Eu sabia que gostava da música de Castello Branco mesmo sem ter escutado nada de nenhum do seus discos, ou sem ter lido nada sobre sua carreira. Era uma simpatia do nada, sem motivo. Comprei seus discos. Mas não ouvi nenhuma faixa. Ficaram ali, esperando uma ocasião para apertar o play. Isso aconteceu agora, em pleno confinamento, cada vez mais preocupado com tudo. Entendi: era para isso, para este aqui/agora, que aqueles discos estavam ali aguardando o contato imediato com minha audição. O efeito foi uma maravilha: parecia que eu tinha acendido um incenso bonzão, ou mesmo mágico, poderoso, na casa. De repente, aos primeiros acordes e versos, as coisas ganharam outro sentido.
Comecei pelo disco mais recente, Sermão, lançado no final do ano passado (dá para ouvir todas as faixas de todos os discos no canal que Castello Branco tem no YouTube). Depois fui para o primeiro, Serviço, de 2013, e em seguida para Sintoma, de 2017 (e também sua versão Castello Dança, de remixes). Acho que fiz a coisa certa: se tivesse escutado os dois primeiros discos antes do lançamento do terceiro, talvez não tivesse ficado tão empolgado. Iria gostar, claro. E entenderia de cara a importância daquele trabalho, tão singular, tão delicado. Mas há um inegável amadurecimento em Sermão, que realiza plenamente aquilo que o que veio antes anunciava. Não há nada sobrando, ou vacilante, neste encerramento da trilogia. Tudo está ali seguro, convicto, sério (mesmo com risos do cantor).
São discos de auto-ajuda, no melhor sentido da ideia de que podemos nos auto-ajudar (eu gosto de auto-ajuda, sobretudo quando é radical como em Jed McKenna). Mutuamente. Coletivamente. Agora isolados nos nossos cantinhos. Como diz a letra de Meu reino, do Sintoma: “meu cantinho é do seu ladinho”. E o distanciamento só faz essa declaração ganhar sentido mais profundo. Chego a pensar, agradecido, que Castello Branco fez esses discos profeticamente, para nos ajudar a passar por essa barra pesada que estamos enfrentando agora. É assim que posso escutar, com certo espanto, a convocação lotada de carinho de Cola comigo: “se o medo apertar cola comigo”. “Eu cuido d’ocê”. E ele pode cuidar mesmo, sem nos impor nada, modo generosidade, dádiva: “pode nem ter a ver comigo mas eu vou”. E é bom seguir seus passos, delicados, sutis: Castello Branco reconhece: “a coisa tá feia”. Mesmo assim acrescenta: “mas eu enxergo lindo”. É um otimismo desesperado, desiludido (daqueles desesperos afirmativos descritos por Clarice Lispector ou Comte-Sponville): de um lado, “estou aqui pra qualquer porra”; do outro, “quanto mais real mais lindo” (Geral importa). O negócio é mais homérico que socrático: “conheça teu calcanhar” (Juntos com certeza). Nada apressado: tudo de Pouquinho em pouquinho (adoraria ouvir essa música cantada por Solange Almeda, que foi do Aviões do Forró e do Caviar com Rapadura). A lenta arte de mudar as coisas para melhor (“não há mal que não possa ter seu fim” – Assuma). Sem “conversa fiada” (também Assuma), com a certeza de quem pode cantar (mesmo tão jovem) “há tanta verdade em mim” (As minhas mães). Desde a primeira faixa do seu primeiro disco (Crer-Sendo), Castello Branco nos ensina: a função do amor é “semear conhecimento”.
Volto aos mesmos adjetivos para dar uma noção de como esse conhecimento é organizado em sons: sutil, delicado, gentil. Singelo. Uma eletrônica natural, interiorana, mixada com instrumentos acústicos, elétricos. Toadas, catiras, xotes. Ecos (eu escuto tudo isto nos detalhes) da Índia de George Harrison, do Friends do Beach Boys (que recentemente se tornou um dos meus melhores de todos os tempos), das maravilhas que Alice Coltrane lançou em cassette só para consumo no seu ashram (o gosto por canto coral…), de Wagner Tiso, de Elomar. Tudo tranquilo. Sem tempo ruim. Tudo firmeza. Oferta. Vigília.
PS: falando em otimismo desesperado, recomendo muito este artigo de Kim Stanley Robinson.
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