Archive for maio \31\-03:00 2014

somos todos erroristas

31/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/05/2013

Na coluna da sexta-feira passada fiz comentários sobre o sucesso retumbante e surpreendente do livro “O capital no século XXI”, de Thomas Piketty. Nunca, na história do planeta, um economista passou tão velozmente de culto universitário para celebridade pop. Mesmo assim, eu não estava preparado para encontrar no topo esquerdo da primeira página deste jornal, em sua edição de sábado, a seguinte manchete em tom quase policial: “Piketty acusado de erro”. O “New York Times”, o “Le Monde”, o “Frankfurter Allgemaine Zeitung”, o “Pravda” e quase todos periódicos importantes do mundo também deram destaque para a descoberta, pelo “Financial Times”, de contas e fórmulas incorretas em nosso novo “Capital”. O debate acadêmico virou paixão de massa como um lançamento da Beyoncé?

Parece que o que está em jogo é a salvação do capitalismo, cotadinho. As acusações do “Financial Times” serviriam para provar que – ufa! – não estamos condenados a crescente desigualdade, pois – se analisadas corretamente – as estatísticas não revelam uma concentração de renda crescente na mão do 1%. Pelo que consigo entender, Piketty não é Marx, nem prega o desaparecimento da burguesia. Sua proposta, com taxações maiores sobre grandes riquezas, tenta salvar do capitalismo de seus básicos instintos concentradores e, a cada vez mais curto prazo, suicidas. Toda economia precisaria de distribuição de renda para crescer e inovar. Porém (a polêmica do “Financial Times” deixa perceber), o problema principal se esconde além das contas, e se aproxima do misticismo: está todo mundo em busca de um “espírito” que faça as pessoas acreditarem que o capitalismo seja realmente capaz de produzir bem público.

Por isso, também na coluna passada, recomendei a leitura de “O novo espírito do capitalismo”, calhamaço de Luc Boltanski e Ève Chiapello que analisa as justificativas que o capitalismo criou para motivar/mobilizar multidões (operários, administradores de empresa, donos de bancos etc.) a colaborar com seu sistema de acumulação baseado em lucro (antes considerado pecado) e trabalho assalariado. Claro, o assunto ficou pop, mas no mundo pop quase ninguém tem tempo para livros de quase mil páginas. Vou ser bonzinho: tenho recomendação mais prática para quem não quiser fazer feio nos debates de bares dos 99% e restaurantes dos 1%, entre observações sobre a Copa ou sobre o desfile de Raf Simons e Sterling Ruby. Leia qualquer coisa do autor para quem Boltanski e Chiapello dedicaram seu “O novo espírito”: Albert O. Hirschman. São obras sempre curtinhas e deliciosas.

Não vou chatear ninguém resumindo aqui “As paixões e os interesses”, que em menos de 120 páginas revela como a cobiça, e consequentemente o “ganhar dinheiro”, foi sendo considerada a “menos pior” das paixões, uma paixão “calma”, que contribui para a paz coletiva (e entre as nações). Prefiro seduzir leitores com passagens mais pitorescas. Hirschman se orgulha de ser um autossubversivo, sempre alegre ao questionar os fundamentos de suas próprias ideias. Ele poderia fazer coro para o novo rap da chilena Ana Tijoux: “Somos todos erroristas”. Isto é, erramos sem parar, e muitas vezes errando é que encontramos as saídas inovadoras ou os caminhos, múltiplos, de fuga para frente.

A polêmica do “Financial Times” tornou explícito mais um Fla-Flu ideológico: agora temos também os extremistas pró e contra Piketty. Todos poderiam lucrar (hehehehe) se lessem com atenção, e coração aberto (sei que peço o impossível), o artigo “Opiniões peremptórias e democracia”, publicado no Brasil dentro da coletânea “Auto-subversão” (a edição ainda tem grafia anterior ao Acordo Ortográfico). Diante de um ambiente no qual há indiscutível “superprodução de opiniões” (e Hirschman escrevia em 1989, antes da WWW), uma pergunta nunca quer calar: seriam os indivíduos “capazes de valorizar tanto o fato de ter opinião quanto o de ter mente aberta, a combinar o júbilo por ganhar uma discussão com os prazeres de serem bons ouvintes e de ter a ‘índole persuadível’ de Jane Austen?”

Para Hirschman, os caminhos das mudanças de opinião são sempre imprevisíveis. Muitas vezes o bem comum é consequência da insistência em avaliação errada. Achamos que não há riscos, embarcamos numa canoa furada. Quando percebemos o erro já estamos em alto mar. Temos que tapar o furo em pleno movimento tempestuoso. Já gastamos tempo ou dinheiro demais para voltar atrás – e provavelmente nunca seguiríamos em frente se não estivéssemos com a corda no pescoço. Resumo: frequentemente, se não fosse o empurrão do erro, não faríamos nada e ficaríamos empacados no mesmo lugar ruim.

Mais uma citação, “com o devido respeito a Francis Fukuyama”: “o curso da história parece rumar com todo o vigor em direção contrária à visão que se tem do curso da história!” “Financial Times”, Thomas Piketty e suas turmas: todos precisam aprender com os erros dos outros.

PS: Citação importante, tambem do artigo “Opiniões peremptórias e democracia”, que não entrou na versão publicada no jornal por falta de espaço: “Contribuições recentes à teoria da democracia ressaltaram o papel da deliberação no processo democrático: para uma democracia funcionar bem e perdurar, é essencial, afirmou-se, que as opiniões não sejam formadas plenamente antes do processo de deliberação. Os participantes do processo – o público em geral e seus representantes – devem manter um grau de abertura ou de caráter experimental em suas opiniões e estar dispostos a modificá-las em consequência de argumentos que serão apresentados pelas partes oponentes e, mais simplesmente, à luz de novas informações que podem surgir no decorrer de debates públicos. Sem um processo político que manifeste pelo menos alguma aspiração a esse quadro reconhecidamente um tanto idílico, a democracia perde sua legitimidade e fica, assim, ameaçada.”

capitais

24/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/05/2014

Todas as pessoas que costumam ler jornais, no mundo inteiro, já devem estar cansadas de ouvir falar no sucesso de “O capital no século XXI”, livro de Thomas Piketty. Ao que tudo indica, nunca houve vendas semelhantes na história das editoras acadêmicas, ou das publicações de ciências sociais. De políticos a diretores de bancos privados, uma multidão escreve artigos com sua opinião sobre a leitura. Repentinamente, desigualdade é o assunto do momento mesmo entre conservadores. E vemos um intelectual francês dominar rodas de conversa que antes só admitiam pensamentos difundidos originalmente em inglês.

Acontecimento inesperado? Ao ver o nome de Piketty na vigésima sétima posição de sua lista 2014 de “pensadores top” no planeta (quase sempre professores de universidades dos EUA ou da Inglaterra – mesmo quando têm origens em outros países, como Mangabeira Unger, Amartya Sen ou Ha-Joon Chang), a revista “Prospect” sentiu necessidade de observar: “é também uma lembrança de quão velozmente as modas intelectuais podem mudar.” Curioso: Piketty e seu colaborador Emmanuel Saez já estavam juntos na posição 62 da lista de 2013. Sinal de que o sucesso atual tem raízes mais antigas, e – apesar de suas proporções – não deve ter sido surpresa absoluta para analistas atentos do “hit parade” das ideias. A “Prospect”, em seus comentários sobre os vencedores do ano passado, apontava a influência de Piketty e Saez na campanha Obama, e linkava matéria de 2012 no New York Times que já tratava a dupla como o novo “cool” em termos intelectuais.

Então: todo século tem o seu “Kapital”, divulgado com formas renovadas de ciência mimética? Sempre é interessante observar os caminhos pelos quais esse tipo de sucesso meteórico é produzido (aqui não precisa haver nenhuma intencionalidade), ou como obras semelhantes não conseguem alcançar a mesma visibilidade. Quando percebi que Piketty tinha ocupado bem mais que 1% das páginas mais sérias dos jornais, pensei logo que todo século precisa ter também seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Estamos com sorte: já podemos comprar “O novo espírito do capitalismo”, livro de Luc Boltanski e Ève Chiapello.  Porém, e apesar de no seu lançamento de 1999 ter sido saudado como clássico, esse outro calhamaço não conseguiu nem 1% da empolgação conquistada pelo novo “Capital”. Procurei agora resenhas nos jornais brasileiros (o lançamento por aqui aconteceu, pela Martins Fontes, em 2009) e encontrei apenas notas curtas – quase nada se comparadas com a densidade de suas 800 páginas.

Seria “O novo espírito do capitalismo” francês demais? Talvez. Não está baseado numa pesquisa quantitativa que apresenta tantos dados novos como “O capital no século XXI”. Mas o assunto é bem “anglo”, com a leitura inovadora, no âmbito das ciências sociais mais politicamente engajadas, da bibliografia de administração ensinada nas principais “business schools” que seguem o modelo de Harvard, com milhares de MBAs que formam “empreendedores” planeta afora. Boltanski, antropólogo que já tinha feito sucesso escrevendo sobre justificações jurídicas, e Chiapello, professora de administração que estudara a relação de artistas com seus “marchands”, mostram como o capitalismo soube absorver as críticas pós-Maio 1968 (incluindo seus reflexos hippies no Vale do Silício) e agora recomenda organizações em redes descentralizadas, valorizando mobilidade e repudiando hierarquias tradicionais, para lidar com todos seus impasses.

Claro, os tempos mudaram. No primeiro parágrafo do “Novo espírito”, encontramos a “coexistência” de “um capitalismo em plena expansão” com “a degradação da situação econômica e social de um número crescente de pessoas”. Em Piketty – apenas 14 anos depois, e pós-crise de 2008 – não temos mais a expansão, ou temos o entendimento de que mesmo em tempos expansivos o capitalismo pode degradar os ganhos dos 99%. É um mundo muito mais sombrio, onde os fracassos cultuados nos manuais de administradores em rede se transformam num macrofracasso civilizacional. Parece que vozes como a de Kenneth Rogoff – ex-economista chefe do FMI que teve artigo publicado neste jornal lembrando “que, nas últimas décadas, bilhões de pessoas no mundo em desenvolvimento, particularmente na Ásia, escaparam de níveis de pobreza desesperadores” – não podem ser ouvidas sem desconfiança. Não há clima para nenhum otimismo no debate de ideias atual? Qual será a próxima bibliografia para business schools que deixaram de acreditar que as redes funcionam?

Nada está claro. Vale a pena ler Piketty junto com Boltanski/Chiapello, ao mesmo tempo. Livros enormes, eu sei. Nossos problemas atuais não são menores.

animais e vegetais

17/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 16/05/2014

O livro “Gentle bridges” (foi traduzido para o português?) registra conversações, realizadas em 1987, com o Dalai Lama sobre ciências da mente. O trecho que mais chamou minha atenção gira em torno do biólogo chileno Francisco Varela, um dos grandes gênios do Século XX. O Dalai Lama pergunta: “Uma bactéria é um ser senciente? A questão é importante no contexto budista, pois quando você tira a vida de um ser senciente, isso constitui uma má ação. Se esse ser tem desejo de felicidade e não quer sofrer, então tirar sua vida constitui muito sofrimento. Então é errado matar uma ameba?” A resposta de Varela é firme, mas cuidadosa, utilizando negativas em série (“eu não vejo uma maneira de escapar dessa observação”; “eu não tenho nenhuma base para dizer que o comportamento não é do mesmo tipo”…): “A ameba manifesta intrinsicamente uma diferenciação entre o que gosta e o que não gosta. Nesse sentido, há senciência.” O Dalai Lama insiste: “mesmo as plantas têm esse tipo de comportamento?” Varela repete seus argumentos. Mas ficamos sem uma conclusão: lavagens de mão com sabonete antibacteriano e refeições vegetarianas também aumentam o sofrimento já intolerável do mundo?

Vale citar mais uma fala de Varela na mesma ocasião: “As plantas parecem ficar fora do domínio da senciência porque elas não se movem; mas elas não se movem somente porque seu estilo de vida é precisamente não se mover.” Lembrei tudo isso, incluindo as leis do karma, ao ler dois artigos desconcertantes recentemente publicados. No final de abril, o jornal “New York Review of Books” trazia como chamada de capa: “Oliver Sacks: o que a plantas podem sentir”. Na sua edição de maio a revista “Piauí” traduz “A planta inteligente”, de Michael Pollan (ele vem para a FLIP 2014). Curioso: a ilustração principal para os dois textos é a mesma, retirada do livro “O templo da flora” (1799-1807), de Robert John Thornton. Sinal dos tempos? Está tudo conectado?

Outra lembrança: em 1989 encontrei, na revista francesa “Actuel”, uma sentença sombria:”estamos amaldiçoados, as plantas querem nos escravizar”. A história da vida na Terra era descrita como uma guerra épica entre os reinos animal e vegetal. Os seres clorofilados, comedores de luz, desenvolveram as drogas (pense apenas na indústria do tabaco, ou nas aulas de degustação de vinhos) para viciar os animais. Aquilo era ideia tão absurda, ou engraçada, que ganhou território fixo em minha cabeça. Agora penso: estive rindo do quê? No artigo da “Piauí” me deparo com notícias de pesquisas que podem confirmar a bad trip, só que em versão ainda bem leve: “Várias espécies, entre elas o milho e o feijão-de-lima, emitem um pedido de socorro químico quando são atacadas por lagartas. Vespas parasíticas que se encontram a certa distância localizam a origem do odor, dirigem-se à planta atacada e lentamente destroem as lagartas.”

Pollan apresenta muitos outros exemplos incríveis-fantásticos-extraordinários, revelando um campo crescente de estudos que confirma as intuições antigas de Varela, contrabandeando conceitos como comportamento, cognição e sentimento para o mundo das plantas. Mesmo o subterrâneo de uma floresta parece rede social tão animada quanto o Twitter, com compartilhamento de nutrientes e informações. (Em termos deleuzianos: as raízes vivem em devir-rizoma. Os rizomas venceram.) Até consciência sem neurônio se tornou possível. Oliver Sacks trata como hipótese científica respeitável aquela que aponta canais de íons de cálcio como rede elétrica nos vegetais. Claro, as cargas são transmitidas com velocidade bem mais lentas que aquelas atingidas pela dobradinha sódio/potássio dos nossos neurônios. Mas as plantas são slow desde sempre, muito antes da moda slow-food.

Bom nessas descobertas todas é ver que não há só guerra entre os reinos da vida. Houve, há e pode haver cada vez mais colaboração entre tão substanciais diferenças. Estou fascinado pelo livro “Usos e circulação de plantas no Brasil – Séculos XVI-XIX”, organizado pela historiadora Lorelai Kury. Não dá para entender nosso passado sem pensar também em nossa relação com os vegetais. Afinal, um dos motores das navegações lusitanas foi o desejo de especiarias, o que acabou produzindo uma “unificação biológica da Terra”. Do nosso lado, humano, houve troca intensa de conhecimentos de vários povos, desenvolvidos em boticas de colégios jesuítas, em rituais de xamãs indígenas, em jardins botânicos (o café chegou por aqui biopirateado do Jardim Botânico de Caiena).

Um dia leremos uma história do mundo onde as plantas serão protagonistas? O que quer uma planta? Por enquanto, consolo para vegetarianos: Stefano Mancuzi, botânico, decreta (no artigo de “Piauí”): “As plantas evoluíram para ser comidas; é parte de sua estratégia evolutiva.”

sombra e luz

10/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/05/2014

“Alice nas cidades”, de Wim Wenders, foi lançado há 40 anos – tem portanto a idade de Leonardo DiCaprio e Victoria Beckham. Deve ser o filme que, junto com “Solaris”, vi mais vezes na minha vida. Na década 1970 houve muitos ciclos de Novo Cinema Alemão na Cinemateca do MAM e arredores. Eu não perdia uma única exibição. Depois, estranhamente, desapareceu de várias telas. Acompanhei o lançamento da obra de Wenders em DVD, mas nem sinal de “Alice”. Só agora, como por milagre, consegui comprar minha cópia. Foi reencontro bem especial, logo em data tão redonda, que torna evidente a passagem desorientadora do tempo.

Minha primeira reação, ao rever o filme neste mês, foi achar que era “de época”, que todos os objetos de cena – televisores sem controle remoto, telefones de discar, radinho pré-walkman etc. – tinham sido escolhidos pela direção de arte para sugerir nostalgia, ou culto ao passado, algo assim como exibir disco de vinil em filme ambientado nos dias de hoje. Talvez essa impressão tenha sido reforçada pela fotografia em preto e branco, por músicas “antigas” para 1974 (“Memphis Tennessee” ou “Under the boardwalk”), pela jukebox no café de Wuppertal. Aos poucos fui percebendo que tudo aquilo era quase documental, e retratava tecnologias que, mesmo quando vi o filme anos depois de seu lançamento, devem ter me impressionado – ainda adolescente – como elementos de um primeiro mundo futurista, inacessível aqui num Brasil que ainda atravessaria a reserva de mercado de informática.

O filme apresentava lado a lado a atualidade mais crua (a revista “Der Spiegel”, que o protagonista Philip Winter compra nas ruas de Nova York, deve ter sido publicada durante a filmagem, e traz na capa reportagem sobre a greve real de pilotos da Lufthansa que tem impacto na ficção) e aquilo que ainda era promessa (não falo do trem suspenso de Wuppertal, que reaparece em “Pina”, mas da máquina Polaroid que ainda não estava no mercado). Fui descobrindo, assustado, que aquilo que de início parecia “de época” era na verdade a minha época. Diagnóstico talvez cruel: sou tão antigo quanto aqueles defeitos nas imagens dos aparelhos de TV dos motéis de beira de estrada na Carolina do Sul? Ou quanto um jumbo 747 da Pan Am?

Wenders, em 1987, provavelmente no auge da sua influência, foi redator chefe do número 400 da revista Cahiers du Cinema, onde comenta cada um de seus filmes. São suas palavras: “É com ‘Alice nas cidades’ que encontrei minhas marcas próprias no cinema.” Sabemos como essas marcas se difundiram, virando maneirismos insuportáveis de cinema de arte. Mesmo os temas de “Alice” marcaram épocas vindouras, até a atual. Em 2014, no mundo Instagram, todas as pessoas são um pouco Philip Winter, fotografando tudo para provar sua existência, e a existência das coisas ao seu redor. Vivemos em várias épocas ao mesmo tempo, tantas que é difícil distinguir quais as sombrias e quais as luminosas.

Quando aparece pela primeira vez no filme, Philip Winter está sentado na areia, embaixo de um “bordwalk” (calçadão de madeira suspenso, típico de algumas praias dos EUA), e canta trecho de “Under the boardwalk” (canção que fez sucesso primeiro no repertório do grupo The Drifters, nome que combina perfeitamente com um filme que tem como eixo central a errância). Só agora noto outra estranheza: é uma das músicas mais solares que conheço, mas – descrevendo um daqueles dias em que o chão está tão quente que desejamos ter pés “à prova de fogo” – todo o chamego acontece na sombra, “out of the sun”. Quando para de cantar, Winter recolhe as fotos e sai de cena se distanciando da câmera, cruzando a sombra do “boardwalk”. Porém, durante todo o filme, nunca o vemos plenamente na luz. O preto e branco, escolha para os filmes realistas e mais pessoais de Wenders, é famoso e copiado por ser sempre meio borrado, sem limites precisos entre sombra e luz.

Coincidência (sempre suspeita): revi “Alice” enquanto lia pela primeira vez Tomas Tranströmer, o mais recente Prêmio Nobel para a poesia. Chamou minha atenção a repetição da palavra “sombra”, inúmeras vezes, em sua obra. Vou cometer aqui a maior imprudência desta coluna: traduzir alguns de seus versos (e, pior, do inglês, pois não sei uma palavra do sueco original). “Nós temos muitas sombras.”; “Sou carregado em minha sombra / como um violino / em seu estojo preto.”; “O sol está baixo agora. / Nossas sombras são gigantes. / Em breve tudo será sombra.” Lembro a cena em que Alice vê a foto da asa do avião e reclama de seu vazio. Então encontro o poema “Vermeer” (não por acaso pintor favorito de Wenders), de Tranströmer, que termina assim: “E o que é vazio vira o rosto para nós / e sussurra: / ‘Não sou vazio, sou aberto.'” Troco épocas sombrias e luminosas por épocas abertas. Fico inocente, como Alice, novamente.

histórias do futuro

03/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 02/05/2014

Estou torcendo pela recuperação do Mestre Laurentino. (Nesta quarta-feira ele finalmente saiu da UTI.)  Há duas semanas, Vlad Cunha me deu notícia de sua internação com pneumonia, quase aos 90 anos. Fui transportado imediatamente para o dia, duas décadas atrás, quando o vi pela primeira vez, tocando gaita e cantando “Lourinha americana”. Parecia alucinação febril produzida pelo calor de Belém. Eu estava na plateia de festival de rock realizado numa estação de trem abandonada. Ao meu lado, garotos vestidos de preto. Depois de muito metal, sobe ao palco a banda Mangabezo (Vlad Cunha era um dos integrantes). No meio do show, surgiu convidado especial: Mestre Laurentino, elegantérrimo, cheio de anéis. Memphis era ali. E ao mesmo tempo, toda a história da música paraense também estava ali. Virei fã, fulminantemente. Poucos dias depois, entrevistei o Mestre na sua casa, muito pobre. Elogiei suas roupas. Ele fez questão de me dar uma camisa cheia de brilho, que está guardada e bem cuidada, como um dos melhores presentes da minha vida.

Essas alucinações bem reais são comuns ao redor do Ver-o-Peso. Não estou pensando nos telões de LED das festas de aparelhagem. Viajo para o passado, mais remoto, tendo como guia “A cidade sebastiana”, livro de Fábio Fonseca de Castro que descobri nas sempre surpreendentes prateleiras da Leonardo da Vinci (repito: minha livraria preferida, a mais cosmopolita do mundo). Sua publicação é de 2010, mas seu texto tem origem em dissertação de mestrado, com orientação de Benedito Nunes, defendida em 1995. Mesmo assim, não poderia ser mais atual, sugerindo maneiras inovadoras para pensarmos o futuro de nossas cidades e de todos os projetos de modernização no Brasil, ainda que a partir de história muito paraense.

Fábio Fonseca de Castro identifica “um modo periférico de participar da modernidade”, nostálgico, “marcado por uma aguda sensação de perda, por formas de saudade de um desconhecido que não foi vivenciado senão em pensamento” ou pela “pungência cotidiana de ‘ter-perdido-algo’.” É sempre uma saudade do futuro. Ainda no senso comum atual de Belém: “A ‘Era da Borracha’ está no futuro, não no passado. […] O passado é ulterior. A narrativa histórica pode, sim, ser lida como se fosse um sonho.” Sonho de quando éramos/seremos Brasil Grande, desenvolvido como o “Primeiro Mundo”. Lembrando (todos dados retirados de “A cidade sebastiana”): “entre 1860 e 1920 a população de Belém cresceu cerca de 1.200%”; “a renda interna da Amazônia cresceu, nesse período, 2.800%.” São tempos lembrados como magníficos, vertiginosos, encantados: trouxas e trouxas de roupas sujas “foram mandadas para Paris para serem lavadas”; o intendente Antonio Lemos “resolveu proibir as pessoas feias de circularem no centro da cidade”; as pessoas só atendiam o telefone em francês (“Oui… Qui la demande?… Un moment s’il vous plait…”), “ainda que o interlocutor falasse em português”; “conta-se que, ao redor do Theatro da Paz, [a administração Lemos] inventou um tipo de paralelepípedo revestido de borracha com o qual se evitava que os ruídos do trânsito prejudicassem os espetáculos.” Muita novidade na cidade ao mesmo tempo: arborização com mangueiras, serviço de bondes, matadouro, montanha russa, a loja de departamentos Cúpula de Malquistã, “uma lei que proibia esmolar em Belém.” Virou modelo de “civilização”.Visitando o Rio de Janeiro em 1904, Lemos ouviu de Pereira Passos: “Eu começo a fazer na minha cidade o que V. Excia. fez na sua.”

Foi bom (para quem?) enquanto durou? Em 1912, veio a “Queda”: falências em série, suicídios, dívidas colossais. Naquele que talvez tenha sido o mais famoso e pioneiro caso de biopirataria globalizada, o inglês Henry Alexander Wilkens “enviou 70 mil sementes de Hevea brasiliensis para Londres, alegando ao governo do Pará que serviriam para embelezar o Jardim Botânico de Kew e recebendo 10 libras por milheiro de sementes.” Todos nós sabemos onde foram parar: nas plantations da Malásia: “em 1919 a borracha oriental alcançou 90% do mercado mundial, desbancando, definitivamente, a concorrência da produção amazônica.” Resultado no imaginário local: Fábio Fonseca de Castro fala de um “passado-látex”, conjunto de “falas encantadas, e sebastianas” que incluem eternamente repetidas “saudades do que poderia ter sido mesmo sem ter acontecido.”

Talvez Mestre Laurentino com a garotada do rock pulando ao seu redor e depois a dança do treme do tecnobrega indiquem outro futuro. Fábio Fonseca de Castro escreveu outro livro, “Entre o mito e a fronteira”, com estudo da aventura da produção cultural recente de Belém. João de Jesus Paes Loureiro também tem indicações amazônicas preciosas. Mas isso fica para outra coluna, também no futuro.


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