Archive for the ‘arte’ Category

complementos Ilustríssima 9

15/05/2021

Links para acompanhar a leitura do meu texto de hoje:

o livro com as monotipias de Luiz Zerbini já em pré-vendas

vegetal turn nas artes contemporâneas

humanidades vegetais em Harvard

a vida das plantas, de Emanuele Coccia, na Cultura e Barbárie – a vida sensível também

metamorfoses, de Emanuele Coccia, na Dantes

as plantas de Stevie Wonder

Michael Marder na Serpentine

ele também escreveu um livro sobre poeira

Michael Marder e Santa Hildegarda

Rafael Roma Goethe

01/07/2020

Li que a grande exposição dos 500 anos da morte de Rafael foi reaberta em Roma. Fiz 60 anos na quarentena. Agora posso entrar na fila de idosos. Antes da pandemia, planejava me dar de presente de aniversário uma viagem até a Capela Sistina, onde a tapeçaria de Rafael poderia ser vista por poucos dias (já tive oportunidade de observar os “cartoons” no V&A, incluindo nesta situação afropolitan). Não conheço a Itália. Era um desejo que tinha poucas chances de ser realizado, mas nunca pensei que seria impossibilitado por causa de um vírus e pela proibição – talvez eterna? – da entrada de brasileiros na Europa.

Imaginei essa viagem incentivado por Goethe. Estava lendo Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida, maravilha escrita por Johann Peter Eckermann. Ali, em muitos momentos, há antipatia explícita contra católicos. Exemplo radical (Terça-feira, 7 de abril de 1829 – as Conversações são escritas como um diário): “E não se pode confiar nos católicos. Sabemos a má situação em que se encontraram até hoje os 2 milhões de protestantes da Irlanda diante da prepotência dos 5 milhões de católicos e como, por exemplo, pobres arrendatários protestantes que tinham vizinhos católicos foram oprimidos, chicaneados e atormentados. Os católicos não podem se suportar mutuamente, mas sempre se unem quando se trata de se opor a um protestante. São como uma matilha de cães que se mordem uns aos outros, mas, assim que aparece um cervo, logo se unem para atacá-lo em massa.” (Mas há conversas demonstrando que a “polarização” acontecia também entre protestantes, como o caso dos “sectários do norte da Alemanha” [Quarta-feira, 20 de junho de 1827]: fala Eckermann: “esse segregacionismo pietista desunira e fragmentara famílias inteiras. Eu pude contar uma história semelhante, de como quase perdi um excelente amigo porque ele não conseguira converter-me a suas convicções.” Nada de novo sob o sol… Em qualquer lugar ou crença…)

Apesar desse sentimento anti-católico, uma viagem italiana é sempre aconselhada como rito fundamental, quase obrigatório, na formação de qualquer ser humano. Talvez não para viver entre pessoas católicas, mas para ter contato com arte católica, que de alguma maneira se elevaria para muito além de sua origem religiosa, resultando na beleza mais espantosa (Quarta-feira, 18 de fevereiro de 1829: “- O ponto mais alto a que uma pessoa pode chegar – disse Goethe nessa ocasião – é o espanto”) já produzida no mundo.

A elite que frequenta a casa de Goethe – todas as celebridades européias, incluindo Napoleão, queriam passar alguns minutos em sua companhia – ostenta intimidade com Roma. Karl Wilhelm Göttling, professor de filologia em Iena, recomenda para Eckermann (Quarta-feira, 8 de outubro de 1828): “O senhor tem de ir para Roma, se quiser se tornar alguma coisa! Aquilo é uma cidade! Aquilo é uma vida! Aquilo é um mundo! Aqui na Alemanha não podemos nos livrar de nada do que é pequeno em nossa natureza. Mas, assim que entramos em Roma, passamos por uma transformação e nos sentimos grandes como tudo aquilo que nos rodeia.” Goethe comenta (Quinta-feira, 9 de outubro de 1828): “Sim, posso até dizer que somente em Roma percebi o que é de fato um ser humano. Jamais tornei a experimentar semelhante sensação de elevação, de felicidade. Em comparação com meu estado de espírito em Roma, nunca mais tornei a me sentir de fato verdadeiramente alegre.”

Adoro este relato (Terça-feira, 14 de abril de 1829) do conselheiro áulico Meyer remorando sua juvenil boêmia romana, vivida intensamente com um bando de amigos artistas alemães. Escrevi este post só para compartilhar esta sublime e extremamente pitoresca narrativa:

“- A disputa sobre Rafael e Michelangelo – disse Meyer – estava na ordem do dia e era retomada toda vez que os artistas se reuniam em número suficiente para haver representantes dos dois partidos. Ela sempre começava em alguma osteria onde se pudesse beber vinho muito bom e barato; argumentava-se a partir de uma pintura, de um detalhe isolado dela e, quando o partido contrário fazia objeções e não queria admitir isso ou aquilo, surgia a necessidade de um exame imediato dos quadros. Saíamos discutindo da osteria e nos dirigíamos a passos ligeiros para a Capela Sistina, cuja chave estava em poder de um sapateiro que sempre a abria por alguns trocados. Ali, diante das pinturas, procedíamos a demonstrações e, quando já havíamos discutido bastante, voltávamos à osteria a fim de nos reconciliarmos com uma garrafa de vinho e esquecermos todas as controvérsias. Isso acontecia todos os dias, e o sapateiro da Capela Sistina ganhou muitas gorjetas.”

Deveria terminar por aqui. Nenhum comentário é digno de acompanhar essa – que Eckermann classifica como – “divertida anedota”. Mas não resisto. Primeiro algo bem paralelo: onde estava Leonardo? Não era considerado ainda um gênio? Mas agora indo direto ao que interessa: sapateiro!!!!! Com a chave da Capela Sistina?!!!!! Simples assim? E a Capela Sistina ali, disponível todos os dias, sem cerimônias ou o aparato de segurança atual, até para jovens artistas alemães bêbados? Como eu queria ter sido desta turma. Agora, só de pensar nos protocolos de visitação, com ou sem pandemia, fico com preguiça e opto por um tour virtual 3D.

Cabelo Cobra Coral

20/06/2020

Estava publicando o post anterior, sobre amigos mostrando trabalhos na pandemia, quando chegou mensagem do amigo Cabelo anunciando o lançamento do seu disco Luz com trevas.

Demorou: estava esperando esse disco há muito tempo. Cobrava sempre, quando tinha oportunidade. E chega logo agora, nesta nossa situação desesperada, cada vez mais “do nada para lugar nenhum” (como diz a letra de Je Vous Salue Marie). Aquele velho ensinamento: onde há perigo cresce o que salva. Luz com trevas, com sua descrição do abismo (e tendo o Rio como capital do abismo, percorrido de mototáxi), aponta possibilidades para abrir caminhos, por onde a luz possa escapar.

Porém, como escreve Fred Coelho no release: o pensamento de Cabelo é não binário. Não é luz e trevas. É luz com trevas. Sem separação, sem fronteira clara entre os domínios da claridade e da escuridão. Tudo trans, incapaz por princípio de estabelecer em qual momento termina a celebração e começa a transgressão. É sempre celebração transgressora, rebelião sem trégua, fim pra frente ou pra cima, propondo acelerações com muitos desvios, cada degrau dando em estradas bifurcadas, onde encontramos muitas personagens mutantes (o mototaxista, a abusada, o avô etc.), entidades que, mais que ouvidas, podem ser incorporadas (continuo seguindo Fred Coelho).

Tudo EXUberante. Tanto que começa com um novo ponto para Exu, orixá que abre caminhos, coloca as diferenças em comunicação/confusão, destruindo maniqueismos e soluções simples. Portanto, esse é um disco que foi/é/será uma exposição, que era/é/será “cinema expandido”, e assim por diante, em expansão constante e explosiva – como ovos-bombas.

Na primeira audição, agora neste momento, minha canção preferida é Raio de Amor, funk bem raiz (sim tudo pode virar raiz, a raiz não está no início: fundamentos a gente inventa) que, diante de uma Amazônia em chamas, chama xamã. O disco invoca portanto o encontro de orixás e xamãs, estratégia na qual a cultura brasileira deveria se especializar para se salvar. O orixá baixa para o mundo humano. O xamã sobe para o mundo espiritual. Em algum lugar, no meio do caminho bifurcado, dessa Stairway to Heaven tropical(ista), pode estar a solução.

Enquanto a solução/salvação não chega, e – antes disso – enquanto também não aprendemos que “o novo normal é não haver normal”, melhor seguir as lições de Cabelo Cobra Coral, aproveitando o lançamento deste grande disco: para tirar o mau olhado, para proteger a nossa casa, é preciso mandar brasa, em todos os sentidos e direções, lançando muitos raios de amor por aí.

Rita Indiana

16/05/2020

No twitter do Bani Haykal (ver post anterior) descobri link para esta matéria descrevendo as atividades do Spot, robô quadrúpede da Boston Dynamics, lembrando as regras de distanciamento social para humanos. A notícia me fez ter outra lembrança: os “coletores” que aparecem nas primeiras páginas de La mucama de Omicunlé (traduzido para inglês e outras línguas como Tentáculo), livro que Rita Indiana publicou em 2015. Cenário: houve uma catástrofe militar-ecológica no Caribe (não fica claro se atingiu o planeta inteiro), toda vida marinha foi extinta. Haitianos com vírus, para fugir da quarentena de seu país, cruzam a fronteira da República Dominicana e, quando identificados pelos sistemas de vigilância, são bombardeados por gás letal e depois seus corpos são recolhidos e desintegrados pelos robôs patrulhas, os coletores.

O livro, maravilhoso, é um tsunami de ideias como essas. Tudo passa rápido, como em obra de Fausto Fawcett. Não voltamos mais a ouvir falar nem no vírus, nem na quarentena haitiana, nem nos coletores nas outras cento e tantas páginas. Não há tempo para sentir falta pois temos que lidar curadores cubanos, viagens no tempo para quando o Caribe era ocupado por piratas, músicas de Giorgio Moroder, ou até uma carta de Lydia Cabrera para Pierre Verger. Tudo isso numa República Dominicana controlada por um ditador ex-dançarino de break, que decreta uma mistura de vodu/santeria como religião oficial (ainda outra lembrança: o candomblé na ficção científica – também de certa forma caribenha, via Lezama Lima – de Guilherme Kujawski), fazendo que alguns grupos evangélicos se transformem em células terroristas.

Rita Indiana tem uma das imaginações mais espantosas da cultura contemporânea. Faz de tudo um pouco. Além dos livros, que apresentam sempre uma combinação muito original de erudição e pop, produz também discos deliciosos e desconcertantes, seguindo uma trilha pós-reggaetón-dembow, para chacoalhar quadris e cérebros. Lançou nesta quarentena Como un dragón, com vídeo que tem pinta de videogame criado por Jodorowsky, anunciando seu novo trabalho Mandinga times.

Na obra de Rita Indiana, a cultura caribenha, com toda sua fractalidade, se apresenta mais forte do que nunca.

Kraftwerk de palafita

10/05/2020

Ainda sobre Vladimir Cunha: ele também me mostrou o trabalho que vem fazendo com a banda Strobo. Como aperitivo, aqui um clipe que é parte de um filme, que Vlad – o diretor – chama de “ficção musical”. Mais explicações: “O conceito do filme é baseado naquela tua definição do tecnobrega: o Kraftwerk de palafita.” Sim, eu usei a expressão “Kraftwerk de palafita” em artigo de 2003. Na época era ainda um delírio de festa de aparelhagem, no princípio da nova aventura estética paraense. Agora temos sua tradução fílmica hiper-real, clara, explícita,  mesmo com imagem sempre em modo lusco-fusco. É futurismo-urbano-amazônico, musical e visual, driblando a precariedade, incorporando a precariedade, inventando novos corpos elétricos periféricos-centrais, novos usos da tecnologia de ponta muito longe do Vale do Silício.

Muito estranho encontrar novamente a expressão “Kraftwerk de palafita”, e ver esse filme impressionante (ficou gravado na minha imaginação o plano da câmera-drone sobrevoando o imenso rio com mudanças de ângulo desnorteadoras), quase ao mesmo tempo em que soube da morte de Florian Schneider. Kraftwerk para mim é a melhor criação da arte moderna (e como gosto mais de arte moderna do que de qualquer outra arte, posso afirmar: é a melhor criação da arte), incluindo literatura, pintura, performance, teatro, dança e tudo mais. Nunca vou me cansar de ouvir os seus discos. Vi dois de seus shows (com Florian & Ralf): aula de tudo o que é bom, realizada de forma impecável. Nada é de palafita no Kraftwerk. Sua obra não admite o improviso, o precário, ou o tosco. Cada som e cada beat é perfeito. Cada evento calculado milimetricamente, nada fora de lugar. A qualidade do resultado é tão sublime que não se contém em si: acaba se espalhando para todos os cantos, elevando todo o resto (hip hop, techno, house, David Bowie…)

Gosto também de muita coisa tosca. Mas tosco seguindo algum aspecto das lições do Kraftwerk é muito melhor. Kraftwerk de palafita, muito acima de qualquer enchente ribeirinha, é também arte elevada.

PS1: Estou lendo, absolutamente maravilhado, Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida – Goethe chamava tudo que gostava de “elevado”. Bem alemão.

PS2 – Para entender Florian Schneider ler este artigo de Simon Reynolds.


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