar): essa rede social se tornou tão poderosa por apostar que a desculpa para interagir (FLIP, show de pagode etc.) é secundária. O que o povo quer é interação. A rede de pessoas toma o lugar da rede dos conteúdos – o que pode ser frustrante pra quem gosta de conteúdo, “mas é inegavelmente humano até o fim.”

Rio Londres

14/07/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13/07/2012

O Rio precisa ficar de olho em Londres. Claro, são cidades muito diferentes. Porém, como os Racionais cantam, periferia é periferia em qualquer lugar. Concordo, e acrescento: cidade é cidade em qualquer lugar. Todos os centros urbanos apresentam dinâmicas semelhantes, resultados da concentração de muita gente e muitos recursos (ou da falta deles) em pouco espaço geográfico. Hoje, são quase entidades com vida independente de seus países. Portanto, cada vez mais, qualquer cidade pode aprender com as experiências das outras, sobretudo quando passam por teste limite como a realização das Olimpíadas. Tudo que Londres fez e fará, antes e depois dos jogos, nos serve de lição. Olhando para o que ocorre lá, podemos pensar, não com muita calma: por que mesmo nos metemos nisso?

A revista The Economist, em “special report” sobre Londres, revela que a cidade justificou a aventura olímpica afirmando que os jogos revitalizariam uma de suas áreas mais pobres, em seu extremo leste, onde foram construídos muitos dos equipamentos a serem usados pelos atletas. É um mega do-in antropológico, com britadeiras. Veremos no que vai dar. Já é possível perceber algo do resultado, até porque a escolha do leste não foi arbitrária e sim aproveitou tendência que já transformava a cidade. Ninguém sabe direito explicar a razão para Londres, que perdeu um quarto de sua população desde a Segunda Guerra até os anos 1980, ter voltado a crescer na década seguinte.

Nesse novo crescimento, a arte atuou como vanguarda urbanística. Shoreditch, bairro então apagado no calendário cultural (a não ser para interessados na culinária de Bangladesh da rua Brick Lane – ou na padaria de bagel, da mesma rua, que foi locação exótica para fotografias de moda da saudosa revista The Face), virou destino cheio de hype. Atrás de aluguéis baratos, artistas se mudaram para seus arredores. Damien Hirst, sempre ele (não resisto e cito novamente a The Economist, que apresenta Hirst como “o gênio comercial que inventou a Brit Art”), foi pioneiro no estabelecimento de ateliê em Hoxton, bairro vizinho. Logo outros artistas vieram lhe fazer companhia – e até a galeria White Cube abriu instalações na Hoxton Square.

Artista atrai comércio bacaninha (como a loja de discos Rough Trade), bares, clubes noturnos – e isso atrai gente rica querendo dar uma volta no “wild side” criativo. Resultado: quase em frente ao centro cultural Rich Mix (onde hoje à noite acontece o evento Rio Occupation East, com artista cariocas), está sendo construída a Avant-garde Tower. Seu outdoor é explícito: “viva na torre residencial mais cool de Shoreditch”. Consequência: custo de vida mais caro, e nova migração de artistas, primeiro para Dalston, e até para Stratford, bairro que abriga o parque olímpico. E já insatisfação nostálgica, como a da revista Dazed and Confused, que este ano publicou capa com a pergunta “Is East London dead?” (todas essas citações são maneiras de declarar meu amor resistente por revistas de papel).

Não foi a primeira carona que a prefeitura de Londres e o governo britânico pegaram nessa recente etapa do nomadismo do cool, antecipando algo que talvez fosse acontecer “naturalmente” (a ocupação do lado leste pobre da cidade). O renascimento artístico de Shoreditch (local onde Shakespeare montou vários espetáculos, antes de se mudar para o Globe) já tinha sido aproveitado para programa muito esperto: a criação do Silicon Roundabout, com incentivo para estabelecimento de empresas de informática e novas mídias bem ao leste do centro londrino. É uma tentativa muito consciente de dar origem a um Vale do Silício inglês.

Parece que está dando certo. Há poucas semanas, participei do Digital Shoreditch, um seminário estilo pós-TED, que tem por objetivo estabelecer parcerias entre as empresas locais, divulgando seus trabalhos para fora. Fiquei impressionado com a diversidade de ideias: do futuro do entretenimento dentro de aviões até algo chamado “arquitetura 3.0”. Mesmo que termos como transmídia ou cross-plataforma tenham saído de moda, no fundo era disso (do encontro de nossas novas telas em breve totalmente geolocalizadas e “game-ficadas”) que todos falavam. Ainda vamos consumir muita coisa criaa por ali. Como o movimento “The new aesthetic”, fronteira final (até que apareça a próxima) da arte contemporânea, criação típica do novo leste londrino: um de seus QGs é o escritório do coletivo de design Really Interesting Group, do qual faz parte o guru tumblreiro James Bridle.

Na plateia interativa, fiquei com vontade de impressionar a todos com o “case” do vídeo das empreguetes em “Cheias de charme”, talvez a experiência transmídia mais popular já realizada no mundo. Seria referência “diferenciada” demais para quem vive em ambiente de vanguarda (a tv de massa pode ser mais vanguarda que a vanguarda?). Fiquei calado, confiante no talento carioca para mídia e comunicação. De volta ao Rio, tento descobrir se existe algum projeto ousado para também transformar nossa cidade em pólo de criação para o futuro certamente digital da humanidade (precisamos deixar de ser apenas consumidores vorazes de apps, redes sociais e interfaces corpos-máquinas). Alguma notícia? E o nosso Leste? Cais do Porto Maravilha? Santo Cristo? São Cristóvão? Barra? Será? Vamos fazer nossas Olimpíadas, isso é certo. Como aproveitar melhor oportunidade tão espetacular? Repito, mais específico e óbvio: é bom ficar de olho nos bastidores da festa londrina.

longe daqui – aqui mesmo

07/07/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06/07/2012

Quando me mudei para o Rio, em 1977, o Teatro Ipanema já era referência. Não peguei seus tempos heroicos, quando se transformou da casa de Rubens Corrêa em palco com linha estética vigorosa. Mas foi ali que vi alguns dos espetáculos mais marcantes: da estreia da “Página do relâmpago elétrico”, de Beto Guedes, a várias apresentações de “Aquela coisa toda”, do Asdrúbal Trouxe o Trombone. Era uma programação eclética, de “abertura”, espécie de pré-comemoração do final dos anos controlados pela Censura Federal. Só aos poucos fui entendendo a história daquele teatro. E assim, na minha arqueologia artística carioca, sempre acabava me deparando com os tempos em que, “todos os dias”, “todo mundo” via “Hoje é dia de rock”.

Essa peça de José Vicente era bem mais que fenômeno teatral: virou rito geracional, símbolo de época que descobria as viagens contraculturais mesmo sob tortura. Não dava para entender direito como aquele colorido manifesto de resistência hippie se manteve em cartaz com tanto sucesso em anos de chumbo. Eu me sentia como alguém que chegara atrasado numa festa estranha com gente esquisita: “Hoje é dia de rock” ficou envolto por anos na nebulosidade que cerca mitos distantes.

Semana passada, no reinaugurado Teatro Ipanema, o Asdrúbal Trouxe o Trombone (numa raríssima e emocionante reunião de todos seus componentes) me apresentou o texto da peça, livre de meus devaneios. Foi como se várias etapas da minha vida, e da cultura brasileira, estivessem remixadas num mesmo palco, que nos transportou não para o Rock in Rio, mas para aldeia de Minas Gerais. Viagem surpreendente. Regina Casé, lendo as falas da personagem Isabel, afirmou – com tom de inocente autoestima – algo assim: “quem nasce aqui só pode ser caipira”. Lembrei do Esquenta! que foi ao ar no domingo de São João, quando fizemos homenagem ao novo interior pós-caipira do Brasil, agora motor econômico nacional. Longo caminho desde “Hoje é dia de rock”, início dos anos 1970, quando o país se descobria pós-rural, pós-grotões: hoje também nos redescobrimos modernos, cosmopolitas – mas ainda temos um pé na roça (mesmo uma roça que ouve Elvis pelo rádio, ou Alabama Shakes pela internet), e podemos até cultivar a nostalgia de uma pureza doidona perdida.

Antonio Bivar, em “Longe daqui aqui mesmo”, seu delicioso livro de memórias (que traz o mesmo título de sua peça que estreou um pouco antes de “Hoje é dia de rock”), lembra o ambiente dos ensaios: “enquanto o elenco de “Longe daqui” representava uma comunidade, o de “Hoje é dia” podia se dar ao luxo de viver a experiência comunitária. E, fazendo esse laboratório, viajavam em grupo para Parati e às montanhas, a cata de uma aproximação maior entre eles, e eles e a natureza, tanto no sentido humano quanto no sentido cósmico. O elenco de “Hoje em dia” era mais aristocrático, o de “Longe daqui” mais pop. “Hoje em dia” em Ipanema, “Longe daqui” em Copacabana.” Ando cada vez mais fascinado por esse momento do Rio, quando a cidade vivia ebulição criativa inigualável, apesar de regime político medonho.

Em Brasília, um casal de censores disse pessoalmente para Bivar que não liberaria “Longe daqui”: “a peça é pornográfica e atenta contra a moral e os bons costumes, além de passar uma mensagem pessimista.” Para tentar a liberação com outro censor, seguiu a recomendação de Odete Lara para ser bem charmoso: “Telefono à recepção pedindo que me providenciem um secador. Lavo os cabelos, seco-os com o secador, agito-o com os dedos e pronto. Tipo Gal Costa.” Mesmo assim teve que mudar o final da peça, “com todo mundo se arrependendo da liberdade”. Incrível, parece uma viagem coletiva – censores e censurados – de ácido que, paradoxalmente, acabou produzindo muito daquilo que houve de mais consistente e experimental na cultura brasileira.

Recentemente, André Midani me presenteou com a audição de material nunca lançado do festival Phono 73. Só maluco beleza, inclusive Raul Seixas, em seus momentos de mais esplendorosa ousadia sonora, mesmo com a Censura ali colada, cortando os microfones de Gil e Chico em Cálice. Essa peculiar conjunção de repressão política com liberdade criativa ainda precisa de estudo aprofundado.

Em outro livro de memórias, “Verdes vales do fim do mundo”, Bivar descreve muitos detalhes do cotidiano dos brasileiros em seu exílio – mais ou menos imposto ou voluntário – londrino. Gil, Caetano, Dedé, Sandra, Sganzerla, Helena Ignês, Hélio Oiticica, Jorge Mautner, Zé Vicente, Cláudio Prado, Bressane, Peticov, Péricles Cavalcanti, Haroldo de Campos e tantos outros, mandando brasa. Incrível que Londres não tenha aproveitado a presença brasileira e só agora comece a se dar conta do que perdeu. Havia uma incompatibilidade entre as experiências aqui e lá. Como escreveu Isabel Câmara, outra grande dramaturga, na época: “Não aceitamos o the dream is over de John Lennon porque nosso sonho sequer começou. […] E ainda, sim, estou viva, apesar do horror. A travessia do deserto ainda salvará muitos de nós. Tudo está começando. É tocar o barco.”

Deixo de lado a nostalgia. Muita gente continua tocando o barco do sonho carioca. Tudo que, por exemplo, Ernesto Neto faz ou promove me parece confirmação de que hoje continua a ser dia de nosso rock. Por sinal, sua exposição “Não tenha medo do seu corpo”, abre terça-feira em São Paulo, depois de uma festiva “instabilidade existencial” em ateliê do Centro do Rio.


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