Os problemas criados pela “digitalização da cultura” se tornaram muito mais agudos durante a pandemia. Certamente não o maior deles: a abundância. Pouca atenção para tanta live, tanto podcast, esse tsunami de streaming. Como se informar sobre a quantidade avassaladora de eventos de todos os tipos, para todos os gostos? Cada pessoa cria seus filtros, seus algoritmos pessoais de recomendação, sua estratégia para navegar feeds-sem-fim identificando aquilo em que vale a pena clicar. É preciso também estabelecer relações de confiança com outras pessoas mais atentas para determinadas áreas da criação artística que não temos tempo para acompanhar. Por isso valorizo tanto quem faz bom trabalho de assessoria de imprensa, escolhendo bem aquilo que divulga com empolgação. Sem os emails da Bebel Prates, por exemplo, eu não teria escrito meu post sobre o BaianaSystem – foi fácil encontrar todas as informações importantes sobre a história da banda relendo as notícias que ela me mandou.
Esta semana recebi mensagem da Mônica Ramalho, elogiando o texto que publiquei sobre Thiago Amud e sugerindo, sem maiores informações, que eu escutasse Sylvio Fraga. Não reconheci o nome. Não tinha a menor ideia do tipo de música que me aguardava. Mas há anos faço boas descobertas a partir do que a Mônica divulga. Desta vez levei sua sugestão imediatamente a sério: no primeiro tempinho, fiz pesquisa no Google e a primeira coisa que encontrei foi a faixa Da vida no YouTube. Fiquei impressionado: parecia parente de um transsamba, com guitarra nervosa e repetitiva, um trumpete em arranjo ousado, um final abrupto. Da letra, na primeira audição, só pesquei evoé e éden – mas tudo indicava consistência de “palavra cantada” bem fora da curva. O YouTube emendou com Sono do burgo, com refrão “idiotas cidades” e uma percussão baiana que me fez reparar o nome Letieres Leite na foto que ocupa o lugar do vídeo.
Em seguida, descobri o site do Sylvio Fraga, vi a lista de livros (li logo uma orelha consagradora assinada por Antonio Cícero), artigos, traduções. Escrevi de volta para a Mônica confessando minha vergonha por não conhecer nada disso antes. Ela, com a paciencia de quem me manda informações sobre Sylvio Fraga desde pelo menos 2013, respondeu indicando a edição deste julho da Piauí, que traz página com sua poesia. Aí sim a coisa ficou séria: que maravilha esse conjunto de poemas. O grito do galo haitiano no celular do taxista na Rio Branco, o peso do bebê, o “me satisfaço com pouca atenção”, os “autoritários da indignação”, a repetição do “peço licença” que repeti no título deste post.
Tudo aquilo foi intimação para dever de casa: escutei os outros discos. São três até agora. Todos extremamente interessantes. O primeiro é mais inocente, mas tem artimanhas de férias no sítio. O segundo é mais urbano, irônico, distanciado, revelando um quinteto poderoso, bem evidente em Nogueira, faixa instrumental. O terceiro, Canção da cabra, vai mais longe: é uma densa viagem sertaneja, com Graciliano Ramos segundo Antonio Candido como guia (e o ínicio de São Bernardo transformado em letra de música). Minhas faixas preferidas são: Dulcinéias, com solo magnífico de flugelhorn comentado por uma bateria da pá virada; Sertões, onde brilha o arranjo para sopros e cordas de Letieres Leite celebrando “a vida sincera de um bicho qualquer”; e Euá, faixa de abertura, para orixá que me encanta desde que li o Senhora das possibilidades de Cléo Martins.
Depois fui ligando as pontas do email da Mônica. Quando escrevi meu post sobre Thiago Amud (que é autor das letras de Da vida, Sono do burgo e Euá) nem tinha reparado que O cinema que o sol não apaga foi lançamento de uma gravadora chamada Rocinante, da qual Sylvio Fraga é diretor artístico. Seu pequeno, mas poderoso, catálogo aponta para muitos novos rumos da música contemporânea do Brasil. Como ia dizendo: problemas da abundância, desta vez problema bom: um email curtinho, pedindo licença, me abre um mundão assim. Infinito, como Guimarães Rosa dizia ser o Sertão.
PS: Como se não bastasse tanta abundância daqui, não paro de escutar a Hala 96 FM, rádio sudanesa. Incrível como não toca nada que eu não goste. Quando ouço algo que, nos primeiros acordes, não bate bem, já sei que é jingle.
11/07/2020 às 20:18
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07/08/2021 às 23:22
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