texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29/11/2013
David Toop é convidado de honra do festival Novas Frequências, que começa amanhã trazendo para o Rio um amplo panorama daquilo que existe de mais inovador na música contemporânea. Difícil escolher atrações para indicar. O melhor seria ver tudo, pois a diversidade das propostas é o que mais interessa: cada artista criando seu próprio movimento, incomparável, com estratégias bem diferentes de processamento sonoro e usos surpreendentes da tecnologia. Sou fiel seguidor, por exemplo, de Stephen O’Malley, nome central para a cena drone (nada a ver com aviões espiões não tripulados) e formas extremas de metal contemplativo (e nem por isso menos barulhentas). Mas se precisasse escolher, não teria dúvida. Como disse o crítico Simon Reynolds: nós somos todos David Toop agora. Vivemos em tempos toopianos, com sua própria toopografia.
Não tenho certeza, mas acho que meu primeiro contato com a obra de David Toop – que além de músico é curador, escritor, jornalista etc. – foi a leitura do seu artigo “Fresh Electro”, que a The Face publicou em maio de 1984. Naquela época era raro encontrar essa revista inglesa – que ainda não havia lançado 50 números – nas bancas cariocas. Mesmo raridade, não havia como não notá-la entre outras publicações. Essa edição trazia uma das capas mais icônicas criadas pelo designer Neville Brody. Sobre fundo amarelo ovo, apenas letras azuis, vermelhas e pretas. “Eletro” dominava com tipos garrafais.
Não era só a forma que chamava a atenção. O conteúdo do artigo desnorteava igualmente os leitores. Talvez tenha gerado a primeira capa de uma revista já tão na moda (antes mesmo de ser revista de moda) baseada na cultura ainda desconhecida do hip hop. Porém, não apenas os nomes Run DMC ou Arthur Baker soavam como novidades. A interpretação do fenômeno proposta por David Toop também me parecia deveras alienígena. Preciso traduzir o último parágrafo, absolutamente visionário: “Nada é sagrado na era dos computadores. Enquanto programadores de computador, advogados de copyright e corporações lutam para se proteger contra micropiratas e ‘mashers’, os ‘vidkids’ pululam do topo da tela, famintos de desastre cósmico.”
Em 1984, ano que foi bem diferente da descrição de George Orwell, eu não tinha os elementos para entender o que havia ali de profecia (oferecida como se fosse descrição de atualidade banal). Os computadores pessoais haviam sido lançados no mercado há apenas três anos (junto com a MTV), a Microsoft estava iniciando seu império, hacker era palavra só conhecida por ultranerds, “Planet rock” (a música de Afrika Bambaataa que citava Kraftwerk) tinha acabado de completar seu segundo aniversário. O artigo da The Face percebeu claramente que já vivíamos em admirável mundo novo. A ficha para geral foi caindo aos poucos. Ao cair fomos descobrindo que somos todos David Toop.
Em artigo mais recente – este publicado em 2010 pela revista também inglesa The Wire -, descobri que elemento importante na formação de David Toop foi, em 1966 com 17 anos, a leitura de uma edição especial de outra revista, Art and Artists, inteiramente dedicada ao conceito e à prática de “arte autodestrutiva”. Era ainda um aprendiz de artes visuais. Nos anos 1970, ficou cada vez mais próximo dos sons (mas não perdeu o contato com o visual, tanto que em 2001 foi curador de “Sonic Boom”, a mais influente exposição pioneira daquilo que agora chamamos de “sound art”), é claro que em suas vertentes mais experimentais, da eletrônica ao jazz , passando a se envolver igualmente com músicas étnicas raramente documentadas (Toop fez alguns dos primeiros registros da música ianomâmi, em viagem pela floresta amazônica venezuelana em 1978).
Então não foi inesperada a leitura do hip hop como tática estética de vanguarda, que também é o fio condutor de “Rap attack”, livro que David Toop lançou no final de 1984 e ainda é bibliografia fundamental para quem quer entender o sucesso de Frank Ocean ou Lil B. Eu me tornei David Toop bem no início de minha vida acadêmica. “Rap attack” é citado várias vezes na minha dissertação de mestrado sobre o circuito de baile funk no Rio.
Dos anos 1990 para cá, além de continuar sua carreira musical (no disco “Pink Noir”, meu preferido, ele toca de Telecaster a flauta de Papua Nova Guiné, passando por genggonk sekai e bateria eletrônica), David Toop publicou uma série de livros onde o foco na música é expandido para o universo sonoro como um todo. Em “Sinister ressonance” encontramos uma teoria dos sons como fantasmas e do ouvinte como médium. Ser David Toop é também voltar a ser feto dentro do útero, no escuro, assombrado com os sons que chegam lá de fora, do além.