texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 11/01/2013
A história do funk carioca continua me surpreendendo. Quando fiz pesquisa nos bailes para o mestrado, defendido em 1987, não havia funk eletrônico cantado em português e produzido no Rio. Depois do lançamento do LP “Funk Brasil” (1989), não demorou cinco anos para os bailes que tocavam 100% de música importada passarem a ser animados por quase 100% de música composta na cidade. Em seguida, nosso batidão penetrou em pistas de dança mundiais, e seu tamborzão digital foi parar em hits de Beyoncé ou Black Eyed Peas. No ano passado, mesmo ainda discriminado, ganhou status de música oficial, destaque no disco do Roberto Carlos ou em todos os momentos brasileiros das cerimônias olímpicas. Porém, nenhuma surpresa foi maior que ver cenas de funk carioca nascendo em outros estados brasileiros, com até mais sucesso que o produto “original”.
Quem diria: São Paulo é hoje epicentro nacional-popular do samba e do funk carioca. No samba, temos desde o megasucesso de um Exaltasamba, transferido para as carreiras solo de Péricles e Thiaguinho, até a exaltação “de raiz” de um Samba da Vela. No funk, o que era “carioca” ganha sotaque paulistano e vira “ostentação”, gerando milhões de views no YouTube e shows lotados em todo o Brasil, mesmo sem discos ou divulgação nas rádios.
Em 2012, o “Gangnam style” brasileiro foi “Plaque de 100”, do MC Guime. Seu clipe oficial, publicado na internet há apenas seis meses, tem 19 milhões de views. Se contarmos clipes produzidos por fãs e paródias, esse número fica muito maior. Procurando agora por “Plaque de 100” no YouTube, encontrei 6.470 resultados, que incluem de animações feitas com personagens do game GTA ou do desenho “Alvin e os esquilos” até – meus favoritos – versão rasta-música-para-acampamento tocada só com violão e voz ou hilária tradução da letra para inglês (100 bucks!). Tudo prova que o MC Guime atingiu algum recanto profundo do nosso imaginário coletivo.
(Depois da coluna coreana da semana passada, minha querida Gaby Amarantos me mandou link de paródia paraense de “Gangnam style”: “Vu para Cametá”, Banda Paranoia. Compartilho aqui a diversão. E sou obrigado a fazer pausa para outra reflexão: segundo a lei do direito autoral em vigência, todos esses clipes de fãs e paródias de “Gangnam style” ou de “Plaque de 100”, entre milhões de outras práticas corriqueiras da produção-brincadeira cultural on-line, são infrações que podem ser punidas com penas as mais variadas. O legalmente correto seria pedir autorização (comprovadas por contratos) dos autores antes de publicar qualquer nova obra baseada em suas criações. Ninguém faz isso. Ainda por cima, como muita gente descobriu com a mudança de termos de uso do Instagram, quando publicamos paródias “ilegais” nas redes sociais, muitas vezes transferimos direitos – até uso comercial – dessas nossas criações bastardas para os donos do Twitter, Facebook etc. Projetos como o Creative Commons e propostas de reformas da lei são tentativas para lidar com esse desafio, propondo novo pacto legal, no qual “samplear” não seja sinônimo de “roubar”, e todos ganhem com a inevitável conjuntura digital.)
Eu deveria aqui fazer a antropologia da “ostentação”, e da Classe C. Deveria analisar a pré-história do funk carioca em São Paulo, das noites pilotadas pelo DJ Marlboro no clube Lov.E, ou dos festivais organizados pelo Renato Barreiros quando comandava a subprefeitura da Cidade Tiradentes, periferia paulistana (mostrando como o poder público pode ter relação saudável com a inovação cultural). Não vou ter espaço. Quero apenas saudar um dos aspectos desse novo intercâmbio musical Rio-São Paulo: antes parecia que o hip hop no Brasil iria ficar dividido entre a galhofa do Rio (pois funk carioca é herdeiro legítimo, via Miami Bass, do hip hop) e a seriedade paulistana, com seu rap militante. Agora as coisas aparecem bem misturadas, e a confusão pode ser saudável para as artes brasileiras em geral.
Mano Brown, na sua importante entrevista para o aniversário de um ano da revista Rap Nacional, fala em vários momentos de seu “convívio com os caras do funk”, e pergunta: “Como é que você vai embarrerar o funk? Como é que embarrera o mar?” Do outro lado, o MC Guime se juntou com Everton Muleke e a escola Império da Casa Verde e lançou “Lar doce lar (favela)”, um samba-funk pós-ostentação que tem tudo para se transformar no “Rap da felicidade” (aquele do “eu só quero ser feliz”) paulistano. Diz a letra: “minha mãe sempre dizia: tenha esperança / Hoje para o Brasil inteiro, direto de Sampa / É carnaval, então já é, vamos cair pro samba.”