rastros de batom

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 25/10/2013

“Esta explosão foi provocada por grupos em revolta contra a moderna sociedade de consumo e tecnológica, seja comunista no Leste ou capitalista do Ocidente. São grupos, ademais, que não têm nenhuma ideia sobre o que querem colocar no lugar disso, mas que se deleitam com negação, destruição, violência, anarquia, e brandem a bandeira negra!” Trata-se de governante atual condenando manifestações em Istambul, em Nova York ou no Rio de Janeiro? Que nada. Essas palavras foram proferidas há 45 anos, por um General De Gaulle comemorando, com discurso na TV francesa, a reconquista do poder depois do susto de Maio 68. Muitos analistas já enumeraram as diferenças entre aquele momento e o que vivemos hoje. Concordo. Mas sempre me espanto com semelhanças. Pergunto: empacamos no eterno retorno do mesmo impasse?

Compare fotos do Quartier Latin em 1968 e da Cinelândia em 2013. Fumaça de bombas, carros virados, saques, porrada, pichações apocalípticas. Tudo bem, os “enragés” que ocupavam a Sorbonne não tinham smartphones. Fazia falta? As convocações para os protestos, que desencadearam greves gerais e tomadas de fábricas, percorriam a cidade e o resto do país com rapidez impressionante, sem depender da internet. Não se falava em neoliberalismo, mas em “sociedade do espetáculo”. Não havia black blocs, mas os “blousons noirs” (turmas de jovens de periferia, surgidos com o iê-iê-iê francês dos anos 50 e uniformizados com couro negro) botavam pra quebrar.

O jornal L’Aurore de 7 de Maio de 1968 descrevia assim os acontecimentos da noite anterior (a primeira a ter pancadaria): “Juntamente com os manifestantes podiam ser vistas turmas de blousons noirs armados com barras de aço, vindos dos arredores de Paris para ajudar os estudantes.” Mesmo a palavra “vândalo” ganhou enorme popularidade em notícias da imprensa. E foi recuperada (termo caro para o situacionismo, “movimento” que formulou várias das ideias que ganharam as ruas e o mundo naquele Maio) pelo protesto, de maneira irônica, como no Comitê de Segurança Pública dos Vândalos, de Bordeaux, conhecido por um panfleto que anunciava o “verdadeiro” significado de várias palavras (“sociedade” era “extorsão”, “diálogo” era “masturbação” e assim por diante). Curiosidade: nos anos 2000, a banda nova-iorquina Panthers lançou disco que continha a faixa “Vandalist Committee of Public Safety” – seu primeiro verso: “não somos uma banda, somos um conluio de terroristas.”

Estou me perdendo em detalhes pitorescos sem importância. Na verdade, escrevo este texto só para clamar por tradução brasileira de “Lipstick traces” (no qual encontrei o discurso do De Gaulle citado acima), livro de Greil Marcus (cujo pensamento precisa ser mais conhecido no debate cultural nacional), lançado em 1989. Seu subtítulo é “a história secreta do Século XX”. Fala de punk, situacionismo e dadaísmo, mas se fosse escrito hoje poderia incluir perfeitamente divagações sobre o Occupy Wall Street. Sua concepção de história não é nada linear: “resultado de momentos que parecem não ter deixado nada após, nada além do mistério de conexões espectrais entre pessoas bem separadas por lugar e tempo, mas de alguma maneira falando a mesma linguagem?” Assim o alfinete na boca da figura que aparece no cartaz do Atelier Populaire no Maio parisiense vai reaparecer na boca da Rainha Elizabeth na capa de disco dos Sex Pistols. Tudo culpa da “revolta do inconsciente social”, não capturando a história, mas atuando – ao mesmo tempo – como dádiva e maldição para seu desenrolo. Os eventos efêmeros passam a servir de julgamento para tudo que vai acontecer depois, e isso também é o significado do “no future”.

O livro de Greil Marcus é uma enxurrada de interpretações desconcertantes para fatos emblemáticos e radicais da modernidade. Fica claro que os situacionistas não pensavam a nova rebelião popular como consequência da escassez. Eles escreveram: “Pela primeira vez não é a pobreza, mas a abundância material que tem que ser dominada.” Por isso podiam fazer “demandas ilimitadas”. Marcus escreve em outros tempos: “Foi como se Thatcher e Reagan tivessem adotado uma teoria situacionista chave: abundância é perigosa para o poder, e privação, se gerida cuidadosamente, é segura.” Tentaram fazer aquilo que já era considerado direito de todos voltar a ser privilégio do 1%. Bolhas após: conseguiram?

Como já escrevi por aqui: abundância pede mais abundância. É erro tentar justificar ou enaltecer o que acontece em nossas ruas hoje com discursos antigos da ditadura da penúria. Precisamos inventar teorias/práticas pós-punk-funk-ostentação. Para começar: lutemos por um hackerspace em cada praça.

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