recolhas

Sei que é pecado, por isso tenho que confessar: sinto inveja de quem sente tédio durante o confinamento. Não tenho tempo para nada. Cada minuto do meu dia acordado – e estou dormindo pouco, acordo no meio da madrugada angustiado – é ocupado por uma infinidade de tarefas pesadas, muitas ao mesmo tempo. Estou sempre atrasado para as próximas (e faço o maior esforço para escrever por aqui, “trabalho” que é uma necessidade “médica”). Adoraria poder “maratonar”. Não séries. Nunca tive simpatia por séries. Se pudesse, maratonaria toda obra em filme e gravações musicais de Deben Bhattacharya que encontrasse disponível na internet. Que vida e legado incríveis. Descobri seu nome recentemente, que vergonha. Até agora, como trilha sonora para outras atividades, só consegui escutar o que ele recolheu para os discos Music of Uzbekistan (sou fascinado pela Ásia Central e a mistura de culturas acelerada pela Rota da Seda) e Music from Thailand (sou fascinado… enfim, pelo mundo inteiro). Impressionante a qualidade das gravações, das orquestras hollywoodianas uzbeques ao minimalismo “drumming” (penso é claro em Steve Reich) tailandês. Mas gosto até do som ambiente extramusical: gritos de crianças, conversas, tudo enriquece a experiência auditiva. Quase sempre, nesses contextos, a música não é algo para ser admirado em silêncio reverente, mas parte da vida. Uma das experiências musicais mais satisfatórias que tive na vida foi um passeio pelas ruas de Cingapura: primeiro encontrei uma orquestra chinesa tocando para se divertir na frente de uma casa, sem público nenhum, depois entrei num templo indiano na hora em que um grupo de trompas e tambores realizava um cortejo ritual, também sem chamar a atenção dos poucos fiéis que estavam ali, e em seguida, numa igreja católica frequentada por indianos, mergulhei em seus cantos que davam toque tâmil para composições ocidentais. Tudo bonito demais. Mas nada “performance”, separada dos outros atos mais banais do cotidiano. Nada feito para o “público”.

Minha maratona continuaria correndo atrás de parte das 35 mil gravações feitas por Hugh Tracey principalmente no sul e na parte central do continente africano. Nos anos 70, meu pai viajou para a África do Sul e me trouxe de presente uma fita cassette com African dances of the Witwarersrand Gold Mines, Part 1. Não sei quem sugeriu a compra. Eu certamente era um adolescente bem esquisito: este disco se tornou imediatamente um dos mais importantes da minha coleção (é até hoje), revelando uma música tão complexa quanto aquela que encontramos em quarteto de Webern. Mas só recentemente conheci a história da ILAM (Biblioteca Internacional de Música Africana) e de tudo mais que Hugh Tracey produziu em sua vida.

E assim por diante: iria maratonar pelo Portugal (são os portugueses que chamam essas pequisas/gravações de recolhas) de Michel Giacometti (o francês mais lusitano que pode haver), com sua filmografia completa e muito mais.

Como não vou ter tempo para nada disso, deixo todos esses links de partida aqui para quem estiver entediado.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s


%d blogueiros gostam disto: