Archive for the ‘filosofia’ Category

complementos Ilustríssima 9

15/05/2021

Links para acompanhar a leitura do meu texto de hoje:

o livro com as monotipias de Luiz Zerbini já em pré-vendas

vegetal turn nas artes contemporâneas

humanidades vegetais em Harvard

a vida das plantas, de Emanuele Coccia, na Cultura e Barbárie – a vida sensível também

metamorfoses, de Emanuele Coccia, na Dantes

as plantas de Stevie Wonder

Michael Marder na Serpentine

ele também escreveu um livro sobre poeira

Michael Marder e Santa Hildegarda

ainda Roma

03/07/2020

Ou, para ser mais exato, perto de Roma. Nos últimos dias de sua vida, Sêneca viveu em suas casas de campo. Foi ali que escreveu as cartas para Lucílio, (re)leitura essencial para confinamento desconfinado e interminável. Preciso citar os primeiros parágrafos da primeira carta (segundo a tradução de J. A Segurado e Campos para a edição da Fundação Calouste Gulbenkian), que vai direto ao nosso ponto:

“Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos. Convence-te de que as coisas são tais como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente.

Podes indicar-me alguém que dê o justo valor ao tempo, aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre um pouco? É um erro imaginar que a morte está à nossa frente: grande parte dela já pertence ao passado, toda a vida pretérita é já do domínio da morte!

Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preenche todas as tuas horas! Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguirás depender menos do dia de amanhã. De adiamento em adiamento, a vida vai-se passando.

Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso.”

Que fazer? Como não sermos negligentes? Como aproveitar bem estes nossos dias, quando a morte não está à nossa frente, mas por todos os lados? Com espaços tolhidos, nada pode ser mais claro: temos apenas o tempo, essa “coisa transitória e evanescente” para experimentar, para tomar nas mãos – e o amanhã depende de uma vacina. Como não desperdiçar o que nos resta, o que sobrou?

No meu caso é mais difícil; como a Maria da música da Timbalada (ela também gosta de filosofia) eu gosto de muita gente. Gosto de réveillon em Copacabana, gosto de carnaval em qualquer lugar. Sêneca preferia distanciamento social: “É-nos prejudicial o convívio com muita gente: não há ninguém que não pegue qualquer vício, nos contagie, nos contamine sem nós darmos por isso. Por isso, quanto maior é a massa a que nos juntamos, tanto maior é o perigo.” (Carta 7) Por isso se afastou de Roma – mas Nero não permitiu aposentadoria tranquila, exigindo sua condenação ao suícidio.

Essa morte medonha e o elitismo aristocrata (autenticamente patricinho) não invalidam os bons e necessários conselhos das outras cartas. A coragem para sermos dignos daquilo que nos acontece. O sábio como “especialista em fazer amizades” (Carta 9), apesar de bastar-se a si mesmo. As práticas de controle das paixões. A organização heróica de cada dia como “se fosse o final da batalha, como se fosse o limite, o termo de nossa vida.” (Carta 12) Claro que voltarei a citar Sêneca, muitas vezes. Ele, estóico, adorava citar Epicuro. Cada citação era um “brinde”. E uma apropriação: “Tudo quanto é verdade, pertence-me”. Ou generalizando: “as ideias correctas são pertença de todos.” (Carta 12)

Então esta ideia aqui pertence-me, ou é a própria razão para a existência deste blog: “aprender dá-me sobretudo prazer porque me torna apto a ensinar! E nada, por muito elevado e proveitoso que seja, alguma vez me deleitará se guardar apenas para mim o seu conhecimento. Se a sabedoria só me for concedida na condição de a guardar para mim, sem a compartilhar, então rejeitá-la-ei: nenhum bem há cuja posse não partilhada dê satisfação.” (Carta 6)

girafas, Buster Keaton e cia.

25/04/2020

Indicação para quem tem algum tempo em tempos de pandemia (e para quem entende inglês): ouvir as 509 aulas de filosofia, cada uma com cerca de 20 minutos de duração, disponíveis no site historyofphilosophy.net. É uma grandiosa obra em progresso realizada por Peter Adamson desde 2010. Para mim representa o melhor do espírito dos pioneiros da internet, antes da maluquice das redes sociais: o conhecimento tem que ser livre e ser facilmente compartilhado/compartilhável de preferência de graça. A aula mais recente – escrevo no dia 26 de abril de 2020 – foi publicada sete dias atrás. Peter Adamson não tem pressa: está ainda na Renascença. Mas já passou por 62 aulas sobre a história da filosofia indiana, outras 65 sobre filosofia islâmica, e desenvolve uma série em paralelo chamada Africana, sobre filosofia produzida no continente africano e na diáspora africana. É uma pretensão saudavelmente enciclopédica, que respeita a diversidade e a complexidade do pensamento humano. Por isso o subtítulo da empreitada é “sem nenhum gap”.

Muitas das aulas foram publicadas em livro, pela Oxford University Press. Mas gosto da experiência de poder ouvir cada uma delas nas situações mais improváveis. Já corri muito ouvindo a reflexões sobre o Bem em Plotino. Hoje de manhã estava varrendo a casa aprendendo sobre mente e memória, e a Trindade, em Santo Agostinho.

Alguma alma caridosa poderia traduzir essas aulas para português. Mas pensando bem: seria melhor imaginar um outro curso como esse em português. Pois Peter Adamson tem um estilo não exatamente intraduzível mas muito peculiar de ensinar. Faz sempre o mesmo tipo de piadas, que são charmosas por não terem graça nenhuma. Certamente ficariam sem sentido na boca de outras pessoas. Imagino que tudo seja escrito antes e lido (mas há também entrevistas com outros filósofos, algumas das maiores autoridades em vários temas): entre um “thus” e um “futhermore” lá vem um exemplo que envolve algo sobre girafas e Buster Keaton, ou o bordão “eu sei o que você está pensando” destinado diretamente para o aluno/ouvinte (nunca é o que eu estava realmente pensando). O que no início me irritava agora, muitas aulas depois, virou uma zona de conforto. E Peter Adamson passou a ter uma das vozes que me são mais familiares. Sou só agradecimento pelo tesouro que ele coloca a nosso dispor.

BaianaSystem

21/04/2020

Já na primeira audição, no início de 2019, não tive nenhuma dúvida: O futuro não demora é um dos melhores discos da música brasileira. Quando digo “melhores” estou falando bem sério: está ali na turma de Acabou Chorare, Minas ou Sem Suingue. No topo da criatividade nacional/mundial. Passado este tempo todo desde o lançamento, minha convicção só se fortaleceu. Tente escutar esse disco agora, na quarentena – é uma injeção de alegria/energia que até nos torna bem mais dispostos para enfrentar o pânico. Ideal para trilha sonora de uma “existential dance party” ou atividade semelhante para recolocar nossos corpos/mentes no seu devido lugar (não do velho normal, mas do outro normal possível que vamos ter que inventar num futuro que não demora). Por isso tudo, pela sua exuberante consistência estética inovadora, ao mesmo tempo prestando homenagem e dando continuidade ao espírito de inovação de antes/agora (“Zulu Nation, Nação Zumbi, Ilê Aiyê, Rumpilezz”, entre muitos outros mestres, incluindo os mestres da guitarrada), fiquei meio perplexo de não perceber que o disco tenha recebido o reconhecimento e os elogios todos que merece. Talvez até tenha, mas tudo hoje é tão disperso (não há mais uma única instância crítica de reconhecimento de obras-primas), que impede – para o bem e para o mal – a arrumação dos acontecimentos culturais dignos de nota numa “linha evolutiva” (“gosto quando evolui”, quando flui) que possa nortear a produção artística “como um todo”, para seguir em frente, fugir para frente. Talvez Da lama ao caos tenha sido o último álbum a formar esse tipo de consenso, ou ter essa reverberação mais profunda, ampla e duradoura (mesmo sendo um trabalho que anuncia bem a ciberfragmentação futura), inclusive tornando possível a existência de um BaianaSystem. Curiosamente, e parte do problema (ou da solução, quem vai saber), isso não tem nada a ver com sucesso ou popularidade: BaianaSystem é banda que arrasta multidões, com culto dançante e fiel quase religioso.

Talvez minha cabeça seja muito antiga, e funcione com método ultrapassado: por isso esta minha necessidade de gritar (talvez para nínguém): O futuro não demora é um obra-prima. Todo mundo (o que é “todo mundo” hoje?) deveria se beneficiar da audição de suas canções. O álbum (e é bem um álbum mesmo) vai de Água para Fogo, elementos que linkam as faixas, as pessoas, todas as coisas do mundo. É aquilo: já aconteceu com você e comigo, e vai acontecer mais, mesmo com isolamentos e distanciamentos sociais (que impedem o BaianaSystem de realizar uma de suas melhores mágicas: a produção pop-up de multidões guerreiras pacíficas, algo como a filosofia dos Filhos de Gandhy baixando e dominando o bloco pipoca, sem parar de pipocar – a serenidade em tempo de tempestade que BNegão identifica em Salve), pois no ponto futuro – certamente – “o doce e o sal vão se misturar”. E todas as sonoridades se misturam num ijexá com swingueira e samba de lata e afrosinfônica brega funk e hip hop sempre iluminados pela baiana do Roberto Barreto (talvez o mais elegante guitarrista do Brasil hoje?). Um sonho realizado de Moraes Moreira. Assim pintou Moçambique: tudo é limpeza/beleza.

O futuro não demora não é apenas uma obra-prima, é uma obra em progresso. Já deu em versões estendidas de Água e Fogo. Já deu no remix Topkillaz para Saci (com vídeo que resume muito do que quero dizer aqui em passos de dança). Deu nas faixas paralelas Cabeça de papel (que também ganhou remix do Tropkillaz) e Miçanga (assim pintou Moçambique, via trilha de filme português). E agora entorta deliciosamente mais uma vez nossas cabeças e nossos quadris com Futuro dub, todas as faixas “adubadas” por Buguinha. Sobre dub, já fiz minha exaltada declaração de amor em texto antigo:

“Jamaica, para mim, sempre foi país amado e respeitado por, antes de ser a terra do reggae ou de Bob Marley, ser a terra do dub. Muita gente pode não ter noção do que estou falando. O dub foi a maneira que os produtores musicais e os engenheiros de som jamaicanos inventaram, desde meados dos anos 60, para fazer música e pensar a música. As canções deixaram de ser encaradas de maneira linear. Os sons passaram a ser montados não-linearmente, antecipando a maneira de editar textos/ barulhos/imagens (o cortar-e-colar ou “cut-and-paste”) que se tornou dominante a partir da personalização dos computadores. As técnicas do dub, desenvolvidas por gênios -para mim tão geniais quanto Ludwig Wittgenstein ou Roman Jakobson, mas não quero impor meus critérios de julgamento para ninguém- como King Tubby ou Lee “Scratch” Perry, estão hoje na base da totalidade da produção musical de todo o mundo. Sem dub não haveria hip hop, tecno, drum’n’bass ou mesmo o mais recente sucesso de Britney Spears ou Zeca Pagodinho. […] O dub não é um estilo musical: é mais um procedimento filosófico. O dub não é uma forma, mas sim um “modo de agenciamento de formas”.”

Penso tudo isso novamente, igualzinho, ao escutar um Futuro dub que, abrindo espaços arquitetônicos e/ou filosóficos entre diferentes sons, revela ainda mais a força e a contundência de O futuro não demora. Milagres acontecem: por exemplo: a faixa Navio já era devidamente adubada em O futuro não demora a partir de uma mixagem genial do mestre Adrian Sherwood. Buguinha, ousado, conseguiu ser ainda mais radical: o samba-reggae voltou para Kingston e se afrociberdelificou – uma delícia, para mim poderia haver uma versão estendida eterna deste dub, eu nunca me cansaria de escutar e dançar. Neguinho do Samba deve estar orgulhoso da reinvenção de sua invenção. E que maravilha a festa candomblé em Certopelocertoh ou as guitarras pegando fogo em Fogo. Esse disco faz bem para o mundo todo. Continua bem a saga da avant-garde na Bahia. Como diz Fogo: o futuro não demora, já aconteceu. E vai continuar acontecendo.

PS: Quando Roberto Barreto me enviou o link para baixar O futuro não demora, ele me mandou também por email cópia deste texto pré-BaianaSystem publicado no Overmundo. Em retribuição passei para ele este texto que escrevi na volta de um daqueles carnavais mais inovadores de Salvador (eu estava lá também nos carnavais de Fricote, de Faraó e de Eu sou negão) – alguém deveria lançar a gravação deste desfile do AraKetu, diferente de tudo que o bloco fez antes e depois:

Bloco Afro – box para a revista Caos
escrito em março de 1990
Não custa nada repetir: a explosão dos blocos afros de Salvador foi o mais importante acontecimento pop no Brasil dos anos 80. Parece exagero, mas é a pura verdade. Que outro estilo musical soube criar novos ritmos, inventar sua própria mitologia, desenvolver repentinamente seu mercado de massas? Que outro estilo musical conseguiu, tão eficazmente, superar velhas dicotomias como tradição e modernidade, diversão e política, raízes e antenas?
Quem nunca viu o Olodum no Pelourinho, o Ara Ketu em Periperi ou o Ilê Aiyê e o Muzenza na Liberdade (alguns dos bairros mais pobres da capital baiana) não deve ter uma idéia precisa do que eu estou falando. Os discos são legais. Mas é preciso sentir o poder da bateria completa, é preciso constatar as ligações musicais e extra-musicais que os blocos mantêm com o espaço físico da cidade (reluzente, florescente, suja, miserável) para entender o meu entusiasmo.
É preciso ter os ouvidos acordados para escutar tanto desconstrucionismo rítmico. Os percussionistas misturam samba com reggae com merengue com o escambau. Enganam-se aqueles que, ao se defrontar com uma música que utiliza apenas percussão acústica e voz, pensam em sobrevivências folclóricas. Os blocos são mais modernos que os trios elétricos. A bateria do Olodum é tão pop quanto os toca-discos de Afrika Bambaataa.
Mas este é um assunto do passado. No carnaval 90, o Ara Ketu colocou seus percussionistas em cima de um trio e eletronificou/amplificou sua música com sintetizadores, guitarras e baixo elétrico, além de um naipe de metais totalmente funk. O bloco de Periperi é agora a mais ousada banda eletro-pop brasileira, chutando para o ciberespaço a bola da eletrificação do samba, justamente de onde Jorge Ben a largou.
Hoje, isso só poderia ocorrer em Salvador. Guardadas as devidas proporções, a atitude do Ara Ketu é tão radical quanto a Mangueira resolver sair no sambódromo tocando uma mixagem, feita com tamborins e drum machines, de pagode com hip hop. Impossível? Alguém pode me explicar porque o samba carioca é tão medonhamente “enraizado”?
O Ara Ketu era o bloco de aparêcia mais tradicional na cena pop baiana. Seu tema predileto é o candomblé. Foi maravilhoso ver seus integrantes, incluindo várias senhoras com aparência de mãe-de-santo, saindo dos arredores da favela de Alagados, onde fica o Periperi, e indo para o centro de Salvador dançar aquela música assumidamente pós-moderna.
Para mim foi a lição do ano. A união de candomblé com os sintetizadores desfilando pela Avenida 7 de Setembro: este é o país no qual eu quero morar.

identidades

19/05/2018

Sonhos foram terrenos férteis para o pensamento alegre de Clément Rosset. Houve aquele de uma noite de maio, que deu no livro sobre o desejo. Houve, antes, outro sonho importante, na manhã de 28 de janeiro de 1998. Nele, o próprio Clément Rosset falava para um círculo de conhecidos sobre a diferença entre seu eu oficial, dos documentos, e seu eu “real mas misterioso” – pregando portanto a existência de uma diferença entre a identidade social, falsa, e a identidade pessoal, verdadeira. O espanto de aparecer em seu próprio sonho pregando uma ideia que sempre repudiou foi motivo para, quando acordado, escrever um de seus livros que mais gosto, “Longe de mim“. São apenas 80 páginas, que defendem com clareza e firmeza a alegria de não existir identidade pessoal nenhuma, mas sim – e somente – processos de produção de identidades sempre sociais, muitos e mutantes para cada pessoa, a partir das relações com outras pessoas ou grupos de pessoas.

Nada, então, de unidade. Somos, como disse Montaigne, feitos de “peças remendadas”. O efeito de conjunto é uma ilusão, produto da vontade – verdadeira – de ilusão, desse tipo de ilusão fundamental, em sua tentativa desesperada de criar fundamentos sólidos onde não é possível existir solidez alguma. Tudo ganha a aparência de um filme de terror bem delicado: “A identidade pessoal é algo como uma pessoa fantasma que assombra minha pessoa real, frequentemente próxima mas jamais tangível nem atingível […] Meu fantasma o mais familiar sem dúvida, mas enfim meu fantasma; e um fantasma nunca é mais que um fantasma mesmo se ele o visita sempre e decide algumas vezes a tomar seu lugar”. Quem parece ter personalidade firme, previsível, tem um fantasma dominante, forte ou domesticado, sempre disponível, nos mais variados ambientes, circunstâncias e companhias. Gente talvez confiável, mas sem graça.

Pois identidade de gente normal, de carne e osso, é resultado de apropriação, remix, cut and paste de vários traços psicológicos, memes vindos de fora para colonizar seus (nossos) cérebros. Até virar algo “original”:  “Copie, e se assim copiando você permanecer você mesmo, é que você tem algo a dizer, esse é o conselho que dava Ravel para seus raros alunos. A fórmula parece poder ser tomada em sentido mais amplo e se aplica à psicologia em geral: copie, e se copiando você permanecer você mesmo, é que você conseguiu forjar uma personalidade, algo como a roupagem (pelo menos aparente) de um eu.”

Em determinadas situações é vantajoso ter essa fantasia ou fantasma de personalidade. Porém, nem sempre. Na conferência mexicana “Quem sou eu?”, que veio a fazer parte do livro “Tropiques“, Clément Rosset terminava falando da astúcia de Ulisses, que escapou do ciclope Polifemo dizendo: “eu sou ninguém”. Parece truque, enganação. Não é, apenas: “a trapaça é ao mesmo tempo um triunfo da verdade; pois Ulisses, como todos nós, não é outro, no seu foro íntimo, que ninguém.”

Toda a filosofia de Clément Rosset pode ser considerada um guia para todos nós enfrentarmos esse tipo de verdade radical. Sem empulhação, ou trapaça de outro nível. Com alegria de seguir a verdade. Preciso citar aqui o epitáfio de Martinus von Biberach, que aparece no final de “Longe de mim” (e que apareceu antes em “A força maior“):

Eu venho não sei de onde,

Eu sou não sei quem,

Eu morro não sei quando,

Eu vou não sei para onde,

Eu me espanto de ser tão alegre.

*****

Pulo, espantado e alegre, e sem saber de nada, de Clément Rosset para François Jullien, especialista francês no pensamento chinês, ou especialista no pensamento europeu a partir do pensamento chinês. Eu nunca, em meu foro íntimo, acreditei em identidade pessoal, nunca quis possuir uma, assim como nunca acreditei também em identidade cultural. Por isso fiquei alegre quando encontrei o livro, também de cerca de 80 páginas, “Não há identidade cultural” de François Jullien. Leva as verdades radicais de “Longe de mim” para outro ambiente, talvez mais ressonante diante de debates políticos de agora. Com propostas bem engenhosas para mudar o rumo da conversa…

Vamos ao que interessa. Primeiro, um resumo de todo o resto: “no lugar da diferença invocada, eu proponho abordar as diversas culturas em termos de afastamento; no lugar da identidade, em termos de recursos ou de fecundidade.” Se a diferença trabalha com distinção, classificação, criando mundos fixos, isolados, fechados uns para os outros, com fronteiras nítidas entre si, e regime de produção de sentido autossuficiente, o afastamento incentiva a exploração daquilo que ficou distante, a prospecção do território desconhecido, criando tensão entre o que está separado – é portanto uma figura mais aventureira, que não fica na defensiva. O “entre” que aparece no afastamento é ativo, convidativo. Na diferença identitária, cada um se vira para o seu lado, não se interessa pelo que ficou de fora. Tudo que está fora é uma ameaça. No afastamento, o distante está sempre visível, e atrai a atenção geral.

Difícil a posição afastada, claro. François Jullien lembra: não sabemos pensar o “entre”, aquilo que não é isso nem aquilo, o que não tem “em-si”, o que não tem essência. Os gregos pensaram o “ser” (fica mais bonito ou divertido em francês – a diferença entre “être” e “entre”), tinham horror ao indeterminado (aqui François Jullien simplifica o pensamento grego?) Talvez valha a pena o esforço. Sair do ser, ir para território desconhecido, arriscado. Estamos cercados pelas armadilhas do ser, cada vez mais assombrados por seus problemas bélicos. Como o Ulisses de Clément Rosset: seria outro triunfo da verdade: afinal, cultura vive em constante mudança e transformação: se não muda, se não tem ambiguidade, contradição, morre, desaparece sem deixar saudade.

Cultura é complexa, heterogênea. A simplificação – e a homogeneização forçada – é arma inútil para qualquer batalha, mesmo a mais bem intencionada. É preciso aceitar o desafio da complexidade. François Jullien: “como caracterizar a cultura francesa, fixando sua identidade? Sob a figura de La Fontaine ou de Rimbaud? Sob a figura de René Descartes ou de André Breton? A cultura francesa não é nem uma coisa nem outra, mas ela está, certamente, no afastamento entre as duas: na tensão das duas ou digamos no entre que se abre entre elas. É esse entre aberto entre elas – desmesurado, vertiginoso – que faz a riqueza da cultura francesa, ou diremos seu recurso.” Ou ainda, mais claro e importante: “o que faz a Europa, é que ela é ao mesmo tempo cristã e laica (e mais). É que ela se desenvolve no afastamento entre os dois: no grande afastamento da razão e da religião, da fé e do Iluminismo. No entre os dois, “entre” que não é compromisso, simples intermediário, mas coloca os dois em tensão, fortalecendo um e outro. Daí vem que a exigência de fé é afiada pelo afastamento com a exigência da razão (isso mesmo numa mesma mente: Pascal): daí vem a riqueza e o recurso que faz a Europa ou melhor que “faz Europa”. Diante do qual toda definição de cultura européia, toda abordagem identitária da Europa, não é apenas terrivelmente redutora ou preguiçosa. Mas ela também fragiliza, decepciona e desmobiliza.”

Afastamento não combina com pertencimento, divisão entre o que é meu e seu. Os recursos são criados muitas vezes em um ambiente específico (penso na maioria dos estilos musicais, quase sempre nascidos em cidades bem determinadas, ou mesmo em determinados bairros dessas cidades), mas depois se tornam disponíveis para todos (a house de Chicago nos EUA vai gerar o gqom de Durban na África do Sul e assim por diante). Sim, há necessidade de politicas culturais espertas: “defender os recursos, é prioritariamente ativá-los, mais que compreender esse “defender” apenas no modo amedrontado ou defensivo.” Os recursos param de existir, desaparecem, se não são ativados, promovidos, colocados em circulação.

Tudo tendo em vista a construção de um “comum”: “uma inteligência mútua pode emergir nesse entre tornado ativo.” Não se trata de relativismo fácil, de ignorar relações de poder (que torna todo afastamento ainda mais tenso). É sim a aventura de criação de estratégias ágeis, alertas (contra a inércia): “Nem misturando (confundindo) o diverso das culturas e das formas de inteligência, nem, o que dá no mesmo, o reduzindo a uma versão mais consensual e declarada mais “tolerante”: uma forma cultural é significativa por aquilo que ela produz de afastamento e de singular e, por conseguinte, de inventivo.”

Sendo assim, só resta uma saída: constante invenção.


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