Archive for the ‘Ásia’ Category

lições de cosmologia

30/10/2017

Não paro de pensar nesse “misterioso” objeto que está nos visitando por pouco tempo, aqui em nosso sistema solar (veja a animação de sua trajetória que ilustra a matéria do New York Times). No anúncio de sua chegada, o que mais me impressionou foi descobrir ser acontecimento tão raro, o primeiro registrado pela astronomia. Imaginava que haveria vários outros corpos interestelares semelhantes andando por aqui o tempo todo. Agora que fui surpreendido pela notícia de que esse não é o caso, tenho sensação inteiramente nova de claustrofobia. Vivemos isolados em nosso cantinho na periferia do Braço de Órion da Via Láctea. Fora do nível das partículas não recebemos visitas, nem nada local vai visitar outros lugares do Universo.

E se sair daqui vai demorar muito tempo para chegar perto de qualquer outra estrela. O outra notícia “recente” impressionante, mas também para mim decepcionante, foi a colisão de duas estrelas de neutrons há  130 milhões de anos, mas que só agora pôde ser observada aqui da Terra. A observação provou que as ondas gravitacionais viajam na velocidade da luz. Então é provável que Einstein esteja totalmente certo: nada, nem essa onda esquisita que brinca com a “elasticidade” do espaço-tempo, ultrapassa os 299.792.458 metros por segundo, passo de tartaruga para distâncias galáticas. Estamos condenados a ir “só”, e com muito esforço, até Plutão, ou quem sabe, Alfa Centauri (4,4 anos luz do Sol)? Com tanta coisa estranha e curiosa no resto do Universo? Que monotonia… Cadê minha Enterprise quando mais preciso dela?

Na falta da Enterprise…: a viagem da Voyager completou 40 anos agora em setembro. Primeiro objeto produzido por humanos fora do Sistema Solar. A matéria de Nadia Drake para a National Geographic chega a ser comovente, até por sua autora ser filha de Frank Drake, astrofísico que desenhou o mapa que ilustra o famoso disco de ouro da Voyager (finalmente podemos escutar sua seleção musical) indicando o lugar que a Terra ocupa no Universo. Em 40 anos o zeitgeist parece ter mudado completamente. O otimismo dos anos 1970 gerava atitude despreocupada: queremos fazer contato, venham nos visitar! Agora vivemos paranoia dominante: fomos loucos, imprudentes, de mandar aquele mapa para o espaço. Os ETs, conhecendo nossa localização, certamente viajarão para cá com o objetivo de nos destruir. A repercussão da matéria de Nadia Drake exigiu um outro artigo negando o perigo. Nele, Frank Drake afirma que na época do lançamento da Voyager não passou pela cabeça de ninguém a possibilidade de ETs do mal radical. O Universo era visto como território amigável…

Anos atrás, quando fazíamos juntos o programa Navegador, Ronaldo Lemos me apresentou a ficção científica chinesa de Cixin Liu. Já li toda a trilogia dos três corpos (os dois primeiros livros já foram lançados no Brasil). Tudo fascinante, uma das melhores leituras da minha vida (também recomendada por Obama). Mas é produto de visão pessimista bem característica dos tempos atuais, não importa o continente ou a cultura do observador: a premissa básica é que o Universo é território mais que hostil. Portanto devemos ficar escondidos aqui no nosso canto. Calados. No escuro sideral. Quanto mais isolados melhor… Tentarei escrever sobre Cixin Liu em breve, neste blog.

mais Cingapura

04/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 10-09-2010

Sempre me surpreende a repercussão desta coluna. Assuntos que esperava poderem causar debates acalorados são recebidos com silêncio intrigante. Divagações ultrapessoais que pensava não interessar a mais ninguém geram um bombardeio de comentários. Como meu texto sobre Cingapura. Depois da minha introdução de semanas atrás, recebi dezenas de pedidos de dicas de viagem. Resolvi dar aqui uma resposta coletiva, que pode motivar também boas explorações virtuais, via fotografias 360 graus do Google Earth ou sites devidamente “linkados” abaixo. Boa viagem!

Uma primeira parada obrigatória, ao chegar em território cingapuriano, é a BooksActually, situada nas ruas hoje chiques, atrás de Chinatown. Na conversa com os vendedores dessa livraria totalmente independente, ligada em novidades locais, será possível ter um panorama do que mais interessante acontece no país em matéria de exposições, festas, peças e shows, além de comprar livros, discos e filmes lançados por editoras pequenas, que não têm seus produtos distribuídos em outras lojas.

Andando entre suas estantes, o visitante logo percebe um barulho estranho no ambiente. Quem é novo de idade não vai conseguir descobrir o que é. Quem tem mais de 30, vai desconfiar dos seus sentidos, até ter certeza: aquilo é som de máquina de escrever. Sim, várias pessoas trabalham na BooksActually datilografando trechos de livros em cartões ou na capa de cadernos criados em papel especial e depois vendidos pela editora da casa. É algo como um culto ao vinil, à fita cassete ou ao super 8. Nostalgia da pré-história da mídia, encanto por velhas máquinas e tecnologias. Descobri logo que a livraria era parte de uma rede de coletivos, espalhados pelo mundo, que têm obsessão comum não apenas por datilografia mas por técnicas de imprensa da época de Gutenberg, incluindo o cheiro de tinta “vintage”. Ali na loja, fui transportado da Ásia para Sintra, Portugal, através das publicações do pessoal do Serrote, sobretudo os exemplares da série Cadernos, com capas imitando padronagem de toalhas de mesa ou de floppy discs, todos produtos de uma impressora Heidelberg do tempo do ronca. É tão retrô que parece o futuro.

De volta à Cingapura e ao presente, próxima da livraria, se o visitante tiver sorte, ainda vai encontrar aberta a loja, sem nome (como convém hoje a tudo esquisito, “de guerrilha”, ou “pop-up”), que vende roupa de novos estilistas suecos e música tão experimental, mas tão experimental que nunca vi anunciada nem na revista The Wire. O local também funciona como sede de uma empresa de design responsável pela Chocolate Research Facility, cadeia que vende barras de chocolate de cerca de 100 sabores diferentes (incluindo uma com recheio de durian, fruta adorada por locais e que estrangeiros consideram ter gosto de putrefação), com embalagens de vanguarda.

Ao lado das compras, comida é outro passatempo preferido em Cingapura. Há de tudo, incluindo culinária molecular. Mas obviamente o mais recomendado é se esbaldar com a variedade asiática, principalmente em termos de comida de rua, fresca, feita na hora. Para faciltar nossa vida surgiu a Food Republic, idéia matadora de qualquer fome, que certamente virará império global. É uma megareunião, tipo praça de alimentação de shopping, de antigos vendedores ambulantes (thai, coreanos, indianos, indonésios etc.), tudo limpinho e com controle de qualidade. Experimente a culinária peranakan, com sua mestiçagem chino-malaia.

Se exagerar na comida o bom é passar em alguma filial da Eu Yan Sang, antiga loja de ervas de Chinatown, que agora atende até no aeroporto Changi ou no shopping Paragon, do lado da Gucci. Quem teve a felicidade de ser tratado pelo Mestre Liu, medico chinês que morou em São Paulo, sabe o que vai encontrar por lá: aquela combinação de raízes, folhas e, sei lá, cauda de escorpião que faz um bem horrível. Mas na Eu Yan Sang tudo agora vem em doses certas, sacos hermeticamente limpos, prontos para uso. Se você for exigente mesmo, pode escolher entre uma variedade incrível de ninhos de pássaros que custam uma pequena fortuna.

Dá para visitar quase tudo isso andando. Cansou? Você pode descansar vendo o último sucesso do cinema tâmil perto da Little India, ou encarar um narguilé no fumódromo-espécie-de-Baixo-Gávea ao redor da mesquita Sultan, em Kampong Glam, ou se entregar aos cuidados de um dos massagistas da cadeia Kenko, espécie de McDonald’s da reflexologia. Ou melhor, no Kenko mesmo, pode experimentar o cibercafé, twittando à vontade com os pés dentro de uma água cheia de ervas e centenas de peixinhos que fazem massagem sublime no dedão.
Já cheguei ao fim da coluna e nem falei ainda de dois de meus restaurantes preferidos, o Din Tai Fung ou Ci Yan Organic Vegetarian Health Food (que apesar do nome não tem nada de moderno: parece que você está comendo no refeitório de um mosteiro – não tem nem site próprio…) Não haverá espaço para escrever sobre a coleção do Museu das Civilizações Asiáticas, nem sobre nenhum dos templos de reza obrigatória. Também não vou conseguir introduzir a história subterrânea do seu punk-rock-local, nem o cinema de Eric Khoo. Fica para alguma próxima coluna, se os leitores novamente exigirem.

Cingapura e consumo

30/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30-07-2010

Para a maioria dos turistas que pretende conhecer a Ásia, Cingapura é apenas um aeroporto, local de troca de aviões para destinos classificados como mais autênticos. Eu, com minha incurável alergia a tudo que se vende como tradicional, e acreditando piamente que não existe nada culturalmente puro no mundo, penso que consigo descobrir melhor a “verdadeira” Ásia, e o nosso futuro bric-asiático, no trajeto entre Potong Pasir e Yio Chu Kang, estações do metrô cingapuriano, do que em aldeia do Laos ou mosteiro do Butão. Apesar do país ser uma ilha minúscula, nunca esgotarei meu interesse pelas maneiras múltiplas como suas identidades vão se renovando velozmente, no encontro entre várias etnias e modernidades ocidentais-orientais. O fascínio poderia ser puramente econômico, aliado à crítica de seu modelo político: afinal como não ficar curioso com a experiência vertiginosa de uma ex-colônia britânica, com maioria da população miserável na sua independência de 1965, para a nação que mais cresceu em 2010 e ocupa o topo da lista de competitividade global, isso em regime de partido único, com pena de morte, e que até proíbe a entrada de chiclete em suas alfândegas? Mas não me interesso tanto por esses números e por essas leis e sim como as pessoas vão inventando maneiras sutis e criativas de viver suas vidas nas ruas, negociando diferenças, para muito além, ou aquém, da globalização autoritária.

Cingapura é um porto, é uma quebrada, ponto de encontro entre povos muito distintos uns dos outros. O país tem quatro idiomas oficiais, com escritas radicalmente variadas. No metrô, os anúncios são feitos em mandarim, malaiotâmil, inglês. Programas de televisão são legendados às vezes em ideogramas chineses e alfabeto indiano, ao mesmo tempo. Estive por lá na Semana Santa deste ano e pude, no espaço de poucos quarteirões, ouvir uma ladainha tâmil na Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, ver o ensaio de uma orquestra chinesa na porta de um templo taoísta que se preparava para o Qing Ming, festival dos mortos chineses, acompanhar uma procissão – com sopros e percussão excelentes – dentro do templo de Vishnu, e ainda ver show de metal islâmico/malaio num parque. Não conheço outro lugar onde essas grandes religiões se mantenham tão vivas e próximas.

Mas há outra religião importante na cidade, com até maiores templos: o consumismo e os shopping centers. Não existe rua no mundo como Orchard Road. É tudo que a avenida das Américas quer ser quando crescer: um shopping atrás do outro, com todas as grifes mais poderosas lado a lado – inclusive a mesma grife com lojas vizinhas, como a Louis Vuitton do Ngee Ann City e do Ion Orchard – de uma vitrina você pode ver a outra. Isso para não falar da Hermès, da Gucci, da Prada, da Miu Miu, todas ao alcance da vista, mas de exploração inesgotável e crescimento espantoso. O Ion Orchard foi um dos quatro grandes shoppings inaugurados do final de 2009 para cá, agora todos com ciberparedes que à noite se transformam em novas fontes luminosas ou decoração de Natal permanentes. Não dá para não se perguntar: isso tudo é sustentável? Há clientes suficientes no mundo todo para bancar essa farra cara?

Nada contra shoppings, pelo contrário.  Gosto de comércio de rua, mas adoro shoppings, e acho cafona quem fala mal de shopping para parecer superior às massas (pronto, falei!) Porém, não posso deixar de me espantar com as proporções que o fenômeno ganhou sob o calor equatorial da Orchard Road. Claro que é uma vantagem ar condicionado, mas friozinho artificial não explica tudo. Na imensa livraria Kinokuniya – com suas infindáveis prateleiras de livros e revistas japoneses, chineses e americanos – encontrei parte da resposta para minhas indagações. O consumo é obsessão interna, bem explicada no livro A Vida não é Perfeita sem Compras, do sociólogo Chua Beng Huat, título que foi extraído de discurso do primeiro ministro Goh Chok Tong no Dia da Independência. Não pense que é puxa-saquismo oficial. O livro contém uma das mais espertas reflexões críticas sobre a cultura do consumo que já li, mostrando como a globalização ganha sentidos diferentes em diferentes países, e para diferentes grupos de sua população. Num lugar tão obviamente multicultural como Cingapura, que por longos anos incentivou cada etnia a cultivar as tradições de seus países de origem (originando então várias novas tradições inventadas), esses sentidos ganham complexidade estonteante.

Chua Beng Huat estuda desde como a roupa tradicional cheongsam se transformou em vestido de gala para mulheres chinesas, ao contrário do desaparecimento da kebaya para as malaias, até como as lojas do McDonald’s viraram pontos de encontros jovens por causa da característica do ensino público local de espalhar os alunos em diversas escolas da cidade não por local de moradia, mas por notas. Entendemos também porque a influência cultural japonesa é mínima, apesar do poderio econômico nipônico no país, ou quais são as razões do sucesso dos filmes de Taiwan.

Queria indicar esse livro para alguma editora brasileira. É parte de campanha antiga: pelo estabelecimento de links diretos entre pensamentos de vários lugares do mundo sem necessidade de mediação do primeiro mundo. É também para celebrar a maturidade da crítica em Cingapura. O país sabe: para crescer mais a economia precisa ser criativa. Não há criatividade sem crítica.


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