Archive for the ‘Canadá’ Category

microgravidade

05/10/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/10/2013

Só uso Facebook e Twitter para pesquisas eventuais. Não tenho amigos, não sigo ninguém, nem tenho seguidores por lá. Então, muitas vezes, demoro meses para conhecer os últimos mimes. (Sim, lanço aqui uma campanha para, em português, escrevermos “mime” em vez de “meme”. A pronúncia, com “i” depois do primeiro “m”, é a correta, mesmo em inglês. A inspiração para a criação da nova palavra, popularizada pelo biólogo Richard Dawkins, vem do grego “mímesis”, lembrando imitação. Por isso, no lugar de “memética”, “mimética” também explica melhor o objeto da nova “ciência”.) Por exemplo: só em agosto fui ver o clipe de “Space Oddity” feito pelo astronauta canadense Chris Hadfield a bordo da Estação Espacial Internacional, que se tornou viral – com quase 18 milhões de views – em maio.

Cheguei ao vídeo por caminho torto. Uma matéria do jornal The Guardian trazia o link para post publicado no blog da equipe britânica do Twitter, com análise sobre os modos diferentes de “viralização” de três grandes mimes de 2013. A campanha da Dove sobre “beleza real” foi a que teve repercussão mais descentralizada. Era um amigo passando o link para o outro. Já os vídeos sobre cereais matinais do ator Ryan Gosling (os canadenses estão em todos os lugares…) viraram hits a partir da divulgação feita por dois grandes “formadores de opinião tuiteira”. O clipe de “Space Oddity” teve fonte única: a mensagem vinda literalmente do espaço, do computador de Chris Hadfield, que na época comandava a estação espacial. Lição: não existe um só caminho ou uma só receita para o sucesso na internet. E a mimética é ciência que apenas engatinha.

Meu caso já contraria o padrão analisado no post do blog do Twitter. Não faço parte da maioria que teve acesso ao link do clipe como seguidor direto do astronauta. (Um artigo da revista The Economist aborda a confusão jurídica que esse vídeo criou: afinal, gerado no espaço, segue a legislação de direito autoral de que país?) Mesmo assim várias dessas quase 18 milhões de visualizações são minhas. Fiquei fascinado, não pelos dotes musicais de Chris Hadfield, mas pela oportunidade de bisbilhotar o interior da estação espacial. Aquilo deveria parecer o futuro, mas já tem cara de ficção científica com visual datado, como o 2001 de Clarke/Kubrick. Não há um computador central paranoico como Hal, mas na cena periférica podemos ver claramente vários laptops ThinkPad da IBM/Lenovo. (Artistas usam Mac, cientistas usam ThinkPad.) Li na Wikipedia que todos rodam sistemas operacionais Debian. Não importa: laptops já têm visual retrô, ainda que abarrotados de software livre.

Fui rever o vídeo que David Bowie fez para o relançamento norte-americano de “Space Oddity” (música de 1969, mas que alcançou sucesso mundial depois da turnê de “Ziggy Stardust”). A filmagem aconteceu durante a gravação do LP “Aladdin Sane”. O equipamento do estúdio, com todos aqueles milhares de botões hoje obsoletos, era o que dava ambiente visual futurista para a música. Mesas de mixagem de não sei quanto canais, laptops, violões flutuando em microgravidade: tudo se transforma em peça de museu rapidamente, não importa se demora décadas ou semanas após a última conferência da Apple. Como as roupas de Ziggy Stardust ou de Johnny Rotten, expostas no Victoria & Albert ou no Metropolitan.

Estamos comemorando os 40 anos de “Aladdin Sane”. Lembro de quando vi a capa desse disco pela primeira vez, com 13 anos, no caminho da escola, passando pela vitrine de uma loja de discos do setor comercial da SQS 310, em Brasília. A imagem de Bowie com cabelos vermelhos espetados e com aquele raio maquiado no rosto foi uma das mais marcantes da minha vida. Em tempos politicamente incorretos o crítico Lester Bangs sacaneava aquilo como estilo “homo from Aldebaran”. O que me causava mais estranheza não era o lado andrógino (quem era David, quem era Angie?), mas sim o que havia ali de alienígena. Eu já queria viajar para os confins do universo com a tripulação de Jornada nas Estrelas (e não me importava com o risco de ficar perdido no espaço). Ainda quero.

Depois comprei o vinil. O que mais gosto, até hoje (mesmo no CD com remasterização Sound+Vision), é a estranheza também alienígena do solo de piano de Mike Garson na faixa título (que tem o complemento numérico “1913-1938-197?” – Bowie estava esperando a Terceira Guerra). No meu início de adolescência, sem informações sobre free jazz ou Webern, não sabia de que galáxia poderiam vir aqueles sons. Li na Wikipedia (como viver sem ela?) que, na gravação, Garson tentou primeiro um estilo blues, depois latino, mas Bowie queria outra coisa. Mesmo retrô, ainda soa “avant-garde”.

Guy Delisle

30/03/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29/03/2013

Guy Delisle ocupa há tempos o topo da lista de artistas sobre os quais preciso escrever nesta coluna. Estava esperando a tradução brasileira de “Crônicas de Jerusalém”. Depois de vários meses anunciada para breve pela Zarabatana Books, ela finalmente pode ser encontrada em nossas livrarias (boa leitura para a Semana Santa). O lançamento aconteceu quase que simultaneamente à viagem de Obama pelo Oriente Médio. Em seu discurso “para o povo de Israel”, em Jerusalém, o presidente dos EUA, referindo-se aos palestinos, falou como professor de antropologia: “Coloquem-se no lugar deles. Vejam o mundo com os olhos deles.” Eu amplio o conselho, não só para judeus e árabes: “Vejam o mundo também com os olhos de Guy Delisle.”

Os olhos de Delisle enxergam e nos mostram o mundo através de histórias em quadrinhos. Não querem nos revelar a Verdade sobre o mundo, mas tentam – através de descrições densas e muitas vezes poéticas – mapear o jogo de verdades entre diferentes experiências humanas. Mais importante: os olhos (o ponto de vista do autor, a maneira peculiar com a qual se insere no mundo retratado) estão visíveis, nunca se escondem por trás de narrativa “objetiva”. Delisle está sempre ali, nunca tentando se passar por nativo, ou por observador sem preconceitos. Tudo é narrado/desenhado em primeiríssima pessoa. Por isso, aprendemos tanto e podemos formar nosso próprio olhar para aquela realidade.

Não conhecemos apenas Jerusalém, mas igualmente Delisle em Jerusalém. É assim na melhor antropologia: Bronislaw Malinowski nas Ilhas Trobriand, Clifford Geertz na briga de galos em Bali. A objetividade científica – se pode existir, se é interessante que exista – é efeito dessa relação entre diferenças. Não dá para ser de outra maneira: então, o importante é apresentar todos os detalhes. Delisle viveu em Jerusalém, por um ano, acompanhando sua mulher que faz parte da organização “Médicos sem fronteiras”, e cuidando de seus dois filhos, crianças. “Crônicas de Jerusalém”, de certa forma, é também a etnografia dessa nova tribo planetária formada por cada vez mais gente que trabalha em ONGs internacionais e órgãos da ONU – pessoas de todas as nacionalidades, mas que estão criando rica cultura comum.

Muitos dos grandes momentos do livro se passam em festas e encontros desses expatriados, com trocas de dicas sobre as melhores maneiras para lidar com os problemas cotidianos de sua nova terra temporária. E que terra: um labirinto formado por muros e checkpoints, com muitos projetos políticos e religiões em conflitos armados (e onde ver gente armada na rua é mais comum do que em favela carioca pré-UPP).

Viajar com a família – tendo que lidar com creches, feriados escolares e babás locais – fez bem a Delisle. Suas primeiras histórias viajantes em quadrinhos, sobre Pyongyang, na Coréia do Norte, e Shenzhen, na China, foram resultados de experiências solitárias, quando era contratado por estúdios de animação para coordenar equipes de desenhistas locais. Seu olhar era mais impaciente, irritado. Delisle nasceu em Quebec, estudou perto de Toronto, mas começou a trabalhar em Montreal. Não sei direito se os canadenses de língua materna francesa bufam como os parisienses, mas nesses livros – mesmo com um evidente olhar carinhoso para detalhes que só observadores de muita boa vontade percebem, como a latinha de bala Ricola que o caixa do banco chinês usa para guardar os trocados (e foi isso que me transformou em leitor assíduo de sua obra) – há um mau-humor típico de quem não consegue viver muito tempo longe do rio Sena. O que gera observações engraçadas. Por exemplo, no hotel: “Pela manhã, quando a funcionária do andar me vê saindo do quarto, ela corre para chamar o elevador para mim. Só é preciso apertar o botão uma vez… mas ela continua a apertar sem parar, até que o elevador chegue.” Com os desenhos, isso fica hilário.

O primeiro livro com a família foi “Crônicas birmanesas”. Sua atitude é mais relaxada. A companhia de crianças faz até com que vizinhos tenham comportamentos mais amistosos na rua, e a vida em casas, não em hotéis, cria possibilidade de maior imersão na cultura local, mesmo com a reclamação frequente sobre o calor dos trópicos (ou sobre as baratas e os copos mal lavados no avião da Myanmar Airways – afinal toda tolerância cultural tem limite).

“Crônicas de Jerusalém” é o melhor livro de Delisle. Não foi à toa que ganhou o principal prêmio do festival de Angoulême 2012, uma espécie de Oscar dos quadrinhos. Nenhum outro livro ou documentário me fez compreender melhor, com doçura e crítica, os problemas atuais daquele local tão importante para a história e o futuro do mundo.

Adbusters

10/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 02/12/2011

Na sexta-feira passada, acompanhei com empolgação a luta livre entre o peso pesado Black Friday e o levíssimo (no sentido mais mercurial da leveza – Salve Hermes!) Buy Nothing Day. Ainda vai demorar para sabermos quem foi o vencedor. No sábado, Obama tentou um golpe de terceira via levando as filhas para comprar livros no “Sábado dos Pequenos Negócios” – uma maneira de dizer: “continue consumindo, mas off-grandes-corporações”. O bem calculado pequeno gesto – talvez o único possível para um assustado e inteligentíssimo presidente democrata de Império cambaleante – era na verdade mais uma tentativa de salvar o mundo tal qual o conhecemos. Como pano de fundo para o vale-quase-tudo ideológico, temos a maior crise do capitalismo desde a Black Thursday de 1929 e a resistência viral do movimento Occupy Wall Street, que já é Occupy Tudo.

A sexta-feira negra atual não tem conexão imediata com a quinta-feira da Grande Depressão, nem como “day after”, mesmo tendo sido batizada – diz a lenda – para exorcizar espíritos recessivos: seria o momento em que o comércio sairia do vermelho para ingressar no lucrativo período das festividades natalinas. Não importa tanto o mito de origem: é certamente irônico pensar hoje nesse vínculo não desejado com 1929: a repetição de uma triste história como farsa consumista, que para alguns economistas pode anunciar o esgotamento – por excesso – da tão amada/odiada sociedade de consumo.

Do lado do Buy Nothing Day, taticamente datado para provocar simbólico conflito anticorporativo, é bem mais explícita a conexão com os acampamentos de indignados que ocuparam praças do planeta inteiro. O mundo anda tão bicho solto que até uma pequenina publicação canadense pode se transformar no estopim de grande mudança política. Explico: tanto o Occupy Wall Street quanto o Buy Nothing Day, antes de tomarem as ruas, foram ideias lançadas pela revista Adbusters, que tem sede em Vancouver. Em tradução muito livre, adbusters quer dizer “dinamitadores de publicidade”. Esta tem sido a principal atividade da “fundação de mídia” responsável pela revista, desde 1989: explodir com a lógica publicitária por dentro, lançando campanhas anticonsumistas, subvertendo a mesma linguagem que tenta nos fazer consumir.

Tudo começou com o encontro de Kalle Lasn – um estoniano criado na Alemanha e na Austrália, e que antes de se mudar para o Canadá montou empresa de pesquisa de mercado no Japão – e Bill Schmalz – diretor de fotografia especializado em documentários sobre a natureza “selvagem”. A primeira parceria da dupla foi a produção de cartazes e publicidade de TV para combater a indústria madeireira da região da Colúmbia Britânica. O Buy Nothing Day também teve início com um cartaz, criação do cartunista Ted Dave, colaborador da Adbusters. A revista hoje tem circulação de 120 mil exemplares, e não publica – é claro – nenhum anúncio; na verdade é saturada por páginas que desconstroem anúncios veiculados por outras publicações.

Sempre achei a Adbusters simpática, mas confesso que nunca levei sua linha editorial muito a sério. Considerava tudo meio ingênuo, e algumas vezes pouco inspirado. Mas acabava comprando a revista por causa de um texto ou outro, ou de alguma imagem que beirava uma histeria anti-Warhol. Este ano comprei todos os números, que são bimestrais, por causa das palavras de ordem impressas nas capas. Começou com a “crise terminal do capitalismo”, passou por “pós-império”, “pós-Ocidente” e “pós-anarquismo”, até chegar ao “outono americano”. A edição sobre a política do pós-anarquismo trazia poster na página central, com uma bailarina dançando em cima do touro de Wall Street, acompanhada pela convocação twiteira: “#occupywallstreet / 17 de setembro / traga barraca”. Simples assim.

Pensei até em ficar ligado no dia 17, para acompanhar a ocupação em tempo real. Mas acabei me esquecendo do anúncio, que não colonizou meu subconsciente como manda o manual da propaganda. Deveria ter prestado mais atenção: afinal no número de setembro/outubro de 2010 a Adbusters anunciava “a iminente ruptura no Egito” com palavras bem proféticas: “tenha certeza que um grande terremoto está se aproximando do país mais influente do mundo árabe e os tremores vão reverberar por toda a região”. Ainda sentimos o chão balançar todos os dias nos arredores do Mar Vermelho. A reverberação conseguiria atingir o centro financeiro de Manhattan? Acredito que mesmo os editores da revista – como Micah White, tido como dono da mente onde se originou o meme occupy – estão surpresos com o tamanho que tudo tomou, levando sua publicação periférica para o centro do debate político do país vizinho que antes imaginava o Canadá como inofensiva colônia cultural.

Nos últimos dias, várias pequenas notícias indicam que a “ocupação” – que já foi acusada de não ter demandas claras – pode ter consequências bem concretas e profundas, até decidindo os rumos da próxima eleição presidencial nos EUA. Um deputado, Ted Deutch, acaba de propor uma emenda constitucional chamada de OCCUPIED, tentando proibir dinheiro de grandes corporações no financiamento de campanhas eleitorais. Boa lição: ninguém pode mais subestimar o poder dos símbolos culturais, mesmo os que aparecem nas fronteiras aparentemente mais esquisitas do marketing antimarketing contemporâneo. Esta coluna continuará ocupada pela Adbusters na próxima semana.

Século McLuhan

07/05/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29-04-2011

Meu amigo André Stangl, que conheci nos tempos pioneiros dos estudos ciberculturais baianos e hoje vive em São Paulo, manda avisar: Marshall McLuhan está de volta aos meios universitários paulistanos, depois de anos numa certa berlinda. Mais precisamente: segunda e terça-feira será realizado “O século McLuhan”, evento realizado pelo Atopos, centro de pesquisa “fora-de-lugar”, mas de certa forma baseado na ECA da USP (inscrições em www.atopos.usp.br/mcluhan). O leitor pode se perguntar: qual século, o XX ou o XXI? Qualquer um. Tom Wolfe, na introdução para o livro “Understand me” (cujo título é uma brincadeira com seu clássico “Understand media” e que foi publicado no Brasil, pela Ediouro, como “McLuhan por McLuhan”), afirma: “Não consigo pensar em outra figura que tenha assim dominado um campo de estudo inteiro na segunda metade do século XX. Na virada do século XIX e nas primeiras décadas do XX, havia Darwin na biologia, Marx na ciência política, Einstein na física, e Freud na psicologia. Desde então houve apenas McLuhan nos estudos da comunicação”. Outras pessoas dizem que as profecias de McLuhan só se tornarão realidade, ou dominarão nossa realidade, agora depois do ano 2000. Mesmo assim, o evento se refere a um outro século, bem mais preciso: em 2011 comemoramos os 100 anos de nascimento do cara que, entre outras coisas, nos disse que o mundo se transformou numa aldeia global e que o meio sempre foi a mensagem.

Fiquei surpreso ao ser lembrado que McLuhan nasceu em 1911. Isso significa que quando publicou suas obras mais inovadoras e de maior impacto já tinha mais de 50 anos e cerca de três décadas dando aulas. De certa forma, livros como “A galáxia Gutenberg” ou o “Understanding media” parecem ser trabalhos de uma mente mais jovem, capaz de comprar qualquer briga sem temer perder respeitabilidade conquistada em já longa carreira acadêmica. McLuhan permaneceu jovem audacioso até o final de sua vida, em 1980. Foi um desses muleks eternos como John Cage, Miles Davis, Mário Pedrosa, para quem a idade transmite não peso intelectual, mas leveza para encarar o mundo ainda com mais audácia e liberdade. É possível comprovar isso assistindo os vários vídeos com aparições de McLuhan na TV dos anos 60 e 70 que estão disponíveis na internet. Uma alma bondosa, talvez anônima para evitar problemas relativos a direito autoral, nos fez o favor de compilar todos essas imagens num único site para a comemoração do centenário. Procure por “Marshall McLuhan Speaks” em qualquer ferramenta de busca. Além da introdução de Tom Wolfe, que começa com a aparição de McLuhan no filme “Noivo neurótico, noiva nervosa” de Woody Allen, podemos ver clipes de suas respostas, divididas por assunto, que revelam como sua maior diversão era causar polêmicas, ou falar aquilo que fundia a cuca de seus interlocutores, que mesmo com vontade de não levá-lo à sério acabavam se deixando encantar pela convicção maluca, e inteligência impressionante, do mestre pop.

Quem ainda estiver desconfiado, talvez por causa dos ternos de McLuhan (afinal o meio, nesse caso corpo e roupa, passa muita mensagem), deve visitar o UbuWeb (viva Kenneth Goldsmith! Todo mundo leu sua entrevista no Prosa & Verso? Aula obrigatória…), fechar os olhos e escutar os arquivos com a gravação do LP “The medium is the massage”, lançado por McLuhan pela Columbia Records no final dos anos 60, portanto quando ele tinha quase 60 anos. O que está ali registrado é uma das experiências de colagem sonora mais radicais e psicodélicas da história da indústria fonográfica. A Wikipedia diz que a produção foi de John Simon, que já assinara a beleza minimalista de “Songs of Leonard Cohen”. Com a “massagem midiática” o espírito era de total maximalismo, imagino que uma tentativa de registrar para a posteridade como podemos aproveitar melhor aquilo que McLuhan chamava de “espaço acústico”, onde tudo convive ao mesmo tempo agora, sem centro e periferia, sem a linearidade da escrita e do campo visual.

Se possível, e os neurônios deixarem, esculache a audição lendo ao mesmo tempo a entrevista que McLuhan deu para a Playboy em 1969. Kevin Kelly (tenho que escrever uma coluna sobre este outro cara urgentemente), no blog que era apenas para preparar seu maravilhoso e já-lançado livro “The technium” mas onde há novos posts e tomara que nunca tenha fim, disse que McLuhan não escrevia: deitava no sofá e começava a falar seus deliciosos absurdos, que eram transcritos por alunos. Era um feiticeiro da oralidade, uma máquina de produzir slogans, uma campanha permanente de marketing para seu próprio pensamento. Por isso se dava tão bem em entrevistas. Na da Playboy, bem longa, estava especialmente inspirado. A primeira resposta, eu gostaria de dar hoje, para explicar o que tento produzir aqui nesta coluna: “Estou fazendo explorações. Não sei onde elas vão me levar. Meu trabalho é desenhado para o objetivo pragmático de entender nosso ambiente tecnológico e suas consequências psíquicas e sociais. Mas meus textos constituem o processo mais que o produto completo da descoberta; meu propósito é empregar os fatos como sondas investigativas, como meios de insights, de reconhecimento de padrões, mais que usá-los no sentido tradicional e estéril de classificação, categorias, contêineres. Eu quero mapear novos terrenos e não cartografar velhas fronteiras.”

scott pilgrim e cia.

25/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 25/06/2010

 

Uma das melhores iniciativas recentes do mercado editorial brasileiro foi a criação do selo Quadrinhos na Cia, pela Companhia das Letras. Confesso não acompanhar com muita atenção as novidades das “graphic novels“. É muita coisa boa, com novos artistas de peso surgindo em vários países. Preciso de filtros para me orientar, indicando o que é mais bacana. Quadrinhos na Cia virou meu filtro preferido para esse universo. Confio no gosto de quem escolhe o que publicar. Ou melhor, o selo tem um gosto parecido com o meu, mesmo para aquilo que desconheço. Muitos de seus autores se já tornaram centrais no meu panteão literário: Gene Luen Yang, de O Chinês Americano; Craig Thompson, de Retalhos; Dash Shaw, de Umbigo Sem Fundo – leituras obrigatórias, com visões artísticas originais, complexas e perturbadoras.

 

Mesmo assim, com todas essas descobertas indutoras do efeito “quero mais”, mantenho um certo pé atrás diante dos mundo dos quadrinhos hypados. A luta pela sua legitimação como Arte foi – ou tem sido – tão séria, que talvez seus criadores tenham adquirido o vício de se levar a sério demais, ainda que buscando permanecer no conforto contestatório de um mítico underground (Gonzolândia! Todo mundo tem a Disney que merece…), ou – pior – de uma sensibilidade indie. Tenho cada vez menos paciência para tudo que tem cheiro de indie, de filme premiado em Sundance a namorada de Pete Doherty. Há um maneirismo vazio e adolescente bobo que quer – como um Super-Homem de calça skinny – parar o mundo no início dos anos 80, ao som do mesmo riff de guitarra repetido ad infinitum. Por isso, ainda que confiando no julgamento editorial do Quadrinhos na Cia, demorei a encarar Scott Pilgrim Contra o Mundo. A menção na contracapa ao “vibrante mundo do rock’n’roll canadense” atuou como exterminador de meus neurotransmissores consumistas. Considero Arcade Fire ou Broken Social Scene tolices pretensiosas, intoleráveis. Então, só depois de apalpar, “com o amor táctil que votamos aos maços de cigarro”, suas capa e páginas em várias idas a livrarias, é que fiz a compra. A obra de Bryan Lee O’Malley, o criador de Scott Pilgrim, virou minha obsessão principal desta semana, desencadeando um carinho descontrolado por qualquer coisa canadense, mesmo suas bandas indies (“são crianças, não sabem o que fazem…”).

 

Resultado: já li todos os outros livros Scott Pilgrim (esperarei ansioso o lançamento o último volume no dia 20 de julho, se a obsessão durar até lá) e o Lost at Sea, primeira produção de Bryan, mesmo que ainda não lançados pelo Quadrinhos na Cia. Vi os trailers do filme que estreará em agosto baseado na série, e já formei minha opinião que Michael Cera, o ator de Juno, foi a escolha certa para encarnar Scott, apesar de ele parecer sempre Michael Cera, ou justamente por isso: Scott é um pouco cada um de nós que fomos adolescentes em qualquer década e país do planeta pós-rock. Conferi o material disponível na internet sobre o game também baseado na série, mas percebi que a pancadaria ninja domina, acabando com o contraste delicioso entre ação e momentos-nada, com suas encanações existencialmente românticas, existentes nos quadrinhos. Pois é nessa amalucada oscilação de tons e estilos narrativos que está o mais curioso e sedutor de Scott Pilgrim, quando o blá-blá-blá indie – dominante em Lost at Sea, cuja protagonista acredita não ter alma – é decorado por um visual mangá e por recursos gráficos dos jogos eletrônicos, como mudanças de nível na partida ou indicadores de quantidade de karma ou “vida” de cada uma das personagens.

 

Alexandre Lancaster, nossa enciclopédia de cultura pop japonesa, diretamente de Todos os Santos, no Grande Meier (terra de Lima Barreto), decreta – em seu blog Maximum Cosmo – que Scott Pilgrim é “a primeira grande obra pop do mangá canadense/americano”, e analisa com detalhes (“No segundo volume, as calhas horizontais entre os quadros se tornam mais espessas do que as verticais – uma característica tradicional do mangá.”) como a mestiçagem nipônica foi ganhando espaço durante a obra. Bryan Lee O’Malley – que é mestiço coreano-francês-canadense, se sentindo fora de lugar nesses vários ambientes étnicos – pensa o que faz uma derivação do mangá, já mixando alguns estilos bem específicos dentro da rica história dos quadrinhos japoneses. E talvez isso seja o mais interessante: já chegamos naquela fase em que, como aconteceu com o rock, a novidade do Japão vai se adaptando às realidades culturais diferentes do resto do mundo, gerando produtos híbridos, orientais-locais.

 

NOTÍCIAS DO OVERMUNDO – Tomado por essa nipomestiçagem global, encontro o anúncio da Game Anime Expo, que vai se realizar em Aracaju no final de julho. A agenda do Overmundo já havia publicado notícias sobre eventos semelhantes em Santo André, São Luís, Teresina, Natal, Palmas etc. São sempre reuniões de milhares de adolescentes, de todos os grupos étnicos e classes sociais, unidos pelo seu interesse por pop japonês, quadrinhos e jogos eletrônicos. Na Expo de Aracaju fui surpreendido, lendo a lista de palestrantes, por uma cena sergipana de produção de games, com empresas como Fluidplay, Elfland e Lumentech, todas exportando seu produtos há vários anos. Hoje, não importa nossa localização geográfica, próxima ou não dos “centros”, para o estabelecimento de conexões artísticas-produtivas globais.

 


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