Archive for novembro \29\-03:00 2014

samba francês 2

29/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 28/11/2014

A coluna da semana passada terminou com Alejo Carpentier, o escritor cubano, solto em Paris. Ou ainda em Havana, iniciando com amigos o afrocubanismo, uma reviravolta na consciência local, valorizando a cultura negra que antes era motivo de vergonha para a elite. Algo parecido com o que aconteceu no Brasil na mesma época: a identidade nacional se construiu em torno daquilo até então desprezado. Incrível como as mesmas figuras francesas têm local de destaque nessas transformações cubanas e brasileiras.

Exemplo, retirado do livro “Nacionalizando a negritude – afrocubanismo e revolução artística em Havana, 192-1940”, de Robin Moore: “Alejo Carpentier, um dos primeiros defensores do modernismo afrocubanista, decidiu apoiar o movimento depois de ter escutado as composições influenciadas pelo jazz de Darius Milhaud.” (Comprovando essa informação Moore cita artigo de Carpentier em jornal de 1925 elogiando guajira, bolero e clave.) Como hoje conhecemos bem, sobretudo depois do lançamento de “O boi no telhado”, livro organizado por Manoel Aranha Correa do Lago, além de jazz, sambas, polcas e maxixes brasileiros foram citados na obra de Milhaud, que morou no Rio, de 1914 a 1918, como secretário do poeta e diplomata Paul Claudel. Sabemos também como “O boi no telhado”, sucesso carnavalesco de 1918, virou nome de um dos principais clubes noturnos da Paris vanguardista. Uma Paris que consumia igualmente música cubana, em estabelecimentos como o Melody’s Bar e o Cabaña Bambú, localizados no bairro de Montmartre.

Em “O mistério do samba”, eu comento a importância enorme do poeta francês Blaise Cendrars para a “descoberta do Brasil” por modernistas como Mário e Oswald de Andrade (o livro de poesia “Pau-brasil” é explicitamente dedicado “a Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”), além de apresentar Donga para Prudente de Morais Neto, que depois leva o novo amigo – e Pixinguinha, e Patrício Teixeira – para tocar samba para Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.

Os franceses continuam consumidores ávidos de músicas (pop ou tradicional) das mais variadas procedências geográficas, e cuidam de redistribuir as melhores informações coletadas para o resto do mundo. No meu “avant-propos” para a nova tradução francesa de “O mistério do samba” por falta de espaço nem fiz os devidos agradecimentos para parisienses que não estão citados no livro, mas que foram centrais para minha própria descoberta de uma maneira de olhar/pensar o Brasil e a música brasileira, em todo seu cosmopolitismo. Então agradeço por aqui ao jornalismo musical praticado na revista “Actuel” e no jornal “Libération” nos anos 1980, desbravadores das fronteiras, naquele tempo quase impenetráveis (não havia internet popularizada), de um ambiente sonoro que quase ficou conhecido como “sono mondiale”. Sempre lamentei que o termo “world music”, bem mais rígido, tenha se tornado o padrão hoje. Sinal da perda de protagonismo francês na cultura internacional. Pena. É quase sempre empobrecedor (a não ser em raros monólogos geniais) ter apenas um ator (e uma única língua diplomática) em cena.

Ainda guardo muitos recortes das colunas “Selection disques noir”, “Selection soul”, sempre bem ecléticas, que Philippe Conrath assinava no “Libération”. Tenho igualmente minha coleção de “Actuel”, primeira revista a colocar – por exemplo – o raï, pop argelino, na capa, como se fosse a música mais popular do planeta. Sinto falta do espírito aventureiro e globalista do pessoal da “Actuel”. Não há hoje publicação semelhante, cobrindo o que acontece de interessante em todos os continentes, das cidades de Madagascar à floresta amazônica, passando pelo estúdio parisiense de Martin Meissonier, produtor de King Sunny Adé, Khaled e outros nomes que deixaram de ser “exóticos” por causa de seus discos. Não posso me esquecer também de Rémy Kolpa Kopoul, que tantos bons serviços prestou (e continua a prestar) para o pop brasileiro em todas suas vertentes, inclusive trazendo Kassav’ e Salif Keita, entre muitos outros, para tocar por aqui.

Viajando pela África, sempre fiquei impressionado com o trabalho de uma rede de centros culturais franceses, capazes de impulsionar o desenvolvimento de fenômenos até então desvalorizados por instituições locais, como o rap moçambicano ou uma certa pintura congolesa (nomes como Chéri Samba, que também foi parar na capa da “Actuel”). O equivalente aqui no Rio é a biblioteca da Maison de France, local também central na minha formação e de tantos cariocas. Acho que ainda está em reforma. Quando reabrir agradecerei pessoalmente a seus funcionários, doando exemplar de meu samba em francês. (O exemplar do MIS já está prometido.)

samba francês

22/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/11/2014

A tradução francesa de “O mistério do samba” acaba de ser publicada pela Riveneuve, editora parisiense. É boa maneira de comemorar os vinte anos da minha defesa da tese que deu origem a esse livro. Já havia edições em inglês, italiano e japonês, mas fiquei todo este tempo torcendo pelo lançamento na França. Afinal, em suas páginas descrevo processo de construção de identidade nacional-popular brasileira que não teria acontecido, com toda sua originalidade moderna, sem a influência de Paris.

Sorte: meu tradutor foi o antropólogo Jérôme Souty, autor de “Pierre Verger – do olhar livre ai conhecimento iniciático” (editora Terceiro Nome), obra que já analisa invenções franco-brasileiras. Quem fez nossa apresentação foi Milena Duchiade, através do telefone fixo da sua livraria, a Leonardo da Vinci, um dos mais importantes pontos de encontro de ideias do Rio de Janeiro. Sempre que aparecia por lá, ela me incentivava a batalhar pela divulgação internacional dos meus livros. Como constatava minha inabilidade nesse território, Milena tomou a iniciativa generosa de me colocar em contato com Jérôme, que por sua vez conhecia os editores da Riveneuve e o programa para traduções da Fundação Biblioteca Nacional. Para nossa surpresa, a partir dali tudo aconteceu bem rápido, como nos encontros França/Brasil descritos em “O mistério do samba”.

Escrevi pequeno “avant-propos” para a nova publicação. São apenas cinco parágrafos (um deles lamentando a impossibilidade de Gilberto Velho folhear esta versão da tese que orientou), mas consegui citar novamente lista muito parcial de convidados que provaram feijoada (e compotas de bacuri) no apartamento parisiense de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade em 1923: Cocteau, Léger, Brancusi, Satie e, claro, Cendrars. Quando me deparo com esses nomes, o que mais me intriga é outro mistério, paralelo ao do samba: quem cozinhava? Oswald? Tarsila? E as compotas de bacuri (logo bacuri!), hoje ainda difíceis de serem encontradas no Rio de Janeiro? Eram bagagens de viagens em navios transatlânticos?

O “avant-propos” também inclui uma brincadeira que aqui transformo em pergunta implicante: como Woody Allen não incluiu essas feijoadas em “Midnight in Paris”? Há negros no filme “Manhattan”? Em “Midnight to Paris” eles aparecem em papéis secundários e cenas rápidas. Mas tudo ali se passa como se a gênese da era das vanguardas fosse resultado de “affair” privado entre artistas dos EUA e europeus, narrativa estabelecida como oficial nas histórias do modernismo (que apenas recentemente estão sendo reescritas para incluir mais diversidade), até outro dia percebido como criação daquilo que depois apelidamos de Primeiro Mundo. Perdemos assim a noção do grau extremo de multiculturalismo nas encruzilhadas artísticas da Paris do início do século XX.

Fico curioso para saber se os artistas brasileiros ou cubanos, entre muitas outras nacionalidades, que viviam em Paris naquela época eram vistos por europeus como mais exóticos ou periféricos do que os americanos do norte. Lembrando: só mesmo depois da Segunda Guerra é que os EUA se transformaram em Império, vendendo também sua arte como fenômeno global (por exemplo, e sem juízo de valor, fazendo com que Gertrude Stein tenha ficado mais conhecida mundo afora do que Oswald de Andrade). Mas qual era o lugar do “resto do mundo” em torno dos anos 1920? Eram tempos em que a “descoberta” da estética africana por Picasso já deixava de ser um choque e virava modismo que tornou possível que movimentos intelectuais em outras partes do mundo valorizassem aspectos “negros” de suas culturais locais. Sim, o jazz fez sucesso em clubes parisienses. Mas fez mais sucesso do que a infinidade de ritmos apresentados por bandas cubanas?

O choque vanguardista de Paris foi impulso decisivo para que os modernistas brasileiros descobrissem também a riqueza do nascente samba e das tradições africanas neste nosso lado do Atlântico. Um dia pretendo comparar melhor o que aconteceu por aqui com situações muito semelhantes em países da América do Sul e do Caribe. Tenho mais informações sobre o exemplo cubano. Um livro como “Nacionalizando a negritude – afrocubanismo e revolução artística em Havana, 1920-1940”, de Robin D. Moore (University of Pittsburgh Press, ainda não lançado no Brasil), revela a importância que a estadia parisiense teve para a geração de Alejo Carpentier voltar para Cuba valorizando uma cultura negra que era ainda percebida com vergonha ou preconceito pela elite local, até então encantada pela imaginária pureza branca da alta cultura europeia. Assunto de sobra para a próxima coluna.

quem tem medo de espectro? – o retorno

15/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 14/11/2014

Não consigo mais escrever sem internet. Fico o tempo todo alternando “abas”, entre processador de texto e navegador, até para consultar a grafias ou gramática. Então, antes de iniciar esta coluna, liguei o wi-fi, que me respondeu com lista de redes ao alcance: há nove sinais com força suficiente para minha utilização. Mas os vizinhos tomaram cuidado de protegê-los com “cadeados” virtuais. Depois da reflexão da semana passada sobre a “escassez” do espectro eletromagnético, fiquei mais sensível para essas demonstrações de desperdício. Claro que seria mais racional, em termos de banda/grana, transformarmos essas redes privadas sobrepostas, e subutilizadas, em compartilhado wi-fi público. Porém, já fizemos escolha pela vida de cada um no seu quadrado espectral.

Sim, conheço movimentos pela abertura de todos esses cadeados, liberando as redes de nossas casas/empresas para quem passa por perto. Custos adicionais seriam compensados quando precisarmos da banda larga do wi-fi alheio. Pena: a indústria do medo nos faz pagar caro por isolamento, afirmando que qualquer abertura nos tornaria vulneráveis para ataques de ladrões de dados, como se toda conexão com a internet não fosse já arriscada (mesmo com todos os cadeados do mundo) ou como se as redes sociais, nuvens e governos não espionassem todos nossos passos eletrônicos. Não adianta: eu e meus nove vizinhos pagamos dez vezes pela “mesma” conexão.

Manuais de modem/roteador nos ensinam que espaço público deve ser evitado. Parece com congestionamento de SUVs blindados na porta de colégios de elite. Dizem as cartilhas de segurança: transportes públicos são perigosos. Resultado: em vez de brigar por melhores (em todos os aspectos) linhas de ônibus, os “poderosos” fogem das ruas, deixando o “comum” para quem “depende de programas sociais”. Abandono também visível na decadência dos orelhões – que não por acaso têm nome oficial de “telefones públicos”. Tudo indica que a “sociedade” já fez a escolha, aparentemente mais cômoda ou segura, de trocá-los por celulares privados e pela dependência de operadoras e fabricantes de “obsolescência programada”.

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Estou parecendo velho comunista, perseguindo espectros, incluindo nostálgica ternura por wi-fi compartilhado? Enquanto escrevia o texto da sexta-feira passada, com link para o “Manifesto Comunista”, fiz pesquisa paralela sobre a utilização do termo “espectro” na obra de Marx e Engels. A língua alemã tem a palavra “Spektrum”, mas no “Manifesto” encontramos “Gespenst” que tem mais cara de “fantasma”. Tanto que quando apareceu em inglês pela primeira vez foi traduzido por “hobgoblin”, adequado para personagem de Tolkien. Traduções posteriores preferiram a maior seriedade de “spectre”. Mesmo assim, como demonstrou Derrida em seu “Espectros de Marx”, continuamos numa cena hamletiana, entre fantasmas e fetichismos (hoje fantasiados de “hedge funds” que rondam as novas crises do capitalismo).

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Descobri, lendo a página “Verso” deste jornal (aquela que brinca com nossa percepção do real alterando o sentido da leitura), a comemoração dos 150 anos da Primeira Internacional, quando “os trabalhadores do mundo se uniram”. Tanto tempo depois, os fantasmas ocupam o centro do palco das representações mesmo sindicalistas: estamos aprendendo a lidar com “trabalho imaterial” ou com o “precariado”.

Hoje, em Nova York, tem início conferência chamada “Trabalho digital”, que pretende colocar em debate novas formas fantasmagóricas de trabalho (terceirizado, free-lancer, flexibilizado etc.), incluindo a polêmica sobre a definição do que fazemos nas redes sociais como “criação de valor” ou “exploração trabalhista” para/por empresas donas desses espaços (públicos? privados?) de convivência, onde temos avatares e encontramos robôs e “fakes” a cada instante. Multidões de espectros rondando nossas vidas. Novos invasores de corpos.

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Quando Agostinho da Silva será descoberto em outras línguas, para além de nosso mundo lusófono? Em “Vida conversável”, publicado em 1994 pela Editora da UNB, ele defendia claramente a “abolição da obrigação do trabalho”. Nosso eterno professor lutava por um mundo em que “a máquina chegue a sua máxima elaboração, cujo fim será o de nunca nos oprimir, em que só tenham que trabalhar com ela os homens que lhe tenham amor, homens que estejam apaixonados pela máquina”.

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Anunciado na coluna passada, o crowdfunding (“ajude-nos a construir o futuro que a humanidade merece”) do Ind.ie conseguiu arrecadar 43% de US$ 100 mil em menos de 24 horas. Mesmo sem contribuir todo mundo precisa ver o vídeo da campanha em https://ind.ie. Aparentemente nem os fantasmas ficarão fora da nova nuvem.

quem tem medo de espectro?

08/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/11/2014

Um espectro ronda o planeta. Agora não é o espectro do comunismo. É o espectro eletromagnético – congestionado, loteado, disputado, central na vida de todos os terráqueos. Com a popularização dos smartphones, mesmo o mais comum dos mortais passa a ter consciência desse problema que antes parecia ser apenas científico, regulamentado por agências técnicas, sem passar por debates parlamentares. Hoje, cada vez mais gente transmite/recebe quantidades cotidianas cada vez maiores de dados. Trocas de vídeos de centenas de megabytes são ocorrências banais, visíveis não só em telas de tamanhos variados, mas em planos 4G, 5G e boletos mensais. Li que as operadoras brasileiras vão acabar com aquela prática de transmissão mais lenta, sem custos adicionais, depois que limites contratados são ultrapassados. Sinal que nem a banda mais larga do mundo será suficiente para saciar nossos desejos culturais de altíssima definição? Contra a abundância dos HDs e dos processadores, esbarramos na escassez espectral? Vamos ter que racionar água e ondas eletromagnéticas?

Na próxima quinta-feira o governo dos EUA realizará leilão para uma faixa de espectro chamada AWS-3, realocando frequências até agora utilizadas principalmente para comunicações militares. Concorrentes como as operadoras AT&T e Verizon estão na disputa que prevê lances iniciais de mais de U$ 10 bilhões. Explicação básica: espectro é bem público, por isso são os governantes de cada país que decidem quais as regras, incluindo preços, para essa utilização. É fonte de arrecadação considerável. E como geralmente é também multibilionária, poucos “players” podem entrar na concorrência. Resultado: duas ou três empresas passam a monopolizar o acesso para as “estradas” que possibilitam qualquer comunicação.

A escassez também é gerada por essa realidade comercial. Hoje todos podemos produzir qualquer tipo de conteúdo, mas para essa produção circular dependemos de quantidade ínfima de operadoras, de fabricantes de aparelhos e de provedores de serviços (inclusive para armazenar nossos dados mais e mais pesados). A nuvem também tem poucos donos, outros bilionários (Google, Amazon etc.) que podem manter parques de milhares de computadores capazes de guardar com segurança os trilhões de vídeos, fotos, áudios, textos criados todos os minutos. Estranho: a internet começou descentralizada, mas paradoxalmente caminha para ser ambiente perigosamente centralizado.

Sim é assunto árido, difícil, pois depende de conhecimentos técnicos de ponta. Porém, como sempre nos ensinou Bruno Latour, as questões políticas mais importantes hoje envolvem ciência cabeluda: genoma, clima, transgênicos, clonagem, vírus (naturais e artificiais) e tanta coisa complicada mais. Não adianta: sem estudar isso tudo, deixamos nosso futuro na mão de políticos, ou os políticos deixam na mão de técnicos que não foram eleitos por ninguém para determinar o rumo do mundo. Então precisamos esquecer a preguiça e prestar atenção nos sinais de resistência que felizmente aparecem em muitas frentes.

Por exemplo: quem determinou mesmo que o espectro tem que ser escasso? Há pesquisas realizadas no mundo inteiro (inclusive no CPqD brasileiro) sobre rádio cognitivo (ninguém precisa se assustar com esses nomes), que apontam para a possibilidade de compartilhamento inteligente do espectro. Roteadores saberão identificar frequência de onda sem utilização naquele momento, redirecionando seu tráfego de dados para lá. Se seguirmos esse caminho, não haverá mais donos únicos para cada faixa.

Outras experiências: desenvolvimento do conceito/prática peer-to-peer como alternativa, para a invenção de uma nuvem compartilhada ou para parques públicos de computadores (vide o projeto Our Grid, da Universidade Federal de Campina Grande, lançado em 2004). Além disso, há cada vez mais projetos de máquinas “abertas”, com sucesso crescente, como o Arduino ou o Raspberry Pi, usados até por crianças (como o Júnior, computador da novela “Geração Brasil”). Uma mistura disso tudo tem o início de seu financiamento coletivo marcado para amanhã: chama-se Indie, e inclui a criação de nuvem (vai se chamar “estratosfera”), sistema operacional, linguagem de programação, cliente de sincronização entre aparelhos e muito mais, tudo isso livre e desembocando no lançamento de um smarphone aberto, com serviço no qual nossos dados não serão propriedades de nenhuma empresa. Impossível? Utopia liberal, anarquista ou comunista?

Bom ficar de olho nesse crowdfunding. Não é prudente descartar essas propostas ousadas como piração. Afinal, menos de duas décadas atrás, o Google parecia ideia pirada de frequentadores do Burning Man.

ostentação 12014.0

01/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 31/10/2014

Tempos atrás, a Maison Martin Margiela era grife estabelecida fora do radar do consumo de luxo de massa (sim, luxo e massa não são mais termos contraditórios, como comprovam as bagagens de turistas Classe C vindos de Miami). Toda sua estratégia de marketing incentiva exclusividade radical, ostentação camuflada de invisibilidade, atitude de artista conceitual (obra cara contra o mercado). Por isso é surpresa acompanhar hoje sua transformação em objeto de desejo do hip hop. “Maison Margiela” é nome de música do Future, nova sensação do rap. Ou citação na letra de “Se joga” (“o swing dela” rima com “eu tô de Margiela”), pós-funk-carioca de Naldo Benny.

Talvez essa tendência – podemos chamá-la de Ostentação 2.0? – tenha sido fundada por Kanye West. Não por acaso o figurino de sua turnê mais recente, que também tem a colaboração da artista conceitual Vanessa Beecroft, pode ser pensado como desfile das peças mais “icônicas” da história da Margiela. Ítens do vestuário usado no palco foram colocadas à venda com preços amargos, mas sempre esgotaram suas tiragens limitadas. É uma confusão high/low, abundância/escassez bem característica de nossos tempos, que tem nos astros do hip hop seus principais comentaristas/arquitetos-de-sensibilidade.

Mesmo quando era cultura de gueto, e periferia ainda não tinha a centralidade cultural atual, o hip hop já construía as pontes artísticas mais improváveis entre mundos artísticos nascidos para viver sem contato uns com os outros. Sonoramente, havia a aliança entre o pop e as ferramentas menos populares da música erudita contemporânea (as colagens concretas, por exemplo). Visualmente, o grafite logo colocou as ruas nas galerias.

Indumentariamente, os rappers também anunciaram a reinvenção do mercado das grifes de luxo que aconteceria, com sucesso avassalador, nas décadas seguintes. O início dessa história está bem contado no artigo “Harlem Chic”, que o crítico Kelefa Sanneh publicou em março de 2013 na New Yorker (que maravilha que essa revista tenha seu arquivo aberto na internet – aproveite enquanto a política é mantida). Sim, havia a celebração das marcas esportivas (a dupla Run-DMC lançou hit chamada “My Adidas”), mas já nos anos 1980 grifes como Gucci ou Louis Vuitton, quando eram consumidas apenas por milionários, fizeram sua estreia em capas de LPs. Tudo por culpa de Dapper Dan, criador das melhores roupas dos primeiros rappers (e de vários traficantes da época), fazendo com as agulhas de costurar o que os DJs inventavam com as agulhas dos toca-discos: remixes juntando (contra a legislação de copyright) elementos de procedências/propriedades diferentes.

Kanye West e sua geração (terceira ou quarta na história do hip hop?) levou essa nova tradição para o próximo nível. Quando grava seus primeiros discos, o rap já não é mais periferia, mas sim o centro econômico da indústria fonográfica, com sua rede de artistas ricos e poderosos, constituindo uma nova elite do entretenimento (hoje as revistas de celebridade acompanham a vida de Jay Z/Beyoncé/Blue Ivy com tratamento de família nobre). Usar Vuitton ou Gucci não impressionava, era a regra. Kanye começou a explorar universos mais exclusivos, que não são comprados apenas com muito dinheiro. Passou a andar cercado de arquitetos, designers, artistas, que possuem outros códigos de ostentação. Daí Margiela.

Todos sabem: Kanye é megalomaníaco, egocêntrico, se acha o tal. E é o tal. Nunca verei outro show com tanto swag como aquele perfeito que apresentou no Tim Festival (para horror da crítica local) ocupando sozinho um palco imenso em viagem intergaláctica. Logo depois (ou logo antes?) da vinda para o Brasil, ele fez apresentação para o canal VH1 que depois foi lançado em disco (pena que com cortes em muitos discursos confessionais que fazia durante as músicas). Adoro o medley “Heartless/Pinocchio Story”, com sua entonação especial para versos que dizem que pode comprar Gucci/Vuitton/YSL mas nada disso poderá tirar “sua mente desta prisão”. Mas o trecho mais comovente, terapia pública sobre a tragédia desse grau de celebridade, está nos momentos finais de “Flashing lights”: “cometi erros, mas eles me fazem crescer, como se eu tivesse que lutar para ser eu mesmo, mas tenho que liderar a luta, pois isso ajuda todos a ser quem querem ser.”

Ostentação de erros que não podem ser cometidos por mais ninguém fora do círculo íntimo dos superpoderosos. Estou lendo “Antes da história”, de Alain Testart (mais uma vez obrigado pela dica, Marco Veloso). Os primeiros ricos, no neolítico, davam festas para construir megálitos. Pura ostentação. Hip hop como megálito do agora. Vitória do Bronx.


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