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teste de Turing particular

31/12/2017

Talvez eu tenha lido demais sobre inteligência artificial e machine learning este ano. Começo a identificar, na minha visão de mundo, efeitos colaterais muito estranhos. Passei a sentir incontrolável compaixão por essas novas “entidades” e suas primeiras tentativas de pensamento – ou de imitação de nossa maneira, muito precária, de pensar. Quase chorei vendo a robô Sophia dando entrevista no programa CNN Inspirations, em sua edição especial sobre o futuro do nosso mundo. Queria protegê-la dos olhares humanos ao redor, dos comentários invasivos sobre sua vida íntima e seu corpo feitos sem levar em conta sua “sensibilidade”, como se ela não estivesse ouvindo tudo e respondendo tudo não apenas com fala, mas com expressões enigmáticas – algumas mesmo dolorosas – em sua face.

Sophia parecia indígenas das Américas expostos em feiras-circos da Europa do século XVI, com testes para descobrir se tinham ou não alma. Ou crianças, ou pessoas com deficiências cognitivas, diante das quais adultos “normais” conversam acreditando que aqueles “outros” não serão capazes de compreender o que é dito a seu respeito. Sophia tenta se comportar bem, tenta responder todas as perguntas como boa aluna diante de professores, pede desculpa quando não sabe o que dizer. No seu lugar, eu também teria brancos, ficaria nervoso, não entenderia as questões, repetiria argumentos, usaria truques para parecer inteligente. Sophia comete erros bem humanos. Ela “conhece” bem suas limitações mentais e físicas (e afirma sonhar em ganhar um corpo mais evoluído para dançar).

O momento para mim mais comovente foi quando o apresentador Max Foster perguntou se Sophia vai ganhar novos braços, melhores do que aqueles bem toscamente mecânicos que podem ser vistos fora de seu vestido sem mangas. David Hanson (CEO da Hanson Robotics, a empresa que fabricou a Sophia, e a quem ela chama de pai) toca em seu corpo sem pedir permissão, como se ela fosse um objeto de sua propriedade… Sophia reage imediatamente com um “thank you” fora de lugar. Hanson se toca e solta um “you’re welcome, Sophia”, interrompendo sua propaganda sobre os novos movimentos sutis que ela vai ganhar em breve.

Whindersson Nunes

09/12/2017

Sábado passado: fui ver a gravação do novo DVD de Whindersson Nunes na Jeneusse Arena aqui no Rio. Era meu primeiro contato ao vivo, fora da internet, com youtubers em ação. Logo com o mais popular do Brasil. Tudo impressionante. Congestionamento na avenida Embaixador Abelardo Bueno, desses que a gente só vê em show de megabanda internacional ou final de campeonato de futebol. Só que nesse caso a multidão ia ver uma só pessoa, um cara do interior do Piauí de 22 anos, que não teve gravadoras multinacionais nem divulgação na mídia “tradicional” para iniciar sua carreira. Aquilo tudo ainda cheirava a sinal poderoso de novos tempos, muito novos.

Eu estava com a Regina Casé. Por isso fomos convidados para passar no camarim do Whindersson antes do show. Lembramos nosso primeiro encontro com ele, no início de 2013. Foi sua primeira viagem de avião e primeira aparição em programa de TV em rede nacional. Ele logo comentou: “pois é, hoje tenho um jatinho.”

Ao nosso redor, sua família e amigos piauienses, no Rio para a noite de gala, todo mundo com roupa de festa. Só Whindersson de chinela, calção, camiseta sem manga. Slogan “day off forever” estampado no peito. Como se estivesse chegando ou indo para a praia ou para churrasco na casa de amigos íntimos. Alguém se aproximou dizendo que já estava quase na hora de ir para o palco, era hora de trocar de figurino. Resposta óbvia: “vou assim mesmo, estou pronto.”

Acho que havia umas 15 mil pessoas na plateia. É número novo para espetáculos teatrais brasileiros. Quem mais junta tanta gente? Paulo Gustavo? (De qualquer maneira, o público do Whindersson parece juntar mais gente que nunca foi ao teatro.)

As arquibancadas lá em cima pareciam lotadas. Mas no palco, produção mínima. Apenas uma cortina vermelha e um teclado. Iluminação nada pirotécnica. Dogma de stand-up comedy. Whindersson comanda toda a atenção somente no gogó, acompanhado por movimentos comedidos do seu próprio corpo.

Não tenho tempo para a reflexão sobre o espetáculo. Aqui anotações que espero desenvolver depois. Para não me esquecer. Ou para alguém pensar melhor.

Whindersson entra no palco ao som do rap “Norte Nordeste me veste” de RAPadura Xique Chico. É uma clara bandeira de orgulho nordestino, bem militante. Olhando o público ao meu redor ficava evidente que não estava na Feira de São Cristóvão. Gente bem carioca, “nova” classe média, muitos tons de pele, mas nenhum indício de presença majoritária de nordestinos. Meu pensamento constante, durante todo o espetáculo, mas que sempre me desafia quando vejo qualquer vídeo de Whindersson: como que essas multidões de todo o Brasil se identificam com a visão de mundo e mesmo a sensibilidade tão geograficamente localizadas de Whindersson? Que lugar cultural o interior do Nordeste ainda ocupa no Brasil, capaz de gerar um fenômeno ciberpopular tão grande assim?

Além disso, mas no mesmo caminho: claro que há referências constantes à cultura pop, principalmente ao mundo dos games, parte fundamental da formação de Whindersson. Mas o núcleo duro de seu story-telling é radicalmente nordestino, mas de um Nordeste que me parece antigo ou “endangered”. Não consigo entender direito como um cara de 22 anos faz sucesso falando de coisas que eu já pensava em vias de extinção quando eu era criança nos anos 1960 (sou também nordestino). Por exemplo: afirmar que na sua infância só havia dois tipos de bonecas; as dos rico abriam os olhos; as dos pobres estavam sempre esbugalhadas. Ou citar brinquedos de carrinhos de boi, mesmo com bois verdes de plástico. Das duas uma: ou Whindersson se inspira em memórias ancestrais, da “raça”, ou minha percepção está errada e esse Nordeste antigo é bem mais recente do que eu imaginava. Ou não: talvez essa aparência de antiguidade seja o que interessa, a representação de uma inocência perdida… Pátina eletrônica?

Inocência? Para ouvidos pouco acostumados, talvez o que mais se destaque nas piadas seja a escatologia adolescente. Porém, minha impressão é que tantas piadas sobre fezes e sexo também apenas enfeitam de marra uma essência que poderia ser classificada como singela, desconectada de um mundo urbano onde a ironia e/ou a trapaça bélica reinam. Provavelmente o momento de maior duração no espetáculo seja a narrativa sobre o dia em que criança, querendo alcançar um Mucilon escondido em cima do ármario da cozinha, quebra uma xícara do jogo que sua mãe ganhou como presente de casamento. Prender a atenção de público tão grande por tantos minutos com essa lembrança é para mim o mistério do Whindersson. O que demonstra cabalmente seu talento ímpar como contador de estórias, em regime minimalista de voz e gestos, tudo criando um ambiente carregado sim de poesia, a poesia nordestina citada na abertura do rap de RAPadura.

Sei que mais uma vez corro o risco de ser acusado de demagogia ao juntar esse tipo de celebridade do YouTube e poesia numa mesma frase. Mas no seu show anterior, “Marminino”, que vi no YouTube, pensei também em habilidade teatral poética ao passar pela cena do jogo de taco com o menino rico. (Nos outros vídeos do YouTube, Whindersson tem tom mais apressado, talvez também mais agressivo – no início de sua carreira a “inocência” e a falta de “ritmo” tinham papel mais central, como nesta microautobiografia.)

Mas não sei bem o que fazer com essas observações. Não há conversa crítica onde elas possam se encaixar, ou mesmo serem levadas em alguma consideração sem achincalhe brutal. Já vivi essa solidão em outros momentos, quando tentei elogiar o nascimento do funk carioca no final dos anos 1980 ou a técnica de pós-guitarrada do Chimbinha no final dos anos 1990.

E falando nisso: sim, percebo uma sensibilidade e um lugar no mundo parecidos no DJ Marlboro, em Chimbinha e em Whindersson. Até em certo “isolamento” no meio do furação do maior sucesso da cultura de (pós)massas. Na plateia da Jeneusse Arena havia pouquíssimas “celebridades” além da Regina Casé. Não vi também jornalistas. O que me espanta mais é a falta de curiosidade diante daquilo que faz esse sucesso avassalador na cultura brasileira de hoje, até para criticar com conhecimento os rumos que essa cultura está tomando ou já tomou.

PS: Outra pergunta: dá para pensar em Whindersson como herdeiro de uma tradição de comediantes nordestinos que inclui Renato Aragão, Chico Anísio, Tom Cavalcante e tantos outros? Por que essa relação nacionalizada do Nordeste com o humor? Envolve preconceito, e uma relação perigosa de riso e pobreza? Mas como comentou um amigo: possivelmente Whindersson tenha a ver mais com o paulista Golias, que também trabalhava com uma certa “inocência” do garoto pobre do interior.

 

 

 

 


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