texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/05/2013
Na coluna da sexta-feira passada fiz comentários sobre o sucesso retumbante e surpreendente do livro “O capital no século XXI”, de Thomas Piketty. Nunca, na história do planeta, um economista passou tão velozmente de culto universitário para celebridade pop. Mesmo assim, eu não estava preparado para encontrar no topo esquerdo da primeira página deste jornal, em sua edição de sábado, a seguinte manchete em tom quase policial: “Piketty acusado de erro”. O “New York Times”, o “Le Monde”, o “Frankfurter Allgemaine Zeitung”, o “Pravda” e quase todos periódicos importantes do mundo também deram destaque para a descoberta, pelo “Financial Times”, de contas e fórmulas incorretas em nosso novo “Capital”. O debate acadêmico virou paixão de massa como um lançamento da Beyoncé?
Parece que o que está em jogo é a salvação do capitalismo, cotadinho. As acusações do “Financial Times” serviriam para provar que – ufa! – não estamos condenados a crescente desigualdade, pois – se analisadas corretamente – as estatísticas não revelam uma concentração de renda crescente na mão do 1%. Pelo que consigo entender, Piketty não é Marx, nem prega o desaparecimento da burguesia. Sua proposta, com taxações maiores sobre grandes riquezas, tenta salvar do capitalismo de seus básicos instintos concentradores e, a cada vez mais curto prazo, suicidas. Toda economia precisaria de distribuição de renda para crescer e inovar. Porém (a polêmica do “Financial Times” deixa perceber), o problema principal se esconde além das contas, e se aproxima do misticismo: está todo mundo em busca de um “espírito” que faça as pessoas acreditarem que o capitalismo seja realmente capaz de produzir bem público.
Por isso, também na coluna passada, recomendei a leitura de “O novo espírito do capitalismo”, calhamaço de Luc Boltanski e Ève Chiapello que analisa as justificativas que o capitalismo criou para motivar/mobilizar multidões (operários, administradores de empresa, donos de bancos etc.) a colaborar com seu sistema de acumulação baseado em lucro (antes considerado pecado) e trabalho assalariado. Claro, o assunto ficou pop, mas no mundo pop quase ninguém tem tempo para livros de quase mil páginas. Vou ser bonzinho: tenho recomendação mais prática para quem não quiser fazer feio nos debates de bares dos 99% e restaurantes dos 1%, entre observações sobre a Copa ou sobre o desfile de Raf Simons e Sterling Ruby. Leia qualquer coisa do autor para quem Boltanski e Chiapello dedicaram seu “O novo espírito”: Albert O. Hirschman. São obras sempre curtinhas e deliciosas.
Não vou chatear ninguém resumindo aqui “As paixões e os interesses”, que em menos de 120 páginas revela como a cobiça, e consequentemente o “ganhar dinheiro”, foi sendo considerada a “menos pior” das paixões, uma paixão “calma”, que contribui para a paz coletiva (e entre as nações). Prefiro seduzir leitores com passagens mais pitorescas. Hirschman se orgulha de ser um autossubversivo, sempre alegre ao questionar os fundamentos de suas próprias ideias. Ele poderia fazer coro para o novo rap da chilena Ana Tijoux: “Somos todos erroristas”. Isto é, erramos sem parar, e muitas vezes errando é que encontramos as saídas inovadoras ou os caminhos, múltiplos, de fuga para frente.
A polêmica do “Financial Times” tornou explícito mais um Fla-Flu ideológico: agora temos também os extremistas pró e contra Piketty. Todos poderiam lucrar (hehehehe) se lessem com atenção, e coração aberto (sei que peço o impossível), o artigo “Opiniões peremptórias e democracia”, publicado no Brasil dentro da coletânea “Auto-subversão” (a edição ainda tem grafia anterior ao Acordo Ortográfico). Diante de um ambiente no qual há indiscutível “superprodução de opiniões” (e Hirschman escrevia em 1989, antes da WWW), uma pergunta nunca quer calar: seriam os indivíduos “capazes de valorizar tanto o fato de ter opinião quanto o de ter mente aberta, a combinar o júbilo por ganhar uma discussão com os prazeres de serem bons ouvintes e de ter a ‘índole persuadível’ de Jane Austen?”
Para Hirschman, os caminhos das mudanças de opinião são sempre imprevisíveis. Muitas vezes o bem comum é consequência da insistência em avaliação errada. Achamos que não há riscos, embarcamos numa canoa furada. Quando percebemos o erro já estamos em alto mar. Temos que tapar o furo em pleno movimento tempestuoso. Já gastamos tempo ou dinheiro demais para voltar atrás – e provavelmente nunca seguiríamos em frente se não estivéssemos com a corda no pescoço. Resumo: frequentemente, se não fosse o empurrão do erro, não faríamos nada e ficaríamos empacados no mesmo lugar ruim.
Mais uma citação, “com o devido respeito a Francis Fukuyama”: “o curso da história parece rumar com todo o vigor em direção contrária à visão que se tem do curso da história!” “Financial Times”, Thomas Piketty e suas turmas: todos precisam aprender com os erros dos outros.
PS: Citação importante, tambem do artigo “Opiniões peremptórias e democracia”, que não entrou na versão publicada no jornal por falta de espaço: “Contribuições recentes à teoria da democracia ressaltaram o papel da deliberação no processo democrático: para uma democracia funcionar bem e perdurar, é essencial, afirmou-se, que as opiniões não sejam formadas plenamente antes do processo de deliberação. Os participantes do processo – o público em geral e seus representantes – devem manter um grau de abertura ou de caráter experimental em suas opiniões e estar dispostos a modificá-las em consequência de argumentos que serão apresentados pelas partes oponentes e, mais simplesmente, à luz de novas informações que podem surgir no decorrer de debates públicos. Sem um processo político que manifeste pelo menos alguma aspiração a esse quadro reconhecidamente um tanto idílico, a democracia perde sua legitimidade e fica, assim, ameaçada.”