texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24/05/2013
Lawrence W. Levine publicou “Highbrow/Lowbrow” há 25 anos. Poderíamos comemorar a data com a tradução desse livro para o português. Fazendo pesquisa rápida em livrarias brasileiras fico surpreso ao descobrir que não temos nenhuma obra de Levine lançada em nosso país. Suas ideias não são muito conhecidas por aqui. Eu mesmo tive introdução tardia ao seu trabalho. Pena: hoje reconheço que meu livro “O mistério do samba” seria muito mais interessante se eu tivesse lido “Highbrow/Lowbrow” antes. É uma das mais originais reflexões sobre história da cultura que conheço.
O subtítulo de “Highbow/Lowbrow” é “a emergência da hierarquia cultural na América”. “Brow”, em inglês, quer dizer testa, ou a parte frontal do crânio. No século XIX, cientistas racistas tentavam provar que gênios brancos como Shakespeare tinham testas mais altas que canibais aborígenes da Oceania. A criatividade artística europeia seria consequência de uma suposta evolução biológica da espécie humana, resultado de milímetros a mais na dianteira do cocuruto. Claro que isso era trabalho de laboratório de quinta categoria. Mesmo assim impressionava e os termos preconceituosos foram contrabandeados para os julgamentos estéticos, que começavam a dividir a produção cultural da Humanidade em duas categorias: a erudita ocupando lugar bem mais alto (a “Alta Cultura”) do que a popular.
Levine mostra com detalhes documentais abundantes como esse afastamento aconteceu nos EUA. A motivação para fazer essa pesquisa surgiu no decorrer de outro trabalho, aquele que está na base de seu livro anterior, “Cultura negra e consciência negra”, clássico sobre a produção cultural dos negros americanos no período da escravidão. Analisando inúmeros exemplos de canções a espetáculos circenses, Levine encontrou várias paródias de atos de peças de Shakespeare, como “Hamlet” ou “Rei Lear”. Para achar graça naquelas citações seu público, formado nas camadas mais economicamente “diferenciadas”, teria que conhecer o original. Como assim? A “patuleia” se sentia íntima da mais nobre arte produzida pelo espírito humano a ponto de brincar com seus temas sérios, chafurdando-os na lama de seu entretenimento “vulgar”? Supresa: “No Mississippi entre 1814 e o início da Guerra Civil, as vilas de Natchez e Vickburg, com somente poucos milhares de habitantes em cada uma, tiveram pelo menos cento e cinquenta performances de Shakespeare com estrelas britânicas ou americanas”. Qualquer lugar poderia sediar um espetáculo: barcos a vapor no rio Ohio, a sala de jantar do Sauganash Hotel de Chicago, quando essa cidade tinha apenas quatro mil habitantes. O público gritava, comia, dançava. “Ricardo III” era a melhor diversão.
Tal sucesso popular não era privilégio de Shakespeare ou do teatro. Os outros capítulos de “Highbow/Lowbrow” mostram que ópera, música clássica ou exposições em museus eram recebidas com o mesmo entusiasmo por plateias que misturavam todas as classes sociais, e que não tratavam o que viam como algo ser contemplado com silêncio respeitoso, como se testemunhassem milagres sagrados. Não era também exclusividade de uma América inculta, sem a educação das metrópoles. Décadas antes, chegando de um baile, Mozart escreveu carta para seu pai falando do seu encantamento com as danças de quadrilhas ao som do “Figaro”.
Diretores, encenadores e atores contribuíam para o clima sem cerimônia. Piruetas, hits do momento, fogos de artifício e mesmo mudanças em textos e libretos transformavam tudo em boa algazarra. Resistindo a uma tendência que tentava impor maneira mais séria de consumir Alta Cultura, o grande mestre de banda John Philip Sousa, com orgulho, se diferenciava do maestro Theodore Thomas: “ele dava Wagner, Liszt e Tchaikowsky na crença de que estava educando seu público; eu dava Wagner, Liszt e Tchaikowsky na esperança de entreter o meu público.” O que não quer dizer que o público podia ser enganado. Quando uma companhia italiana cortou, sem aviso prévio, a cena final de “Semiramide”, ópera de Rossini, o público quebrou todo o teatro de Nova Orleans.
Por volta de 1900, foram criados os rituais para a correta apreciação da arte e a “ilusão” de que aquele tipo de arte sempre foi apreciado daquela maneira séria, reverente, refinada. Crueldade: as massas foram expulsas dos novos palácios de consumo cultural e logo depois acusadas de bárbaras por não consumir aquilo que passou a ser símbolo de prestígio, para uma minoria, também por ter se tornado inacessível, para a maioria. Outro efeito, conveniente para “iluminados”: com a nova situação/divisão, muita gente passou a ganhar dinheiro tentando levar arte para as massas. Pura trapaça.