Mory Kanté foi mais uma vítima da pandemia. De forma indireta: ele morava na Guiné mas fazia tratamento médico na França. Na impossibilidade de viajar, com a Europa em lockdown, os cuidados foram interrompidos e a piora da sua saúde foi fulminante. Tinha 70 anos, poderia ainda fazer muita música boa, e continuar nos encantando com sua voz, sua kora e sua sofisticada cultura de griot mandinga modernista. Como nos encantava desde criança e nos anos 1970 como membro da mítica Super Rail Band do Hotel da Estação de Bamako.
Tive a honra e sorte de entrevistar Mory Kanté no momento em que sua música Yé ké yé ké era primeiro lugar nas paradas de sucesso de países como Holanda e Israel. Uma novidade enorme no cenário pop global: parecia que a diversidade tinha chegado para ficar. Eu era parte da equipe do documentário African Pop. Estávamos em Paris, depois de passar por Lagos, Kinshasa e Dacar. A capital francesa tinha se tornado também a capital daquilo que poderia ter sido chamado de “sono mondiale” se o rótulo “world music” não tivesse vencido a guerra cultural.
A entrevista aconteceu no pequeno apartamento onde Mory Kanté morava, num conjunto habitacional da periferia parisiense. Estranho contraste: não havia elevador, subimos o equipamento por escadas escuras, grafitadas, com cheiro de urina, tudo isso para chegar a um ritual surpreendente: Mory Kanté estava recebendo um nobre da Guiné, que viajara para a França apenas para comemorar seu sucesso pop. A presença de uma equipe da TV brasileira aumentava a pompa e circunstância da ocasião. Foi uma noite de rituais, muitos discursos em mandinga e cantoria até de madrugada. Lugar certo, na hora certa. Beleza pura. Sou só boa recordação e profundo agradecimento agora.
A primeira gravação de African Pop, se me lembro bem, foi uma entrevista com Manu Dibango, este sim vítima direta da pandemia, no camarim do Canecão, quando ele estava no Rio promovendo seu maravilhoso disco Afrijazzy (que som poderoso ainda tem). Outra grande honra: Manu Dibango de Soul Makossa, uma das melhores músicas de todos os tempos, ou de Electric Africa, a celebração de novas tecnologias africanas.
Como disse Youssou N’Dour (que entrevistei na passagem de som do concerto do SOS Racisme em estádio de Dacar – depois assisti seu show da plateia, ao lado de uma turma tuareg): Mory Kanté é um baobá da cultura. Mestre. Manu Dibango também. Que bom que temos seus discos para nos consolar, para dançar, para pensar e seguir em frente.
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