Aviso para quem pretende ler The bone clocks: este post contém spoilers. Acredito que nada do que vou revelar estraga o prazer da leitura. Mas quem avisa, amigo é. Há poucas coisas no mundo que eu valorize mais do que uma boa amizade. Na dúvida: entre este post e o livro, leia o livro, é sensacional. Então, iniciando o post:
Quando a pandemia começou, para ficar mais aterrorizado, logo me lembrei da sexta e última seção de The bone clocks, romance que David Mitchell lançou em 2014. Não tenho meu exemplar, todo anotado, aqui comigo. E tenho péssima memória: chego ao cúmulo de me esquecer do final de ET (confesso agora que não sei se ele conseguiu ou não escapar da Terra quando termina o filme, por isso posso rever/reler qualquer narrativa inúmeras vezes com a mesma surpresa – o que é bom para a vida real mas péssimo para a intelectual). Então vou tentar aqui falar do que me lembro, sem certeza se é o que está realmente no livro (não sei se é delírio meu mas acho que há até um Daniel Galera, escritor brasileiro, como personagem). Não vou escrever nada sobre as cinco seções anteriores, mas recomendo com fervor a leitura pois tem a ver com muita coisa que estamos vivendo agora, como pano de fundo para a crise médica: teoria da conspiração pesada, tudo narrado quase como se fosse um jogo eletrônico alucinado. A sexta seção é um epílogo negro, o principal da ação já aconteceu, inclusive a catástrofe climática. Bom pra gente se preparar: se há quem ache que o que estamos coletivamente e globalmente vivendo é insuportável, imagine o que vem por aí: para começar, cai a internet e a rede de eletricidade. No livro, a nova era se chama Endarkenment.
A China mantém controle e ordem, e uma vida “normal”. Mas no resto do mundo milícias disputam todos os territórios, roubando painéis solares que por sorte havia em algumas casas para gerar energia para seus QGs. Seitas religiosas que acreditam que tudo aconteceu por castigo divino contra os pecados da modernidade tentam impor um novo puritanismo e um único credo. Todos os detalhes medonhos bem plausíveis e previsíveis. No meio de tanto problema épico, não consigo entender a razão para minha lembrança mais vívida de todo o longo romance é um fragmento de cena onde a Holly Sykes, personagem principal que começa sua saga ainda adolescente escutando acho que Talking Heads num recém-lançado Fear of music, diz que o que mais (isso pode ser exagero meu) sente falta da era pré-Endarkenment é xampu de melaleuca da Body Shop.
(Melaleuca, outro produto da nossa sofisticada globalização, descoberta natural-cultural das investigações seculares de povos nativos australianos…)
Cada um(a) sente falta do que pode. Eu, em vez de ir ali pingar colírio alucinógeno, vou começar um estoque de sabonete de andiroba.
Tags: David Mitchell, The bone clocks
Deixe um comentário