Der leone have sept cabeças

Antes da pandemia, quando eu podia andar distraído pela cidade admirando o sol batendo nas bancas de revista, houve um momento em que pensei estar tendo alucinação grave. Descobri uma pilha de DVDs com o filme O leão de sete cabeças de Glauber Rocha entre jornais, cigarros avulsos e garrafas de coca-cola. Como assim? Era bem o contrário do “é tudo verdade”, deveria ser fake news, prank de hackers russos, produto de alguma teoria da conspiração tricontinental. Poderia ser só a capa, e conteúdo terrorista no disco, com vírus explode-home-theater. Mas descobri que era produto legítimo de uma coleção de grandes diretores de cinema lançada pela Folha de S. Paulo.

Nunca tinha tido a oportunidade de ver este filme. Não tenho certeza se foi lançado no Brasil antes. Cabeças cortadas eu vi no cinema. Cinema de rua, não cinemateca ou festival. O mundo já foi estranho assim. Mas Der leone have sept cabeças – o título “original” continha essas palavras em várias línguas – era uma lacuna na minha cultura cinematográfica e glauberiana. Não é mais: e como foi interessante ver essa obra agora, depois de tantos anos de estudos pós-coloniais, depois de ter visitado a África várias vezes, inclusive de ter conhecido a Kinshasa do Zaire de Mobuto Sese Seko, na margem oposta do rio Congo filmado por Glauber Rocha. Como tudo aquilo já era de certa forma afrofuturista.

Recentemente andei estudando o uso da música no cinema de Glauber Rocha: Villa-Lobos, Marlos Nobre, Naná Vasconcelos em A idade da terra. Candomblé. Sérgio Ricardo. Em O leão de sete cabeças há apropriações radicais de sons de várias procedências. Surpreso, numa cena ouvi a voz de Clementina de Jesus cantando A marselhesa em português. Outra alucinação? O Google me ajudou a entender o que era aquilo: a viagem de Clementina de Jesus para o festival de artes negras organizado por Léopold Senghor no Senegal, com esticada no festival de Cannes, onde cantou sua versão do hino francês.

Mas escrevo este post para recomendar especialmente uma cena, entre as mais impressionantes já filmadas em toda a história do cinema: muitos africanos trepados numa frondosa árvore, batucando em seus próprios corpos, bem Barbatuques. Todo mundo é obrigado a descer. Fila. Execução por tiros. Todo mundo morre. Sem explicações ou consequências. Fiquei louco com essa cena, e com o resto todo do filme. Como continua atualíssimo no seu gritante e original anticolonialismo.

Pensei em Dziga Vertov. Em Três canções para Lenin. Pode existir filme mais colonialista? E evolucionista. Imperdoável seu tratamento do islamismo. E aquela certeza revolucionária. Vertov estava na ordem do dia quando Glauber filmava na África. O Groupe Dziga Vertov, que tinha a participação do Godard. Etc. Tenho que investigar para saber como tudo isso se relacionava.

Antes disso, trecho de carta de Glauber Rocha, escrita em Roma durante a montagem de O leão de sete cabeças: para Alfredo Guevara: “não se esqueça de mostrar Antônio a Fidel: mas acho que ele gostará mesmo é do filme da África – o mais forte politicamente de todos”.

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