Archive for the ‘EUA’ Category

The Meters

27/06/2020

Como passei tanto tempo da minha vida sem ouvir The Meters todos os dias? É vitamina pura. Estava planejando escrever sobre essa banda desde que soube da morte de Art Neville, seu tecladista, há quase um ano. Mas só agora consegui escutar todos os oito discos. Não com a atenção planejada. Sempre como trilha sonora para outras atividades pesadas-confinadas. Mas tudo fica leve e livre com essa música vigorosa e alegre (mesmo com tantas evidentes conexões com o blues do Delta do Mississipi). Então deu vontade de recomendar esse remédio, que pode ser útil para muita gente, artigo de primeira necessidade, atividade essencial.

Os dois primeiros discos, lançados em 1969, são instrumentais. Não pode haver banda – de guitarra, baixo, bateria e órgão – melhor. A mais perfeita lição do básico (incluindo toda a sofisticação) do funk, comparável aos mais celebrados momentos dos J.B.’s ou da Africa 70 (que eram quase big bands se comparadas ao minimalismo Meters). Tudo com produção de Allen Toussaint (preciso escrever também um post sobre sua obra aqui, agradecendo todo o bem que ele já me fez), som claríssimo e poderoso, poderia ser gravação de hoje (muita gente, em atitude vintage, tenta copiar aqueles sons de teclado). E como sempre digo: é música para se acabar de dançar sim, mas simultaneamente incentivando o processamento cerebral dos mais complexos conceitos estéticos.

Depois aparecem algumas faixas cantadas no disco Struttin’. A primeira é uma versão soul muito sutil de Wichita Lineman, uma das canções mais bonitas de todos os tempos, com aquela letra aparentemente surreal, mas muito concreta, de trabalhadores trepados em postes consertando cabos de linha telefônica, sozinhos no descampado no meio do nada dos EUA. O que era aéreo na voz de Glen Campbell se reconecta com a Terra sob o tratamento matemático dos Meters. A bateria de Zigaboo Modeliste (que nome incrível, que baterista divino) comenta tudo de forma inesperada.

O quarto álbum, Cabbage Alley, tem início heavy, com riffs que poderiam ser de Jimmy Page. A banda agora também tem percussionistas não oficiais. Há uma faixa chamada Gettin’ Funkier All the Time. Como se fosse possível. E é. Todos os detalhes merecem atenção, como o break de guitarra Shaft, ou os segundos iniciais que soam como ritmo de trás para frente. Depois vem Rejuvenation, disco de Hey Pocky A-Way (onde New Orleans fica totalmente evidente) ou Africa (que para meus ouvidos anuncia a Nação Zumbi). Sua capa sempre torna mais chique qualquer lista responsável de melhores discos da História.

Neste momento, The Meters fica chique mesmo. É a banda que toca na festa de lançamento de Venus and Mars, no transatlântico Queen Mary (época de pico na indústria fonográfica, Paul McCartney podia queimar dinheiro da gravadora). Mick Jagger estava na plateia. Resultado: convidou a turma de Art Neville para abrir as turnês de 1975 e 1976 dos Rolling Stones, não por acaso a época em que o disco Black and Blue estava em acabamento. Mesmo com essa exposição, e lançando o arrasta-pé (tem até um Mardi Gras Mambo, escancaradamente carnavalesco) que é Fire on the Bayou, os Meters não decolam comercialmente ou em popularidade, tanto que até hoje não são conhecidos por multidões. Bem que tentaram, o disco seguinte tinha um popozão na capa e uma primeira faixa que declarava já no título Disco is the Thing Today. Gosto de quem segue moda assim sem vergonha. E anuncia outras modas, como gravando Stop that Train, de Peter Tosh – lançada pelos Wailers (mais uma prova da ponte New Orleans/Jamaica, elemento fundamental para a invenção do reggae), no último album dos Meters. Um disco, com os metais do Tower of Power, chamado New Directions.

Depois tem muita coisa nova. Incluindo a maravilha Neville Brothers.

Mas todo dia é dia para (re)descobrir The Meters. Como se fosse o primeiro dia do mundo.

passagem do tempo

13/06/2020

Escutar novamente Analog fluids of sonic black holes agora, depois dos protestos contra o racismo no planeta inteiro, é tarefa obrigatória para quem quer entender tudo que está acontecendo. Esse disco de Moor Mother ganha sentido mais profundo e urgente do que aquele que já podia ser percebido na época de seu lançamento, em novembro do ano passado. Muitas de suas poesias poderiam se transformar em cantos das multidões nas passeatas. Sim, eu sei bem: já virou lugar comum dizer que várias coisas ganharam ares de profecia no momento em que estamos vivendo. Mas neste caso, é a mais pura verdade. Mesmo as críticas do disco – ver por exemplo, esta do Pitchfork, esta do Guardian – hoje soam igualmente proféticas.

Nesse caso, não chega a ser exatamente uma surpresa. Rasheedah Phillips, companheira de Camae Ayewa (a Moor Mother – as duas são parceiras também em projetos que conjugam arte e militância, como o Black Quantum Futurism e o Community Futures Lab), há anos defende uma concepção afrofuturista do tempo, contra a linearidade mecânica que desemboca num futuro excludente, impondo a necessidade de invenção de outras noções de progresso. (Recomendo a leitura dos artigos de Rasheedah Phillips publicados no livro We travel the space ways, coletânea que inclui textos, artes plásticas, histórias em quadrinhos, extratos de roteiros cinematográficos e muito mais, gerando um panorama muito diverso do afrofuturismo, com autores/criadores como Kodwo Eshun, Greg Tate ou Jim Chuchu – o título é uma homenagem a Sun Ra – que falta ele faz, ainda bem que tive a sorte de ver um de seus shows, totalmente apoteótico, rodei por todo o universo com sua música prafrentex, suas roupas e refrãos espaciais.)

Ainda sobre Analog fluids of sonic black holes: que incrível terminar com a faixa afro(futurista)brasileira Passing of time, com a poesia dizendo em inglês “minha mãe, minha avó, minha bisavó colheram tanto algodão que salvaram o mundo”, ao mesmo tempo em que Juçara Marçal canta em português “direto ao coração” repetidas vezes. Deu vontade de escutar novamente também o Baião das Princesas, gravação de A Barca (Juçara foi uma das fundadoras), uma das coisas mais bonitas que há no mundo salvo (e salve Pai Euclides!), que sempre me faz chorar de tanta beleza.

recolhas 2

09/06/2020

Na pressa do post anterior, eu me esqueci de sugerir também a maratona pelos (re)lançamentos recentes da Folkways, gravadora que desde 1987 faz parte da Smithsonian (e tem o muito querido Tony Seeger, grande conhecedor da música de povos indígenas do Brasil, como diretor emérito). Recomendo especialmente os deslumbrantes Tuareg music of the Southern Sahara e Sound Portraits from Bulgaria: A Journey to a Vanished World.

No título do disco búlgaro a expressão “mundo desaparecido”. Muitas das pessoas responsáveis por essas “recolhas” tinham e têm como motivação o lema de Alan Lomax: “Preservar o passado, antes que desapareça para sempre.” (Preciso aproveitar a oportunidade para deixar aqui um agradecimento para o Ronaldo Lemos – anos atrás ele me presenteou com Lomax, excelente história em quadrinhos que acompanha a viagem de John e Alan Lomax, pai e filho, pelo sul dos Estados Unidos recolhendo, contra o racismo dominante, música negra).

Poderia argumentar que trabalhos como o da dupla Lomax e da Folkways não apenas preservam passado, mas inventam futuros. Foi inegável a importância de suas recolhas para o surgimento de movimentos de folk na música pop, daquele que nos apresentou Bob Dylan ao alt-country. Mas hoje estou mais preocupado com outro desaparecimento: o dos registros que pretendiam preservar passados desaparecidos. Penso em acervos ameaçados em cinematecas, museus, bibliotecas e museus mundo afora. E também no problema de mídias, sites e nuvens que podem se tornar rapidamente obsoletos.

Em muitas viagens por todo o Brasil sempre tive a honra de conhecer uma geração de pesquisadores – muitos se pensavam como folcloristas – que com seus próprios recursos conseguiu recolher, em várias mídias precárias, muitas preciosidades das tradições musicais de suas regiões. Algumas dessas pessoas – como o encantador Deífilo Gurgel – já morreram. Não sei quem cuida de cada um de seus ricos arquivos. Meu sonho: uma instituição que recolha (e preserve, e torne facilmente disponível) as recolhas, preservando assim a preservação da enorme biodiversidade musical brasileira, contribuindo igualmente para o aparecimento de novos ritmos, melodias, movimentos e festas.

PS: saudade do tempo no qual era possível a gente ter esse tipo de sonho…

visão

26/04/2020

Acabo de ter uma visão incrível. Real. Lua nova e Vênus pertinho. Anoitecer. Fui investigar o resto do firmamento armado com aplicativo de observação celeste no celular. Quando encontrei o Cruzeiro do Sul (El karma de vivir al sur…) percebi umas luzes se movimentando velozmente, uma atrás da outra. Depois outras e outras, mais ou menos na mesma direção, de sudoeste para nordeste. Achei que estava alucinando. Muito alto para ser avião. Muito baixo para ser satélite. Chamei minha sobrinha para confirmar que eu não estava ficando maluco. Pensei até numa esquadrilha de discos voadores trazendo uma vacina para salvar nosso planeta, ou trazendo outro virus (a linguagem é um vírus vindo do espaço sideral…) Ela chegou a tempo de ver a última leva de ovnis, logo os mais exibidos: dois deles se contorceram emitindo uma luminosidade poderosa e assustadora. Depois sumiram.

Fui procurar disco voador e UFO no Twitter live. Nada. Pensei que poderia ser avião, vinham de uma direção paulistana. Baixei um aplicativo que rastreia voos. Foi interessante para ver como os céus da Terra estão vazios. Quase sempre avião de carga, ou voos da Qatar Airways sobre a Índia. Aqui, sobre o mapa do Brasil, nada que justificasse a minha visão. Fui procurar sites de rastreamento de satélites. Não imaginava que eram tantos, com vida social intensa. Logo no primeiro havia um chat com muitas mensagens recentes de gente de todo o Brasil vendo a mesma coisa. E a explicação: eram satélites do Grupo 4 da “missão” Starlink da SpaceX do Elon Musk.

Incrível mesmo. E bonito demais. Fiquei pensando: se a ciência foi capaz de produzir um enxame de satélites como este (parece que podem ser vistos sobre o Brasil todos os dias), como demora tanto para desenvolver uma vacina?

Fiquei com saudade de Lou Reed. Fiquei pensando em Laurie Anderson. Ela citou Satellites of love bem antes de casar com Lou Reed. Que casal bacana. Procurando Let X =X no YouTube encontrei este vídeo de sua performance no David Letterman em 1984. Veja a música e a entrevista no final. Que visão maravilhosa.

lições de cosmologia

30/10/2017

Não paro de pensar nesse “misterioso” objeto que está nos visitando por pouco tempo, aqui em nosso sistema solar (veja a animação de sua trajetória que ilustra a matéria do New York Times). No anúncio de sua chegada, o que mais me impressionou foi descobrir ser acontecimento tão raro, o primeiro registrado pela astronomia. Imaginava que haveria vários outros corpos interestelares semelhantes andando por aqui o tempo todo. Agora que fui surpreendido pela notícia de que esse não é o caso, tenho sensação inteiramente nova de claustrofobia. Vivemos isolados em nosso cantinho na periferia do Braço de Órion da Via Láctea. Fora do nível das partículas não recebemos visitas, nem nada local vai visitar outros lugares do Universo.

E se sair daqui vai demorar muito tempo para chegar perto de qualquer outra estrela. O outra notícia “recente” impressionante, mas também para mim decepcionante, foi a colisão de duas estrelas de neutrons há  130 milhões de anos, mas que só agora pôde ser observada aqui da Terra. A observação provou que as ondas gravitacionais viajam na velocidade da luz. Então é provável que Einstein esteja totalmente certo: nada, nem essa onda esquisita que brinca com a “elasticidade” do espaço-tempo, ultrapassa os 299.792.458 metros por segundo, passo de tartaruga para distâncias galáticas. Estamos condenados a ir “só”, e com muito esforço, até Plutão, ou quem sabe, Alfa Centauri (4,4 anos luz do Sol)? Com tanta coisa estranha e curiosa no resto do Universo? Que monotonia… Cadê minha Enterprise quando mais preciso dela?

Na falta da Enterprise…: a viagem da Voyager completou 40 anos agora em setembro. Primeiro objeto produzido por humanos fora do Sistema Solar. A matéria de Nadia Drake para a National Geographic chega a ser comovente, até por sua autora ser filha de Frank Drake, astrofísico que desenhou o mapa que ilustra o famoso disco de ouro da Voyager (finalmente podemos escutar sua seleção musical) indicando o lugar que a Terra ocupa no Universo. Em 40 anos o zeitgeist parece ter mudado completamente. O otimismo dos anos 1970 gerava atitude despreocupada: queremos fazer contato, venham nos visitar! Agora vivemos paranoia dominante: fomos loucos, imprudentes, de mandar aquele mapa para o espaço. Os ETs, conhecendo nossa localização, certamente viajarão para cá com o objetivo de nos destruir. A repercussão da matéria de Nadia Drake exigiu um outro artigo negando o perigo. Nele, Frank Drake afirma que na época do lançamento da Voyager não passou pela cabeça de ninguém a possibilidade de ETs do mal radical. O Universo era visto como território amigável…

Anos atrás, quando fazíamos juntos o programa Navegador, Ronaldo Lemos me apresentou a ficção científica chinesa de Cixin Liu. Já li toda a trilogia dos três corpos (os dois primeiros livros já foram lançados no Brasil). Tudo fascinante, uma das melhores leituras da minha vida (também recomendada por Obama). Mas é produto de visão pessimista bem característica dos tempos atuais, não importa o continente ou a cultura do observador: a premissa básica é que o Universo é território mais que hostil. Portanto devemos ficar escondidos aqui no nosso canto. Calados. No escuro sideral. Quanto mais isolados melhor… Tentarei escrever sobre Cixin Liu em breve, neste blog.


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