Archive for the ‘direito autoral’ Category

biografias

16/11/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15/11/2013

Impressionante a quantidade de energia gasta no debate sobre as biografias. Poucos outros assuntos foram tratados recentemente com tanto destaque. Hoje, ultrapassados os momentos mais emocionantes daquilo que este jornal chamou de Batalha (com B maiúsculo – será que entrará para livros de história como a Guerra do Paraguai?) talvez já seja possível identificar aprendizados coletivos importantes. Muita gente produziu textos longos repetindo aquilo que pioneiros libertários da internet nos ensinaram: a informação quer ser livre.

Sim, liberdade e coletividade são palavras que se sobressaem na leitura de depoimentos que já decretaram que “a sociedade venceu o debate”. Fiquei alegre ao encontrar, mesmo entre advogados de editoras, o seguinte consenso: conhecimento é produção coletiva e seus resultados, ainda que provisórios e contraditórios, são – em última instância – bens públicos. Essa é a consequência lógica da tese – defendida por Roberto Feith – “de que a trajetória de Getúlio, Garrincha ou Noel Rosa, a de Lula, Pelé ou Caetano Veloso fazem parte de nossa ideia de Nação” e, por isso mesmo, “o acesso de historiadores e escritores às suas trajetórias deve ser pensado no contexto do direito dos brasileiros de acederem à história de seu país.” Em resumo: “sua história também faz parte da história de todos nós.”

Parece definição de domínio público. Na base de qualquer legislação sobre direito autoral está o entendimento de que criações artísticas, avanços científicos e ideias são – também em última instância – bens coletivos. A sociedade, buscando incentivar mais invenção, concede generosamente aos criadores a possibilidade de explorar comercialmente sua produção por períodos de tempo bem determinados. Depois tudo necessariamente deve voltar para seu lugar natural, o domínio público, contribuindo livremente para novas produções, aumentando o conhecimento da Humanidade sobre si mesma.

Espero que a Batalha das Biografias acelere a formulação de legislações de direitos autorais – no Brasil e em tratados internacionais – que coloque o bem público como fundamento de todo o resto (até para o bem, em termos de renda, dos artistas, que terão mais material livre para recriar – recriação é elemento essencial de toda arte). As editoras poderiam lutar pela redução do período para as obras voltarem ao domínio público. Que ninguém se preocupe: não estou advogando o retorno aos 14 anos depois da criação, como foi na época de Thomas Jefferson. Apenas considero que 70 anos depois da morte dos autores é um absurdo contra a memória nacional.

(Eu poderia lançar propostas mais radicais. Inspirado em licenças “copyleft” – que divulgaram a ideia de “ShareAlike” [todo produto derivado de um software livre deve ser livre também – lembro: muitos softwares livres podem ser comercializados; e cada vez mais indústrias/autores lucram liberando seus produtos] – talvez fosse educado sugerir que os produtos derivados de vidas-privadas-que-são-consideradas-domínio-público devessem ser domínio público também. Mas isso seria pregar a abolição do direito autoral, coisa que nunca fiz. Reconheço o direito dos biógrafos/editoras de terem exclusividade sobre as vendas dos seus trabalhos, mesmo que envolvam exploração privada do que é propriedade coletiva.)

Já que estamos falando nessa memória: por que não usamos pequena porcentagem da energia do debate sobre as biografias para a melhora dos verbetes biográficos na, por exemplo, Wikipedia em português? O acesso à história de nosso país ganharia “upgrade” imediato. Compare a maioria dos verbetes em inglês, mesmo sobre assuntos brasileiros, com os verbetes em português. Vergonha nacional?

Sabemos que, para a maioria da população, a principal fonte de informações biográficas será, predominantemente, a internet (e os primeiros resultados de qualquer busca on-line geralmente são da Wikipedia), e não os livros em papel (nada contra os livros em papel, vou amá-los/comprá-los compulsivamente enquanto estiverem à venda). Vi a proposta de biografia não-autorizada de Caetano no Facebook. Mas aquilo ali é território privado, cercado, sem garantias de preservação. O que estamos fazendo para tornar as informações on-line mais confiáveis, com vida longa assegurada? Iniciativas centralizadas como a do ItaúCultural ou do Dicionário Cravo Albin, excelentes fontes de dados biográficos de nossos artistas, vão infelizmente se mostrar insustentáveis (como a Enciclopédia Mirador). Não há escapatória: a construção dessa memória é tarefa coletiva. A qualidade dos resultados é responsabilidade de todos – e dá trabalho para todos.

Feliz dia da proclamação da “coisa pública”!

legal e ilegal

15/06/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 14/06/2013

Francesco “Phra” Barbaglia, mais conhecido como Crookers (se não me engano no início era uma dupla e depois virou nome artístico de um homem só), é um dos principais produtores/DJs de música animada para  as pistas de dança contemporâneas. Conheci seu trabalho em 2007 quando participou da série de discos “Funk Mundial”, arquitetada pelo teutolusotropicalista Daniel Haaksman. Sua “Soca Ali Baba” era a mistura perfeita do tamborzão com a house mais tribal, tudo embalado pela alta energia comercial da disco music italiana. De lá pra cá, sua fama só cresceu, tanto que é procurado por músicos iniciantes do mundo inteiro para dar opinião sobre seus trabalhos. Crookers resolveu criar a Ciao Records para lançar seleção do material que recebe por email.

Na entrevista para o site MTV Iggy que anunciava os primeiros lançamentos dessa gravadora, não consegui descobrir qual é seu modelo de negócios. Muitas respostas pareciam mesmo colocar em cheque a necessidade de uma indústria fonográfica: “os artistas na verdade ganham dinheiro com apresentações ao vivo. Essa é minha percepção, talvez eu esteja errado, mas você não ganha dinheiro com um disco – faz o disco para ir para a estrada e tocar seu disco.” Se é assim, talvez a Ciao Records funcione mais como agência para novos artistas, participando da receita dos shows. Não sei. Crookers pode também não saber: está fazendo uma experiência, como muitos outros de seus colegas.

Uma resposta parece ser a consequência lógica mais interessante desse ambiente experimental: “Quanto mais pessoas conhecem a música de um artista, melhor para ele. Se sua música atinge um grande público por causa do YouTube, é bom para você, porque agora pode sair com esse disco em excursão. A liberdade para publicar na rede tudo que quer é metade boa, metade ruim. Quando você ficou trabalhando por um ano, e tem uma estratégia de marketing para o lançamento, e então alguém vaza seu álbum, isso realmente lhe deixa furioso. Mas fora isso, sites como o YouTube são ótimos para descobrir música. Eu adoro. Como dono de gravadora, posso dizer honestamente que não ligo. Eu mesmo publico as músicas de meus contratados no YouTube. E você pode ganhar algum dinheiro com isso. Não é muito, mas ganha pois você tem os direitos.”

É curioso esse pensamento – combinando o tempo todo com uma prática com cara de voo cego – aparentemente contraditório (ou totalmente contraditório) que oscila entre as defesas da liberdade e da restrição com relação aos direitos. Segundo as legislações atuais de direito autoral e/ou copyright da maioria dos países do mundo, ninguém pode publicar qualquer obra de qualquer autor em qualquer lugar (não importa se é mídia “tradicional” ou não) sem a autorização, de preferência autenticada em contrato, desse autor e/ou do detentor dos direitos dessa obra (editora, herdeiros etc.). Para deixar claro: publicar uma música do Crookers no YouTube sem autorização do Crookers é ilegal. O que o Crookers disse na entrevista é que não liga para a ilegalidade. Mais: que esse tipo de ilegalidade pode ser benéfico para suas músicas e sua carreira. E ao mesmo tempo lembra: o artista pode ganhar até dinheiro com a publicação não-autorizada de suas obras.

Como eu disse na semana passada: a tecnologia está inventando – na marra – sua própria lei, que se torna prática generalizada, mesmo contra a lei oficial. Tentarei explicar como isso acontece, usando o exemplo de “Harlem shake”, que foi primeiro lugar na parada Hot 100 da Billboard na semana em que essa revista – que é a mais importante para a medição/publicidade do sucesso musical comercial oficial nos EUA – passou a contabilizar visualizações no YouTube para determinar a hierarquia dos hits. O número total de views de “Harlem shake” somava aqueles do vídeo oficial, publicado por seu autor e sua gravadora, com os milhares de outros de vídeos piratas, publicados – sem a autorização explícita do autor – por gente que se filmou fazendo a coreografia dessa música. Quando ouvimos falar que “Gangnam style” ganhou mais de 1 milhão de dólares do YouTube, temos que saber: muito desse dinheiro vem de anúncios veiculados em vídeos que para a lei oficial seriam considerados piratas.

Vivemos então uma situação ambígua, onde uma empresa determina a nova legalidade. É uma gambiarra tecnológica, feita às pressas. Que controle externo podemos ter sobre o número de visualizações? Temos que acreditar no YouTube? Eu que não tenho pressa nenhuma, voltarei novamente a este assunto semana que vem.

PS: Sobre privacidade na rede: assino (com gargalhada sombria) mais uma vez embaixo de tudo que Chris Matyszczyk escreve neste link. Outra leitura obrigatória.

perigo

19/01/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 18/01/2013

Sexta-feira passada foi dia sombrio na internet. Sendo preciso: o problema começou na noite de quinta-feira, quando o departamento de “Homeland Security” do governo dos EUA recomendou a desabilitação do Java de nossos browsers. O período de notícias ruins se estendeu até a manhã de sábado, quando soube do suicídio de Aaron Swartz. Apesar da pouca idade (26), ele teve (e continuará tendo) importância decisiva para o modo como está organizado o melhor de nossa vida on-line. Nesta semana, minha tarefa foi refletir sobre a fragilidade extrema de tudo que contamos como garantido.

Sou muito influenciável. Levo a sério decretos de autoridades. Nunca tinha visto governo com posição tão explícita contra um programa de computador. Sou usuário (é o mesmo termo para drogados) que não teme mudar as “configurações avançadas” (escondidas) dos softwares. Até conserto sozinho o hardware. Meio em pânico, não entendi direito qual era o risco e, além do Java, desabilitei também o JavaScript (como leigos vão saber que não são a mesma coisa?) Nossos afazeres domésticos andam cada vez mais insuportavelmente complexos. [Aqui instruções para quem quer desabilitar ou desinstalar o Java de seu computador e de seu browser.]

Ali começaram outros problemas (e até a finalização deste texto, não há solução confiável para o bug do Java ). O Yahoo, por exemplo, parou de funcionar. Tive que fazer downgrade para versão antiga, reaprendendo comandos esquecidos. Alguns recursos já banais desapareceram. Como mandar email sem autocompletar os endereços? Pensei ter voltado para a ciberidade da pedra (e olha que uso email desde quando não havia web – para enviar mensagens era necessário decorar vários comandos Unix).

Sites como o Twitter simplesmente se tornaram inoperantes. Ao tentar acessá-lo recebia apenas o aviso: “O Twitter faz uso pesado do JavaScript. Se não pode habilitá-lo no seu browser, você deve ter uma experiência melhor no nosso site para celular.” Como viver sem trending topics no laptop? Como controlar a síndrome de abstinência? Autodiagnóstico: nunca pensei que era dependente de tanto serviço baseado nesse tal de JavaScript.

Pelo menos o vacilo foi meu: eu que desabilitei o Java – posso reabilitá-lo se não aguentar o cold turkey (como fiz com o JavaScript, que – depois descobri – também tem seus problemas). Li que os usuários de Mac receberam tratamento diferenciado. A Apple desabilitou remotamente o Java de quem possui seu sistema operacional mais recente. Desta vez foi para “nosso bem”, para facilitar nossas vidas, para poupar-nos de erros, para nossa proteção (lembrei da música da Plebe Rude). Mas é perigo óbvio: e se nossos fabricantes de computador puderem decidir tudo a que devemos ter acesso “sem risco”? Paranoia tipo Philip K. Dick?

Aaron Swartz dedicou sua vida para combater essa paranoia, inventando ferramentas que aceleram a livre circulação da informação pela rede e aumentam o poder dos usuários contra grandes empresas/governos. Com 14 anos, foi um dos principais criadores [depois de publicar a coluna descobri que ele foi co-autor da especificação do RSS 1.0, seja lá o que isso for] do RSS (do qual sou dependente – não visito mais nenhum site, os feeds de RSS trazem notícias e posts que me interessam; foi assim que soube do seu suicídio, mesmo com meu apagão do JavaScript, que fez meu leitor de RSS, o Google Reader, parar de funcionar). Essa foi apenas sua primeira criação importante (leia resumo de sua vida na coluna de Pedro Doria publicada terça-feira neste jornal, que deu foto de Aaron na primeira página).

Em fevereiro, aconteceria o julgamento que poderia condenar Aaron a três décadas de prisão. A acusação (nada ainda foi provado) era de ter roubado alguns milhões de artigos acadêmicos cujo acesso é comercializado a peso de ouro por uma organização chamada JSTOR. A intenção (também não provada) seria distribuir esse conteúdo livremente na internet (mas tudo não saiu de seu laptop). A perspectiva de ser preso (muita gente diz que o objetivo era usá-lo como bode expiatório contra hackers e “pirataria” – os procuradores responsáveis por seu caso precisam ser investigados – mas o sistema legal caduco é o que mais necessita de revisão urgente) e anos de convívio com depressão devem ter sido os motivos do suicídio.

Perdi a oportunidade de conhecer Aaron pessoalmente, quando esteve no Rio há quatro anos, e ficou hospedado na casa do Ronaldo Lemos. Como era muito jovem, pensei que seria fácil encontrá-lo em outras ocasiões. Lição: não deixe para hoje o que poderia ter feito ontem. Ronaldo, em coluna da Trip, publicou entrevista feita durante a visita brasileira. Vale a pena reler o trecho sobre escola. Ronaldo também me passou o link para post onde Aaron comentava os 100 livros que leu em 2008. Fiquei dependente dessa lista publicada todos os anos. A de 2012 não saiu. Vamos ter que conviver com essa nova abstinência. Terrível perda para quem acredita no potencial criativo da internet.

funk paulistano

12/01/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 11/01/2013

A história do funk carioca continua me surpreendendo. Quando fiz pesquisa nos bailes para o mestrado, defendido em 1987, não havia funk eletrônico cantado em português e produzido no Rio. Depois do lançamento do LP “Funk Brasil” (1989), não demorou cinco anos para os bailes que tocavam 100% de música importada passarem a ser animados por quase 100% de música composta na cidade. Em seguida, nosso batidão penetrou em pistas de dança mundiais, e seu tamborzão digital foi parar em hits de Beyoncé ou Black Eyed Peas. No ano passado, mesmo ainda discriminado, ganhou status de música oficial, destaque no disco do Roberto Carlos ou em todos os momentos brasileiros das cerimônias olímpicas. Porém, nenhuma surpresa foi maior que ver cenas de funk carioca nascendo em outros estados brasileiros, com até mais sucesso que o produto “original”.

Quem diria: São Paulo é hoje epicentro nacional-popular do samba e do funk carioca. No samba, temos desde o megasucesso de um Exaltasamba, transferido para as carreiras solo de Péricles e Thiaguinho, até a exaltação “de raiz” de um Samba da Vela. No funk, o que era “carioca” ganha sotaque paulistano e vira “ostentação”, gerando milhões de views no YouTube e shows lotados em todo o Brasil, mesmo sem discos ou divulgação nas rádios.

Em 2012, o “Gangnam style” brasileiro foi “Plaque de 100”, do MC Guime. Seu clipe oficial, publicado na internet há apenas seis meses, tem 19 milhões de views. Se contarmos clipes produzidos por fãs e paródias, esse número fica muito maior. Procurando agora por “Plaque de 100” no YouTube, encontrei 6.470 resultados, que incluem de animações feitas com personagens do game GTA ou do desenho “Alvin e os esquilos” até – meus favoritos – versão rasta-música-para-acampamento tocada só com violão e voz ou hilária tradução da letra para inglês (100 bucks!). Tudo prova que o MC Guime atingiu algum recanto profundo do nosso imaginário coletivo.

(Depois da coluna coreana da semana passada, minha querida Gaby Amarantos me mandou link de paródia paraense de “Gangnam style”: “Vu para Cametá”, Banda Paranoia. Compartilho aqui a diversão. E sou obrigado a fazer pausa para outra reflexão: segundo a lei do direito autoral em vigência, todos esses clipes de fãs e paródias de “Gangnam style” ou de “Plaque de 100”, entre milhões de outras práticas corriqueiras da produção-brincadeira cultural on-line, são infrações que podem ser punidas com penas as mais variadas. O legalmente correto seria pedir autorização (comprovadas por contratos) dos autores antes de publicar qualquer nova obra baseada em suas criações. Ninguém faz isso. Ainda por cima, como muita gente descobriu com a mudança de termos de uso do Instagram, quando publicamos paródias “ilegais” nas redes sociais, muitas vezes transferimos direitos – até uso comercial – dessas nossas criações bastardas para os donos do Twitter, Facebook etc. Projetos como o Creative Commons e propostas de reformas da lei são tentativas para lidar com esse desafio, propondo novo pacto legal, no qual “samplear” não seja sinônimo de “roubar”, e todos ganhem com a inevitável conjuntura digital.)

Eu deveria aqui fazer a antropologia da “ostentação”, e da Classe C. Deveria analisar a pré-história do funk carioca em São Paulo, das noites pilotadas pelo DJ Marlboro no clube Lov.E, ou dos festivais organizados pelo Renato Barreiros quando comandava a subprefeitura da Cidade Tiradentes, periferia paulistana (mostrando como o poder público pode ter relação saudável com a inovação cultural). Não vou ter espaço. Quero apenas saudar um dos aspectos desse novo intercâmbio musical Rio-São Paulo: antes parecia que o hip hop no Brasil iria ficar dividido entre a galhofa do Rio (pois funk carioca é herdeiro legítimo, via Miami Bass, do hip hop) e a seriedade paulistana, com seu rap militante. Agora as coisas aparecem bem misturadas, e a confusão pode ser saudável para as artes brasileiras em geral.

Mano Brown, na sua importante entrevista para o aniversário de um ano da revista Rap Nacional, fala em vários momentos de seu “convívio com os caras do funk”, e pergunta: “Como é que você vai embarrerar o funk? Como é que embarrera o mar?” Do outro lado, o MC Guime se juntou com Everton Muleke e a escola Império da Casa Verde e lançou “Lar doce lar (favela)”, um samba-funk pós-ostentação que tem tudo para se transformar no “Rap da felicidade” (aquele do “eu só quero ser feliz”) paulistano. Diz a letra: “minha mãe sempre dizia: tenha esperança / Hoje para o Brasil inteiro, direto de Sampa / É carnaval, então já é, vamos cair pro samba.”

futuro

24/03/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/03/2012

Já conclui a série sobre direitos autorais. Mas faltou dizer: houve um tempo em que o Brasil era vanguarda no debate sobre o futuro da cultura digital. O próprio Richard Stallman, que pode ser chamado de pai do software livre, reconheceu – na revista Wired – que nenhum outro país do mundo tinha governo mais comprometido com a democracia dos códigos cibernéticos. Cheguei a ver Stallman e Sarney abrindo o seminário “O software livre e o desenvolvimento do Brasil”, promovido pelo Congresso Nacional em 2003, início do governo Lula. Note bem: o software livre era visto como ferramenta de desenvolvimento, de produção de riquezas para a economia brasileira. Gilberto Gil, como ministro, também estava na mesa, e fez discurso conectando liberdade digital com enriquecimento artístico: era o momento em que o Brasil, seguindo também as lições dos movimentos antropofágicos e tropicalistas, poderia se transformar em laboratório capaz de propor soluções para a crise dos velhos modelos de negócios da indústria cultural mundial. Na plateia, eu imaginava estar vivendo dentro da letra dos Novos Baianos: “chegou a hora desta gente bronzeada mostrar seu valor”. Confesso aqui mais uma vez meu sebastianismo: sempre esperei que o Brasil tivesse missão central para cumprir no planeta. Nunca me contentei com a retaguarda.

Quase dez anos depois, constato que tudo ficou para o “país do futuro”. Claro, somos a tal sexta potência econômica, e continuamos dominando toda nova rede social virtual, mas parece que seguimos uma trilha de desenvolvimento pouco original, que esbarrará naqueles mesmos impasses que o mundo dito desenvolvido enfrenta agora. Quanto à experimentação com os códigos abertos da produção cultural, andamos para trás, para o passado. Deu medinho oficial do novo, bateu aquele apego à merreca conhecida, que ainda satisfaz a uma minoria. Para que gastar energias com propostas experimentais? É obvio: o barco está afundando, mas tem gente finge não ver a água entrando por todos os lados, pois dá muito trabalho organizar a operação de salvamento coletivo. Gente que prefere naufragar “dignamente”, ignorando a tempestade lá fora, ou a mudança radical da maré.

Que fazer para retomar a ousadia, para sair do culto da mixaria, para cumprir nossa missão? É preciso recomeçar conectando muita atividade dispersa. Que o marasmo oficial não nos engane: o Brasil continua produzindo muitos pensamentos e ações originais, mesmo sem a repercussão internacional da década passada. Citei aqui, semanas atrás, o livro “O domínio público no direito autoral brasileiro”, de Sérgio Branco. Houve problema engraçado no seu lançamento. A editora Lumen Juris foi corajosa aceitando lançá-lo como obra já em domínio público. Mas o licenciamento tradicional é tão automático que a primeira impressão do livro saiu com aquele aviso policialesco, que nos trata como suspeitos, contido em quase todos os produtos culturais: “É proibida a reprodução total ou parcial […] A violação dos direitos autorais constitui crime” etc. (Uma vez comprei um DVD e fui obrigado a ver três anúncios antipirataria – sem passar por eles eu não chegaria ao filme. Deve fazer sentido: quem compra o DVD não-pirata precisa também ser punido.) Mas agora o problema está resolvido e a obra finalmente chegou às livrarias. É leitura essencial para voltarmos ao debate levado a sério.

No capítulo final, Sérgio Branco levanta um aspecto preocupante do atual movimento de “privatização” do domínio público, que precisa ser levado em consideração por qualquer política cultural. Muitos acervos públicos passaram a fazer cada vez mais exigências, inclusive o pagamento de taxas, para o acesso a obras que estão em domínio público. Isso acontece, por exemplo, com a proibição de fotografar quadros que estão em museus (a explicação de que flashes danificam as pinturas não é suficiente para justificar esse tipo de regra, e em muitos casos já se tornou tecnicamente obsoleta). Mesmo quando pagamos por reproduções fotográficas das obras, temos que assinar contratos nos comprometendo a não usar aquelas fotografias comercialmente, ou mesmo cedê-las para terceiros. Há aqui tentativa sorrateira de restringir a ideia de domínio público apenas para utilizações não comerciais, o que é errado. O domínio público também se justifica tornando possível que qualquer pessoa possa ganhar dinheiro com aquilo que passou a ser da Humanidade. Foi assim que a Disney se enriqueceu (e também enriqueceu nossos imaginários) usando obras dos irmãos Grimm sem precisar pagar nada pelo uso totalmente comercial.

Tente hoje solicitar autorização em arquivos públicos do Rio para reproduzir uma foto de Augusto Malta, já em domínio público, num documentário sobre história da cidade. Muitos deles vão cobrar taxas diferentes (não importa se a diferença é grande ou pequena; é o princípio que está em jogo) se a utilização da foto tiver ou não finalidade comercial. Claro que essas instituições precisam de dinheiro para o trabalho de conservação. Mas esse é outro problema, exigindo outras soluções que nada têm a ver com direito autoral. Para manter o acervo ninguém precisa mudar a função do domínio público, que não prevê discriminação entre vários tipos de uso da obra. O domínio público é nosso, ninguém tasca: existe para incentivar novas criações – e criadores que possam viver de suas criações.


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