anjo moreno

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/12/2012

No domingo passado Sandra de Sá cantou “Olhos coloridos” no “Esquenta!” (sou um dos criadores desse programa). A canção, lançada em 1982, é cada vez mais atual. Paradoxalmente, pode também ser considerada datada. Sua letra diz: “a verdade é que você tem sangue crioulo”. O coro confirma enfático: “todo brasileiro tem!” Poderia ser hino de orgulho negro. O problema é que a palavra “crioulo”, para muitos ouvidos, é hoje classificada como xingamento. Além disso, ficamos sem saber se “Olhos coloridos” (com refrão “sarará-crioulo”) elogia a negritude ou a mestiçagem, ou mesmo equipara mestiçagem a negritude. Talvez, seu interesse mais atual resida nessa ambiguidade.

Regina Casé, antes de pedir para Sandra de Sá cantar essa música, fez o elogio de Barack Obama. A conexão, bem óbvia, foi ideia minha. Lembrei dois episódios do primeiro governo Obama, também carregados de intrigantes ambiguidades, confundindo categorias raciais e trazendo novamente para o discurso político palavras que muita gente gostaria de ver eternamente silenciadas. Regina falou o essencial no “Esquenta!”, aqui vai meu complemento.

Logo na primeira conferência de imprensa, antes da posse, Obama precisou abordar “questão de suma importância”: a escolha do cachorro que suas filhas levariam para a Casa Branca. Dois aspectos principais teriam que ser levados em consideração: o animal seria hipoalergênico (pois Malia, uma de suas filhas, é alérgica) e preferencialmente viria de “abrigo”. Nesse momento da entrevista, Obama lançou, como algo desimportante, comentário muito retuitado: sua família não estaria procurando uma raça específica, e o primeiro-cão poderia até ser “um ‘mutt’ como eu”. “Mutt” quer dizer vira-lata. “Primeiro presidente negro” soa imponente historicamente. Mas “primeiro presidente vira-lata”?

“Mutt” é termo ainda moderado, apesar de poder também ser traduzido como “estúpido”. Obama foi além, caindo em território racialmente mais “incorreto”. Na primeira entrevista que um presidente dos EUA concedeu para talk show matutino (o “The View”, da rede ABC, em 2010), Barbara Walters lhe lançou a seguinte provocação: por que se chama de negro e não de birracial (já que filho de negro com branca)? A resposta começou se referindo à “crise de identidade” vivida durante a juventude: “você sabe, parte do que compreendi foi que o mundo me via como afro-americano e isso não era algo do qual eu deveria fugir. Era algo que eu deveria chegar junto e abraçar.” Inesperadamente completou o raciocínio de forma perigosa: “E a coisa interessante sobre a experiência afro-americana neste país é que nós somos um tipo de povo ‘mongrel’. Quero dizer, somos todos meio misturados.”

Pronto, falou a palavra proibida. Talvez estivesse pensando novamente em “mutt”, mas saiu “mongrel”. Os dois vocábulos querem dizer a mesma coisa: “de raças misturadas”. Mas “mutt” tem ainda conotações fofas – “mongrel” é quase palavrão. Whoopi Goldberg, também no programa como entrevistadora, logo mandou um “yeah” de aprovação. Outros negros ficaram indignados. Glen Ford, editor executivo do site Black Agenda Report (“notícias, comentários e análises da esquerda negra”), chegou a falar em crime, afirmando que “mongrel” é um epíteto racial politicamente mais carregado do que “nigger”. Ninguém ligou muito para o complemento da fala de Obama, que expressava visão nova do ser humano como essencialmente mestiço: “Agora, isso é mesmo verdadeiro para a América branca também, mas nós [afro-americanos] sabemos mais sobre isso.”

Uma correção: a visão é nova para os americanos dos EUA. Nós, aqui, no Brasil, temos uma longa tradição de pensar positivamente a mestiçagem, chegando até ao orgulho de nossa condição crioula. Obama, em sua entrevista para o programa da ABC apenas repetiu a letra de “Olhos coloridos” ou remixou tese de Gilberto Freyre. Não devemos nos enganar pensando que era mais fácil combater o preconceito antimestiço em 1933, quando “Casa Grande e Senzala” foi lançado. Naquela época o pensamento dominante condenava a mistura racial como degeneração biológica. Porém, mesmo sem essa base “científica”, a reação contra a fala “mongrel” de Obama nos revela como ainda causa espanto a afirmação de nossa mistura essencial.

No Esquenta! que vai ao ar depois de amanhã, Regina e Fernanda Montenegro lerão poemas. Para Fernanda, “Poema de Natal” de Jorge de Lima; para Regina, “Natal” de Murilo Mendes. Escolhi o Murilo Mendes da versão 1959, não o original de 1935. Houve troca significativa, talvez influência de Gilberto: o “anjo sereno” virou “anjo moreno”. É o que desejo para o mundo: tudo, mesmo um anjo, é ainda mais sereno quando se reconhece moreno, “mutt” ou “mongrel”.

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