texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 14/12/2012
Philip K. Dick, o autor literário com maior influência no ciberimaginário do século XXI, teve intensa experiência religiosa em 20 de fevereiro de 1974. Um raio cor-de-rosa o atingiu, transmitindo vasta quantidade de informação diretamente para sua mente. A Califórnia ao redor se revelou alucinação produzida por nossos algozes, agentes do Mal. PKD descobriu que ainda vivemos no Império Romano dos primeiros anos da era cristã. Isso resolvia um problema teológico central para o cristianismo. Jesus nos anunciou para breve a chegada do Reino de Deus, acabando com tudo de ruim que existe na Terra. Por que a demora da chegada do paraíso? Resposta do raio cor-de-rosa: a passagem do tempo, de lá para cá, é ilusão/prisão. Estamos ainda no Coliseu, jogados aos leões.
Sou otimista. Contra PKD acredito, com a ajuda de raios de Zeus: vivemos na Grécia (a antiga, não a atual da crise do Euro). Simplificando, ao modo gnóstico de PKD (sem levar em conta os ensinamentos de Paul Veyne ou Lucien Jephargnon): Roma teria nos ensinado o Império, o circo dos gladiadores e as catacumbas (sim, com a “Arte de amar” de Ovídio, mas esse é o outro lado de sua face sombria). A Grécia teria nos ensinado a democracia e o “conhece-te a ti mesmo” (sim, com a cicuta de Sócrates, mas esse é o outro lado de sua face iluminada). Encontro sinais contemporâneos da criatividade grega o tempo todo. Até em acontecimentos óbvios.
Neste verão, no quintal de uma casa de Ipanema (a Laura Alvim), podemos – bem queimados apenas pelos raios de sol da praia – ter contato direto com essa Grécia fundamental na bela encenação da “Oréstia”, trilogia de tragédias de Ésquilo (em cartaz até 27 de janeiro). Tudo no palco é – simultaneamente – junto e misturado, antigo e contemporâneo, ateniense e carioca, simples e sofisticado, embaralhando eras históricas aparentemente distantes, servindo de canal de transmissão para a mais potente poesia trágica, vinda lá do nascedouro do teatro.
Este ano ainda vi a “Antígona” do National Theatre, em Londres. Lá havia também a tentativa, com forte impacto cênico, de conectar o passado ao presente. Por exemplo, tudo começava no moderno palácio de Creonte, com equipe do rei reunida em momento de tensão, repetindo a imagem de Obama e companhia na Casa Branca conferindo on-line a morte de Osama. Nada contra essa estratégia estética de choque. Funciona igualmente. Entretanto, prefiro a sutileza da “Oréstia” carioca, onde – sem estranharmos mesmo o uso constante de microfones em cena, e de guitarras elétricas na trilha sonora – nos sentimos contemporâneos da pitonisa de Delfos. Gosto especialmente de ter o coro sempre presente, vários atores falando os mesmos versos ao mesmo tempo, e muitas vezes cantando, como os gregos faziam e ainda podemos fazer (claro que tudo fica mais bonito com as melodias que Rômulo Fróes e Cacá Machado fizeram para o espetáculo concebido por Malu Galli).
Karen Armstrong, no livro “A grande transformação”, diz que a “Oréstia” aborda o momento de invenção da democracia em Atenas, com a transição nada tranquila do caos tribal e da vendeta para uma “ordem relativa”, que incluía também a criação dos primeiros tribunais (seus debates eram “rudes e agressivos”, e “um julgamento era essencialmente batalha entre acusados e acusadores”). A trilogia termina com as deusas da vingança ganhando santuário na cidade. Era preciso “incorporar esse fardo doloroso, aceitá-lo, honrá-lo no coração sagrado da pólis e transformá-lo numa força benéfica.”
Boa coincidência: ver “Oréstia” no momento dos julgamentos do STF, que (pego carona bem livre em pensamento de José Marcelo Zacchi) ritualiza também sacolejo recente no judiciário brasileiro, o último dos três poderes a ser repaginado pelos ventos democráticos. Lição de Ésquilo: precisamos mirar sempre no exemplo daqueles atenienses. Eles já sabiam que democracia é um jogo onde o “ethos da força bruta” nunca é inteiramente domado. A virtude maior, para todos os “partidos”, é a moderação.
Antes da “Oréstia” em Ipanema, é bom saber que podemos assistir a outra trilogia formada pelos filmes “Electra”, “As troianas” e “Iphigenia” (a origem dos problemas de “Orestéia”) do diretor grego Michael Cacoyannis, recém-lançada em DVD no Brasil. Recomendo também o livro “A small greek world”, de Irad Malkin, para mim a maior revelação entre leituras de 2012. Malkin dá pistas novas para a explicação da atualidade renovada dos gregos antigos. Ao contrário dos romanos, centralizadores, a civilização grega (nenhuma cidade mandava em todas as outras [e algumas colônias eram tão importantes economica e culturalmente quanto suas metrópoles], e seu mapa – ao contrário do que mostra a maioria dos livros didáticos – não se resumia ao Mar Egeu) sabia que “o que apaga diferenças e consolida identidade não é a proximidade e a permanência, mas sim movimento, distância e conectividade.” Por isso, por incrível que pareça (e aqui vai meu mais improvável otimismo), tem mais a ver com o melhor de nossa realidade atual, fundamentada nos links da internet, do que o Império Romano de Philip K. Dick.
Tags: Ésquilo, Irad Malkin, Karen Armstrong, Michael Cacoyannis, Oréstia, Philip K. Dick
11/02/2018 às 19:11
[…] de 2017 foi “Íon”, de Eurípedes. Conheço pouca coisa sobre tragédias gregas. Vi e li várias, para tentar ter contato mais próximo com aquele pessoal que estava formatando o sistema […]
22/06/2020 às 20:59
[…] sua voz nos fones. Foi assim, que descobri, por exemplo, que faço aniversário no dia em que a Oréstia foi encenada pela primeira vez. Isso deve explicar algumas de minhas maluquices cognitivas. Mas de […]