ainda pandemia

Não, a pandemia não acabou. O Painel Nacional: Covid-19, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), agora divulga “dados agregados por semana epidemiológica”. Então sei que o “novo coronavírus” matou 404 pessoas no Brasil, entre os dias 9 e 15 de abril. Foram – para usar lugar comum pandêmico – como dois 737-800 lotados caindo naquela semana, sem ninguém escapar com vida. Há informações vagas e confusas sobre quem morre: difícil, para quem não trabalha na área de saúde pública, conhecer direito suas idades, classes sociais, locais dos óbitos etc. Já li notícias afirmando que a maioria é sem vacina.

Gostaria de ter acesso a mais detalhes. Uma curiosidade nada mórbida e bem básica: quantas dessas vítimas tiveram acesso ao Paxlovid, que já está disponível no SUS? Estudos recentes nos ensinam que esse remédio antiviral tem alta eficácia na redução do risco de hospitalizações e óbitos. Por baixo: 44% (para pessoas não vacinadas: 88%). Fazendo as contas: 44% de 404 seriam 177 pessoas salvas. Não poucas pessoas. Tiveram essa chance de salvação?

Procuro: não encontro – ou chego a um amontoado de números e gráficos impenetráveis para público leigo. É uma tendência mundial (com honrosas exceções como o Painel COVID da Prefeitura do Rio de Janeiro, ou o incansável ourworldindata, ou a valente OMS – que também se recusa a deixar de classificar a COVID-19 como emergência de saúde internacional). Vários sites que monitoravam a gravidade da situação ao redor do planeta interromperam suas atividades, ou pelo menos as atividades diárias.

Um outro caminho poderia ter sido tomado por todas essas iniciativas: no lugar de reduzir a divulgação, por que não ampliá-la, para a população ter cada vez mais acesso, em tempo real, aos dados da “viralização” dessa e de outras (até serem todas) doenças infecciosas? A missão seria: radicalizar o aumento de transparência estatística testado na pandemia.

Meu maior choque foi quando, no dia 10 de março, entrei no site do mapa COVID da universidade John Hopkins e li o comunicado da sua “descontinuação” (como detesto a popularidade dessa expressão, tanto quanto detesto ouvir falar que uma coisa é “robusta”…) Era minha principal fonte de informação sobre a evolução da pandemia nos vários países do mundo, por ter ficado acostumado com seu design e navegação pelos seus vários gráficos (eu consultava também, quase que diariamente, o MonitoraCovid-19, da Fiocruz e do ICICT, mas esse interrompeu as atualizações no dia 26 de janeiro). Bobagem minha: achava que aquilo ali era eterno.

Eterno enquanto dura. E parece que os dados coletados pela John Hopkins – desde o início da pandemia até aquele 10 de março – vão ficar eternamente no ar. Então ainda podemos comprovar que a semana que terminou no dia 15 de janeiro deste ano foi a mais devastadora, desde 2020, em número de mortes por Covid no Japão. Repito: 15 de janeiro de 2023, cerca de 3 meses atrás. Pico da pandemia japonesa. Quando “todo mundo” já repetia que o vírus estava mais “fraquinho” etc. Ninguém sabe explicar como as coisas saíram do controle nesse nível. Aqui a tentativa do Japan Times; aqui a da BBC. Não fico exatamente convencido por nenhuma dessas interpretações. Hipóteses apenas, que precisam de estudos bem complexos para serem confirmadas.

Um consenso em todas as matérias: as pessoas de mais idade foram a maioria das vítimas. Apesar da aparência homogênea (quando vista do exterior), a cultura japonesa é muito diversificada, cada pequena área rural com seus costumes próprios, diferentes da vizinhança, com cada vez mais dificuldade de transmissão para novas gerações. Levando isso em consideração, tenho certeza que morreram sábias e sábios com conhecimentos que ninguém mais detém. Meu luto se aprofunda, assim como aconteceu quando encontrei o Memorial Vagalume e me dei conta dos saberes perdidos com as mortes por COVID entre povos indígenas que habitam o território brasileiro (luto que resultou em homenagem durante a Flip 2021, edição que contou com minha participação em seu coletivo curatorial).

Não acabou. Agora mesmo há rumores de uma nona onda, mais cruel ainda, no Japão. E outra na Índia. Difícil saber quando esses aumentos, e as mortes deles decorrentes, se tornarão “significativos” – ou preocupantes – para a maioria das pessoas ou para instituições que podem cuidar de sua divulgação.

Escrevo tudo isso com enorme cuidado para não parecer que insinuo que há uma conspiração para esconder fatos. Os motivos para a “descontinuidade” dos serviços de monitoramento certamente podem ser mais prosaicos. Monitorar bem custa caro, exige a contratação de pessoas que hoje devem ter coisas mais “significativas” (e não estou sendo irônico) para fazer. E, além disso, quem suporta tantos anos de números diários de desgraça? O mundo quer “virar a página”.

No início da pandemia, minha sensação era de estar vivendo uma crise de proporções bíblicas. Algo assim como uma praga do Egito, que marcaria a História da Humanidade e seria lembrada por vários séculos no futuro, se houvesse futuro. Ou mais: pensei que, se aquilo não fosse o Fim do Mundo, o mundo nunca mais seria o mesmo, nada seria como antes. E ingenuamente cheguei a acreditar que o mundo pós-vacina estaria condenado a ser um lugar melhorado à força pelo trauma. Era sinal, alerta vermelho, de que não poderíamos continuar a viver do mesmo modo.

Hoje percebo que a maioria estava satisfeita com o mundo de antes da pandemia. Não queria realmente mudar nada. Tanto que correu – de forma bem atabalhoada – para voltar ao “normal”. Multidões que, nessa corrida, provam que adoram aeroportos lotados. Ou blocos de carnaval ostensivamente patrocinados.

Quem sou eu para contrariar a voracidade de normalidade (esse tipo de normalidade) do mundo? Considero apenas que as coisas poderiam ter melhorado um pouquinho.

A pandemia tem sido um curso intensivo de virologia. Algumas lições sobre fatores favoráveis para a propagação de doenças infecciosas são agora bem conhecidas por muito mais gente.

Poderíamos, por exemplo, tentar melhorar a tecnologia de ventilação dos ambientes frequentados por muita gente. Mas preferimos gastar dinheiro com sistemas de ar-condicionado, quase sempre de difícil limpeza, com janelas trancadas, mesmo em instalações médicas. É sinal de “modernidade”, ou de “riqueza”. Talvez os únicos hospitais que não seguem essa tendência energeticamente insustentável sejam os da Rede Sarah (viva o arquiteto Lelé). Esse é certamente um dos fatores para que tenham um dos índices de infecção hospitalar mais baixos do mundo.

(Sou suspeito: detesto ar-condicionado. No meu tempo de adolescente eram raros os automóveis com refrigeração interna e ninguém morria de calor. Agora tenho conflitos ao entrar em táxi ou carro de aplicativos e pedir para abrir as janelas [muitos ônibus não têm mais essa opção]. Motoristas passam a viagem de cara feia, não importa a estação do ano. Não gosto de impor nada a ninguém; então geralmente enfrento o trajeto com frio de lascar, imerso no cheiro desses produtos que escondem o mofo. Gosto de vento. Parece que quase ninguém gosta.)

Também seria uma gentileza com pessoas mais vulneráveis (de mais idade ou com problemas de imunidade) usar máscaras quando estamos com sinais de gripe etc. Devo ser pessoa bem rara: máscaras não me incomodam. Continuo usando em várias ocasiões. Também como sinal de luto, ou para não esquecer o que passamos. Outro dia, andando mascarado na rua, quase fui agredido. O cara gritava comigo: “É mentira! Tudo mentira! Até quando?!!!” Estava possesso. Nem olhei para ele, não respondi nada e me afastei o mais rápido possível. Tanto ódio por uma máscara…

Se essas pequenas mudanças (ventilação, máscaras de vez em quando…) parecem impossíveis, o que dizer então de criar regulamentações para evitar a invasão humana, ou de rebanhos de gado, em áreas onde há risco óbvio de zoonoses (doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas)? Sabemos que o Brasil é paraíso para pulos carnavalescos de vírus e outros patógenos desconhecidos de animais para seres humanos, criando muitas possibilidades de novas pandemias.

Não acabou. E não sou eu sozinho agora que vou mudar o mundo, já que o mundo decidiu agir como se tivesse acabado. Não quero estragar a normalidade alheia. Fico quietinho no meu canto, como canta o Wado naquela música que já citei em outro texto. E mantenho, discretamente, outros costumes que adquiri na pandemia.

Continuo ouvindo, toda semana, o podcast This Week in Virology (TWiV), que descobri no meio de 2020 e que há poucas semanas publicou seu milésimo episódio. Durante um bom tempo aquele time de virologistas reunia algumas das pessoas com quem eu mais “convivia”: era reconfortante ouvir suas vozes anunciando as condições meteorológicas em suas cidades, como sempre fazem no início de cada conversa. Mas tenho carinho especial pelos “clinical updates” (aqui o mais recente) apresentados pelo doutor Daniel Griffin. Quase impossível existir alguém mais gente boa no mundo (ainda mais com coleção de gravatas-borboleta). Ou pessoa que trabalhe tanto, com enorme gosto pelo seu trabalho. Quando entro no desespero sem dar conta de tudo que tenho para fazer, penso nele. Como inventa tempo, entre uma UTI em Nova York e trabalho voluntário em Uganda, para ler essa quantidade estonteante de artigos científicos e resumir tudo de forma tão didática para o público do TWiV? E ainda consegue ficar em dia com as novidades da ficção científica.

Outro costume ou tratamento pandêmico: ouvir o programa Night Tracks, da Radio 3 da BBC, como ansiolítico. O problema é que é um excitante também. Muitas vezes lá estava eu relaxadão com a seleção musical e tinha que acender as luzes para anotar o nome de quem estava tocando, e isso detonava busca ansiosa por outros de seus trabalhos. Foi assim no episódio mais recente, lançado dia 19 de abril, com a eletrônica de Beqa Ungiadze, da Geórgia (pouca informação sobre ele na internet). As apresentadoras Sara Mohr-Pietsch e Hannah Peel, com suas vozes calmantes, têm bom gosto inigualável e sabem misturar bem todos gêneros musicais, de todas as épocas históricas: clássico (incluindo o “contemporâneo”), jazz, rock, estilos de todo o planeta etc. No episódio citado, temos de Seckou Keita a Einojuhani Rautavaara, passando por Olivia Channey cantando Violeta Parra.

O denominador comum de Night Tracks: mais que tranquilidade: beleza. Outra lição da pandemia que não acabou: incrível (no sentido de não acreditar mesmo) a quantidade de beleza que o espírito humano já produziu. Apesar de tudo, para além de tudo, de todo apego à “normalidade”. E continuando a lição, incorporando as outras lições-decepções enumeradas neste texto: tanta beleza não melhora o mundo. Não precisa melhorar nada. Basta existir. Bela de doer ou de chorar. Ou bela de provocar alegria aqui e agora.

PS: Por favor: que ninguém interprete este texto como uma lição de moral. Como escrevi acima: “não gosto de impor nada a ninguém.” Não sou dono da verdade ou da pós-verdade – só tenho dúvidas. Não confundir também com opinião indignada. Já concordei com Contardo Calligaris: “a indignação é a forma mais barata de inteligência”. Mas quando clico no link com a fonte da citação recebo como resposta: “A página que você está procurando neste blog não existe.” Desconfio que pode ter sido alucinação bizarra da minha ChatGPT particular… Boa alucinação. Não saberia dizer melhor… E repito: o objetivo principal deste meu blog é ser território informativo, não opinativo. Mais importante que minhas palavras são os links para as palavras, bem mais sensatas e/ou interessantes, de outras pessoas.

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