texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27/06/2014
Errei. (Viva o erro!) Logo no início da Copa, escrevi que o número muito pequeno de ruas enfeitadas de verde e amarelo indicava mudança dramática de mentalidade no Brasil. Não haveria mais evento capaz de unificar a nação. Passaríamos a viver numa fragmentação “desenvolvida”, com oferta abundante de grandes emoções minoritárias. Não foi o que aconteceu. Mais uma vez o Brasil parou por causa do futebol. Não há espaço para outros assuntos, mesmo os mais surpreendentes.
Por exemplo: pelo que consegui apurar, nunca na história deste país houve interrupção tão longa na exibição de uma telenovela como a que aconteceu em “Geração Brasil” na semana passada. No lugar de oito capítulos só foram ao ar pílulas de alguns minutos, em horário diferente do habitual. Durante esse período foi feita uma das experiências mais radicais, em qualquer lugar do mundo, em termos daquilo que é chamado de “transmídia”. Como a imprensa, tomada pela Copa, não acompanhou os resultados, sinto obrigação – para que outras pessoas possam se animar a propor coisas semelhantes – de dar meu depoimento, mesmo sem distanciamento, como membro da equipe da novela.
Praticamente a mesma equipe – capitaneada pelos autores Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, pela diretora Denise Saraceni e, do lado da internet, por Ana Bueno – já tinha se empolgado com a maneira como o público respondeu ao “vazamento” do clipe das Empreguetes de “Cheias de charme”. Acompanhei tudo em tempo real, final de capítulo de sábado. Quando o link completo para o clipe apareceu na internet da novela, o público entendeu imediatamente que poderia ver a mesma coisa na internet “de verdade”. Os servidores não estavam preparados para tantos acessos simultâneos, tanto que demorei para conseguir abrir o link no meu computador.
Na segunda-feira, quando “Cheias de charme” recomeçou, já eram milhões de “views”. Havia até centenas de paródias do clipe circulando em várias redes sociais. Não esperávamos tanto sucesso. Outras experiências cross-plataformas aconteceram mundo afora. Mas nunca houve nada tão propriamente popular. Participei de alguns congressos internacionais sobre “convergência” de mídias. Só ouvia elogios para “cases” bem modestos, em termos de alcance de público, como provas de bom futuro para esse tipo de experiência. Quando eu citava os números da novela, pouca gente acreditava. Mesmo no Brasil, aquilo não foi tratado com a atenção dispensada para inovações da mesma importância. Talvez pouca gente tenha se dado conta do ocorrido. Ou prefira continuar pensando novela como ambiente de criação ultrapassado, nunca de vanguarda. (Gente “séria” só elogia série americana.)
Geração Brasil deu um passo adiante. No capítulo anterior à interrupção da Copa, dois personagens, Davi e Manu, participando de um reality show transmitido pela Parker TV, canal a cabo que só existe na ficção, lançaram um aplicativo para smartphones que precisava virar hit. Tudo bem metanarrativa: o público “real” deveria se transformar também em personagem, passando a baixar o app como se fosse o público da Parker. O desafio possuía aspectos mais complexos. Em “Cheias de charme”, era necessário apenas apertar o botão de “play” para ver o clipe. Agora, além da instalação, seria preciso também produzir vídeos segundo os desafios propostos em cada pílula diária da novela (alguns dos vídeos do público eram exibidos no dia seguinte, passando a fazer parte da trama “real” da novela).
Foi risco enorme de “flop” ou “fail”. Nenhuma outra produção da TV mundial tentara isso antes. A novela estava apostando no crescimento recente do uso de smartphone no Brasil. Somos o quarto mercado consumidor desse novo tipo de telefone, depois da China, dos EUA e da Índia. Calcula-se que até o final de 2014, teremos 41 milhões de usuários de smartphones no país. Mas quem é o usuário típico dessas novas máquinas? Vê novela? Está disposto a participar de uma brincadeira proposta pela novela das 7?
Continuo impressionado com a voracidade da adoção popular das novas tecnologias por brasileiros. “Filma-ê”, o app de “Geração Brasil” foi baixado mais de 250 mil vezes. Esse número, na semana do lançamento (e na semana de início da Copa, com o país parado para a Copa), significa sucesso estrondoso em qualquer mercado, para qualquer tipo de aplicativo. Não fico contente por ser proposta de novela na qual colaboro. O entusiasmo vem da abertura de espaço para mais experimentação no futuro, entre o produto mais “mainstream” da nossa TV, a novela, e a aventura da tecnologia de ponta. Quero acreditar, no espírito da Copa, que não existe laboratório melhor do que o Brasil para testar essas coisas. Povo fominha de inovação: esse é estereotipo bom de carregar/viralizar, pois torna tudo imprevisível.