Kim Stanley Robinson

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/01/2015

Ainda estou em clima de Ano Novo. Ou estou ainda me preparando para o ano do clima. Não me refiro ao calor estonteante do Rio neste início de janeiro, quando a “sensação térmica” chegou para ficar em previsões e imaginários. Penso já na conferência do clima daqui a onze meses em Paris, e na longa preparação até lá, para que não termine em novo impasse diplomático-científico-cultural-natural. E penso também em microgênero narrativo que tem tudo para se tornar onipresente nas próximas listas de final de ano: vivemos tempos de “cli-fi”, ou “climate-fiction” (ficção climática).

O termo “cli-fi” surgiu em 2008, mas só foi realmente popularizado no final de 2014, com o lançamento do filme “Interestelar”. A inspiração do batismo vem obviamente de “sci-fi”, ficção científica. Mas não trata apenas do futuro. “Cli-fi” pode ser qualquer obra ficional que aborde questões ecológicas ou mais especificamente o aquecimento global, por isso tem gente que prefere o rótulo “eco-fiction”. Gosto do som kraftwerkiano de “cli-fi”. E da sua concisão visual, apesar de significado vago e contestado por muitos artistas celebrados como expoentes da micro-já-quase-macro-nova-tendência.

Tomara que o hype “cli-fi” chame a atenção – foi o caso comigo – para obras inclassificáveis e geniais como a do escritor Kim Stanley Robinson (KSR). Estranho ter passado tantos anos sem ler seus livros ou mesmo sem ouvir falar do seu nome. Não sei nem se há algo lançado no Brasil. Tive primeiro contato com seu pensamento através da coluna “Top ten” da “Art Forum”, que convida sempre uma pessoa interessante para listar dez coisas que lhe interessa. O “dez mais” de KSR, inseridos na edição do verão 2014 da revista, logo me chamou a atenção por fugir totalmente do mundinho da arte contemporânea circundante (mesmo quando a capa era sobre quadrinhos). Em primeiro lugar aparecia uma mochila ultraleve usada em caminhadas na Sierra Nevada. Em seguida havia a pintura dos leões na caverna Chauvet, flores, fotos de Marte, um disco da banda We Are Scientists e poemas de Emily Dickinson. Resultado: comprei seus dois livros mais recentes, “2312” e “Shaman”, imediatamente.

Fiz as duas leituras simultaneamente. Quando me cansava de um livro partia para o outro, alimentado pela vertigem da viagem radical no tempo: “2312”, é claro, se passa daqui a quase três séculos, pertinho se comparado aos aproximadamente 30 milênios para o passado que nos separam da Era Glacial de “Shaman”. Mesmo com toda essa distância temporal há links entre as narrativas, até alcateias de lobos caçando renas.

“2312” é assustador, mas deslumbrante, um dos melhores livros de minha vida. Acredito que Marina Abramovic tenha opinião semelhante, pois fez questão de entrar em contato com KSR depois da leitura, revelando sua identificação com “Swan”, a protagonista nascida no planeta Mercúrio, que realiza “land art” e performances (respectivamente chamadas pelos substantivos “goldsworthy” e “abramovic”) em todo o sistema solar. Tudo se passa depois que o aquecimento global já produziu o pior, e o nível dos oceanos subiu dez metros e Nova York virou uma nova Veneza com portarias para barcos no quarto andar dos edifícios.

Dá para perceber: KSR se considera um escritor utópico, não distópico, como é mais comum na ficção científica. Enfrentando o pior, a humanidade deu um jeito de sobreviver, agora em diáspora pelo sistema solar. Em 2312 visitamos cidades sobre trilhos (escapando dos raios solares) em Mercúrio, viajamos de carona em asteróides ocos (com biomas diferentes no seu interior), acompanhamos a briga entre duas facções chinesas com propostas diferentes para a terraformação (tornando o planeta habitável para espécies terrestres) de Vênus, presenciamos a chuva de animais em extinção de volta para Terra (o único reduto capitalista, o resto funciona em algo como economia da dádiva pós-anarquista), surfamos nos anéis de Saturno. Sim, tem hora que lembra “Viagem ao céu”, da turma do Picapau Amarelo. Mas juro: tudo parece possível, cientificamente provável. Os conhecimentos de KSR sobre biologia, astronomia, filosofia politica etc. são enciclopédicos. Quem duvidar pode procurar na internet por vídeo de palestra no Smithsonian, onde ele fala em menos de 15 minutos sobre todos os nossos planetas vizinhos.

Não vou ter espaço para falar de “Shaman”, com as aventuras da tribo que pintou a caverna Chauvet (aquela do filme do Herzog). Recomendo outro vídeo com Ursula K. Le Guin e sua bela leitura de trecho de capítulo final desse livro de seu discípulo. E no ano do clima fico esperando também o lançamento, previsto para maio, do próximo livro de KSR: “Aurora”.

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4 Respostas to “Kim Stanley Robinson”

  1. Andre Manoel Says:

    Acho que você não deve deixar de ler a série de Marte (Red, Green e Blue Mars), do qual o 2312 e o Shaman fazem parte. Tem toda uma visão de um novo mundo sendo construído em bases diferentes das da Terra, até levar a esse resultado do 2.312.

    Um outro livro que talvez se enquadre nessa classificação de cli-fi talvez seja o Heavy Weather do Bruce Sterling, com ênfase nos tornados, mais frequentes graças ao aquecimento global.

  2. hermanovianna Says:

    Sim, boa lembrança, Heavy Weather! Cada vez mais pesado…

  3. Alberto Mussa | Hermano Vianna Says:

    […] diferente, e surpreendente, aconteceu quando descobri Kim Stanley Robinson, lendo “2312” três anos atrás. Tenho certeza: não piso mais na Terra da mesma forma. […]

  4. aeons, erebons e outras coisas mais | Hermano Vianna Says:

    […] podcast, o que registra a conversa entre George R. R. Martin e Kim Stanley Robinson (mais sobre KSR aqui). Tem a ver com aspecto desse assunto “bolhas” que dominou este blogue recentemente. […]

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