Archive for the ‘games’ Category

ex-my-público

28/04/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27/04/2012

Casey Hudson não deve ser nome familiar para leitores de cadernos culturais. Fiz busca em acervos de jornais e encontrei pouquíssimas menções ao seu trabalho – quase todas em suplementos de informática. Portanto, se eu disser que ele é um dos mais influentes artistas contemporâneos, ninguém vai acreditar. Pode me levar a sério: o cara já conquistou espaço no imaginário contemporâneo comparável ao de George Lucas ou J. R. R. Tolkien. Exagero meu como sempre? Abaixe o dedo acusatório. Não são poucos os criadores que têm direito de bater no peito e afirmar: “eu inventei um universo.” Há a Terra Média do “Senhor dos anéis”, a República Galáctica de “Guerra nas estrelas”. Agora temos também a Aliança Terrestre de Mass Effect, trilogia de jogos eletrônicos desenvolvida por Casey Hudson. Mass Effect 3 foi o maior lançamento de 2012 para a indústria de entretenimento, o que inclui filmes e discos. O game vendeu 890 mil cópias, só na América do Norte, no primeiro dia nas lojas.

Poderia escrever esta coluna apenas sobre a BioWare, empresa canadense onde Hudson trabalha. Sua história é fascinante, desde a fundação em 1995 por três médicos recém-formados. Um dos fundadores deixou a empresa para voltar para medicina. Os outros dois, carinhosamente conhecidos no mundo dos games como Ray e Greg, se tornaram milionários com lançamentos como “Dragon age” ou “Jade Empire”. Poderia também ocupar todo este texto com considerações sobre a mitologia de Mass Effect, com sua luta épica entre seres orgânicos e artificiais (nada da harmonia blasé dos homens-robôs do Kraftwerk), ou sobre sua inovadora utilização de narrativas abertas, que levou a trilogia a ser considerada obra-prima pioneira pelos mais importantes sites e revistas de games. O assunto é muito rico, é preciso um recorte: vou tratar apenas da polêmica sobre o final de Mass Effect 3.

Muitos fãs, que reverenciavam Mass Effect e Mass Effect 2 como maravilhas da humanidade, ficaram revoltados quando zeraram Mass Effect 3. Logo uma multidão foi para as redes sociais manifestar seu ultraje: o final foi considerado um atentado contra o que havia de mais inovador na trilogia. Geralmente os games seguem uma linha narrativa mais rígida. Em Mass Effect não: cada escolha do jogador influencia decisivamente as próximas etapas do jogo. Acredito que a trilogia foi a primeira onde, para cada jogador, tudo que aconteceu no game anterior era transportado para o lançamento seguinte. O final de Mass Effect 3 decepcionou por parecer pré-determinado na fábrica, sem levar em consideração a riqueza das trajetórias anteriores. O barulho na internet foi tão grande – era a revolta do aberto contra o fechado, da abundância contra a escassez – que Casey Hudson e a BioWare tiveram que anunciar rapidinho uma sequência, carregada de inúmeras possibilidades de finais, que ficará disponível gratuitamente para download em breve.

Tal anúncio foi recebido com desconfiança. Houve gente que acusou a BioWare, que foi comprada pela gigantesca Electronic Arts, de ter planejado maquiavelicamente tudo desde o início: o final fraquinho aumentaria as vendas de conteúdos opcionais downlodáveis. O que não estava nos planos era a reação contrária tão poderosa: daí a única saída foi liberar conteúdo de graça. Casey Hudson ficou indignado com tal insinuação. Ele jura que imaginava ter criado a melhor conclusão para sua saga.

O melhor para Hudson provou não ser o melhor para todo mundo – ou pelo menos não para a parcela mais fanática, influente e falante de seu público. Lição número 1 também para toda indústria do entretenimento: não existe mais público como antigamente, passivo, que aceita sem reclamar o que os geniais criadores imaginam ser o melhor. A ironia é isso ter se tornado totalmente evidente justamente numa revolta contra Hudson, um dos artistas que mais ajudou a transformar o público em coautor de seu trabalho, com infinitas opções que modificavam a narrativa. Como dizia o velho ditado: deu a mão, o povo – que ficou mal-acostumado, e agora se instala no poder – quer o braço, o corpo inteiro, mesmo o final de tudo. Ô gente insatisfeita! Mas é bom se acostumar com a nova realidade de sempre querer mais… O protesto, para provar sua seriedade, chegou a arrecadar 80 mil dólares que foram doados para a Child’s Play, instituição que tenta melhorar a vida de crianças hospitalizadas.

A confusão está armada: a quem pertence a obra, aos criadores ou ao público (ou diferentes públicos)? E se acontece racha criador-público, quem resolve, quem vence? Diante desse panelaço contra o final de Mass Effect 3, houve uma reação engraçada logo da parte interessada em que os games passem a ter o cobiçado status de arte. Um dos sites mais visitados de cobertura do mundo dos jogos eletrônicos é o Gamespot. Laura Parker, sua editora assistente ficou revoltada contra os revoltados com o final proposto por Casey Hudson, e partiu para sua defesa. Repare só como ela ficou descontrolada: “Imagine que vivamos em um mundo onde artistas regularmente mudem suas obras atendendo a demanda do público. Imagine Monet repintando “Nenúfares” em preto e branco porque as pessoas não gostaram das cores.” A intenção era nobre: equiparar Casey Hudson a Claude Monet. Só que Monet nunca vendeu o que pintava como interativo.

Ajoelhou? Agora tem que rezar em coro com o público, o público que quer criar sua própria oração.

Gaby Protasio Fela

22/10/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 14/10/2011

Gaby Amarantos foi apelidada de Beyoncé do Pará. Isso é tudo que muita gente sabe sobre sua carreira musical. Precisa ser conhecida melhor. Sim, ela lançou versão de “Single ladies”. Versões são comuns na cena tecnobrega, onde Gaby impera. Em meu primeiro texto – de 2003 – sobre esse gênero musical eletrônico de Belém escrevi que tudo parecia um “Kraftwerk de palafita”. O que na Alemanha era fruto da tecnologia industrial mais avançada, ali na Amazônia funcionava na base da gambiarra e da tecnoantropofagia. Mas aquilo foi só o início. Basta ver o videoclipe de “Xirley”, que Gaby postou no YouTube na semana passada, para entender como tudo mudou, e para onde ainda vai mudar, da palafita em direção ao show business do futuro.

“Xirley” é um dos melhores clipes de todos os tempos. Fiquei até nostálgico do tempo em que os clipes tinham realmente importância. Há clima de superprodução, direção de arte criativa, muitos atores e figurantes. E parte de uma excelente ideia: a repetição de um mesmo plano sequência, que retrata a ascensão de uma estrela pop da periferia (ou será a ascensão da tal Classe C? ou sonho psicodélico de Mangabeira Unger?), driblando a mídia tradicional. A cada repetição, a cantora torna-se mais rica, e todo cenário evolui: parte das barraquinhas de CDs piratas e chega aos discos de platina. Mesmo a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, que protege o estúdio de gravação, ganha adereços cada vez mais feéricos.

O clipe termina com uma advertência, como aquela do FBI que acompanha produtos audiovisuais legítimos: “pirataria é pecado”. Bom arremate para uma música despudorada (composição de Zé Cafofinho, diretamente do bioma pós-mangue pernambucano) que tem refrão-ameaça para qualquer Beyoncé: “eu vou samplear, eu vou te roubar”. O melhor: o clipe está publicado sob uma licença Creative Commons que permite obras derivadas. Isso significa: pode samplear, não é crime, não é pecado. Está tudo legalizado. Que apareçam muitas Xirleys, Brasil e mundo afora.

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Falando em clipes: todo mundo sabe que sua linguagem (clipada?) também foi sampleada em muitos outros territórios audiovisuais. O uso que considero mais promissor foi aquele apelidado de “nub” por Charlie Tims, pesquisador de novas tendências da comunicação. Nub é vídeo-clipe que divulga não uma música, mas uma ideia: pode ser explicação filosófica, aula de física, manifesto político. A internet está cheia de experiências nesse sentido. Descobri recentemente e atrasado o blog LudoBardo, do Arthur Protasio, dedicado a “narrativa, games e arte”, onde há excelentes exemplos de como pequenos vídeos podem condensar uma quantidade enorme de ideias de forma divertida.

Já conhecia o trabalho do Arthur no Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV carioca, onde coordena o grupo de estudos sobre games. Mas nem imaginava que ele possuía também um avatar de apresentador de TV nerd, especializado em desbravar a área pouco explorada da análise dos jogos eletrônicos a partir de seus elementos propriamente narrativos. No LudoBardo, desde o início de 2011, Arthur já publicou 8 vídeos, cada um com cerca de 10 minutos de duração. Parece pouco, mas quando prestamos atenção na quantidade de imagens editadas (muitas vezes uma para cada palavra chave) podemos ter noção do número de horas necessárias para sua edição, sem falar em pesquisa e roteiro. O resultado já é uma das mais sérias (sem perder a diversão jamais) reflexões sobre a estética dos games, que pode ser útil para jogadores ou para quem quer investigar os caminhos mais populares da arte contemporânea.


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Descubro na agenda do Overmundo que amanhã, sábado, vai ser Fela Day pela primeira vez em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, celebrando a data de nascimento do grande músico nigeriano Fela Kuti (tem festa carioca também, com B-Negão, o pessoal da Makula e do Rumpilezz no Teatro Rival). Interessante ver o nascimento dessa nova conexão iorubá transatlântica. Interessante acompanhar a evolução do mito Fela e a cada vez maior popularidade – em todos os continentes – do estilo musical que inventou, o afro-beat, mais de uma década depois de sua morte.

Tive o privilégio de conhecer Fela pessoalmente, durante as gravações do programa African Pop, em 1988. Foi meu primeiro trabalho para TV e minha primeira viagem africana. Uma noite depois do vôo Varig Rio-Lagos (sim havia Varig e vôo sem escala Brasil-Nigéria naquela época), nossa equipe já estava no Shrine, o clube de Fela, para ver sua apresentação e negociar sua participação no nosso documentário. A platéia estava quase vazia, mas a banda teve performance sublime e quando Fela subiu no palco, já de madrugada, aquilo se transformou numa das noites mais perfeitas de minha vida (nunca escrevi coluna tão superlativa!) Nos dias seguintes fui algumas vezes em sua casa tentando diminuir o preço que nos cobrava por uma entrevista. Participei de algo como uma audiência real, onde Fela – só de sunga mínima e cercado por dois saxofones, um empresário e várias de suas mulheres – recebia quem queria falar com ele, todos esperando sua vez numa fila. Nada disso diminuiu minha admiração e a alegria que sua música continua me dando. Feliz Fela Day para todo mundo. E tomara que Cachoeira ganhe o melhor Fela Day do mundo, virando atração tão popular quanto outros carnavais baianos.

interessante

28/05/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 20-05-2011

Esta coluna fez um ano de vida no dia 14. No início achei que seria difícil completar a meta semanal de 5.400 caracteres de texto. Não sou prolixo. Gosto de dizer tudo em poucas palavras. Detesto ter a impressão que estou fazendo os outros perderem tempo. Mas não sei o que aconteceu comigo; é o mistério da coluna. Continuo julgando 5.400 caracteres quase uma eternidade New Yorker. O estranho é que vou escrevendo e quando dou por mim já cheguei ao limite, sem ter dito tudo que precisava dizer para passar todas as informações que considero interessantes para os leitores. Meu sonho de consumo como colunista é deixar de lado os textos longos sobre um único assunto, e adotar um estilo mais fragmentário, de notas e comentários curtos, com diversos temas para exploração; quem não se interessar por um assunto não precisaria reclamar, pois no próximo parágrafo viria algo totalmente diferente. Não consigo. Mesmo este texto comemorativo parece um saco de gatos, mas apenas junta uma pá de coisas que não couberam numa coluna passada, por questão de espaço.

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A coluna era sobre Julian Dibbell.  Não falei sobre outra de nossas descobertas conjuntas, que acabou sendo muito mais importante na minha vida do que da dele. No meu livro “O mundo funk carioca” (hoje fora de catálogo por vacilo meu, não da Zahar, que sempre me cobra nova edição – mas o texto que apresentei na defesa de mestrado está disponível para download sob licença Creative Commons no Overmundo), há o seguinte trecho sobre o baile funk que me levou a estudar aquilo tudo: “Fui à quadra da escola de samba Estácio de Sá levando um amigo americano que quer ver show de Martinho da Vila.” O amigo americano – uma private joke citando filme de Win Wenders e tentando “desmoralizá-lo” injustamente como gringo amante de autenticidade – era o Julian. Ele chegou até a trazer discos de Nova York para o DJ Marlboro, e alguns deles chegaram a fazer sucesso nos bailes. Joe Levy, editor junto com Julian da revista Nadine, escreveu sobre os bailes na sua coluna da Cash Box, antes que os jornalistas brasileiros se interessassem pelo fenômeno. Se não fosse o incentivo do Julian, eu provavelmente não teria também me interessado tanto pelos bailes, e talvez a história do funk carioca tivesse tomado caminho diferente… Não que eu considere central nessa história. Tudo é periferia…

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O motivo principal para eu ter escrito a coluna sobre o Julian foi sua palestra numa universidade de Copenhagen sobre games e morte. Acabei nem falando da morte, que ficou acuada num último parágrafo telegráfico. O assunto merece novo comentário. Muitos ataques contra os games dizem que os jogadores são incentivados a se transformar em assassinos de massa. Poucos estudiosos lembram que os jogadores não apenas matam – talvez o ato central nos games seja morrer. Morre-se o tempo todo jogando. E volta-se a viver, e a morrer – e assim até o “fim”. Há até um termo nativo, na tribo dos gamers, para denominar a morte definitiva, a que põe um ponto realmente final na aventura: “permanent death”, ou – para os íntimos – “permadeath”, permamorte. Julian destaca que poucos outros jogos, antes dos jogos eletrônicos, incorporaram a morte em seu mecanismo lúdico. Talvez só o jogo da forca. Mesmo nos jogos maias ou romanos: a morte era uma pena aplicada ao perdedor pós-jogo; não era parte integrante do jogo.

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Em sua palestra Julian citou o último trabalho de Jason Rohrer, criador de jogos independentes que apareceu recentemente aqui no Segundo Caderno na matéria de Isabel Butcher sobre games e arte. Sua última criação é absolutamente incrível: um jogo chamado “Chain world” que existe apenas em um único pen-drive, que pode ser jogado apenas uma vez por um único jogador. Então cada jogador morre apenas uma vez no game, e é obrigado a passar o pen-drive (modificado por suas jogadas), para o próximo “vivo”. Tudo em torno de “Chain world” é meio lenda. Dizem que na fila para jogar (alguns lugares nessa fila são leiloados no eBay) estão Jane McGonigal, autora do livro “Reality is broken” (ela não quer só arte: profetiza que um criador de games será agraciado em breve com o Prêmio Nobel da Paz), e Will Wright, pai de todos os vivos do The Sims. Não importa se isso é verdade, ou mesmo se o pen-drive existe realmente. Vale a idéia. E a possibilidade de jogar os outros games criados por Rohrer, todos desconcertantes. Ele não é artista se utilizando da mídia game. É criador de games fazendo a arte mais interessante.

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Repeti de propósito, várias vezes, a palavra interessante. Uma declaração do historiador francês e meu ídolo Paul Veyne, norteia o que tento fazer aqui na coluna: “Essa palavra ‘interessante’ designa uma coisa misteriosa que faz com que os seres humanos possam sair deles mesmos. Eles estão em vias de se interessar por aquilo que não lhes concerne diretamente, na medida em que eles tenham a virtude nietzscheana ou aristotélica da ‘força’. Se as pessoas têm pouca força, elas vivem isoladas em seus pequenos mundos, se elas têm muita força, elas se interesam por alguma coisa e saem delas mesmas.” Veyne cita La Rochefoucauld: “Um imbecil não tem força suficiente para ser bom.”

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Bom… Já cheguei na beirada dos 5.400 caracteres. Havia ainda tantas coisas interessantes – e, acredito, incentivadoras de saídas de nós mesmos – para escrever…

Julian Dibbell

23/04/2011

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15/04/2011

Julian Dibbell, segundo Caetano Veloso, é jornalista “que sabe muito sobre música popular brasileira – e tem uma visão muitas vezes original e sempre inteligente sobre o tema”. O elogio, em “Verdade tropical”, se referia especificamente ao artigo de 1988 e do Village Voice, onde Julian caracterizava “João Gilberto como o Elvis do Brasil”. A afirmação, feita “quase em tom de brincadeira”, se revelava como “imediatamente rica de estímulos para uma mente brasileira.” Minha amizade de quase três décadas com Julian sempre teve este efeito sobre minha mente: incentivo poderoso para enxergar o Brasil e o mundo de forma renovada. Minhas descobertas são sempre mais alegres quando compartilhadas com (ou estimuladas pelo) Julian. Para mim, nada de melhor se pode viver com um amigo.

Aquele Julian que comparou João Gilberto e Elvis parece personagem de outra encarnação, na qual poderia ter sido importante brasilianista ou crítico musical. Eu o conheci quando era um daqueles estudantes estrangeiros que a PUC recebe no Rio. Impressionava seu português (costumo dizer, sem brincadeira, que meu português é pior que o dele), aprendido por acaso com professor mórmon que deu aula de graça na sua “high school”. Causava também espanto seu conhecimento sobre a música brasileira dos anos 60, muito antes do tropicalismo virar moda mundial com o empurrão de David Byrne (que, levado por Arto Lindsay, apareceu uma vez na minha casa, quando Julian era meu hóspede. Byrne, pouco depois de ser capa da Time, estava lançando True Stories no Rio. Arto me apresentou Byrne e Caetano. Julian e Beth Nolasco me apresentaram Arto – eu era fã de sua banda DNA mas não sabia de suas conexões brasileiras, descobertas quando Julian o entrevistou para seu – e de Joe Levy, que depois foi editor da Rolling Stone – fanzine Nadine, publicado em Yale. Como já repetiu Caetano: este mundo é um pandeiro.)

Descobrimos, eu e Julian, o cyberpunk ao mesmo tempo. Ele leu meu exemplar de “Neuromancer”. Julian voltou para os EUA no final dos anos 80 e, por cartas, começou a me falar sobre as maravilhas da internet. Encontrei o Alternex, do Ibase, que era a única porta de acesso – fora de governo e poucas universidades – à internet no Brasil. Deixamos o papel de lado para trocar mensagens por email, que naquela época exigia a memorização de dezenas de comandos Unix. Também nos encontrávamos virtualmente no LambdaMoo, um bisavô do Second Life que funcionava só com texto, pois a web ainda não fora inventada. Apesar do novo tipo de proximidade, senti que os computadores podiam nos afastar. Julian trocou de avatar: parou de escrever sobre música e o Brasil, e virou pensador/desbravador da vida on-line.

Em 1993, ainda no Village Voice, apareceu “Rape in cyberspace”, artigo hoje clássico para os estudos sobre a internet, falando sobre a confusão virtual/real dentro do LambdaMoo. Esse texto se tornou o primeiro capítulo do seu livro “My tiny life” e mote para muita coisa que publicou nos anos pioneiros da revista Wired. Julian foi mergulhando cada vez mais no mundo ciberespacial, e chegou a se tornar – na vida real – comerciante de itens de games on-line, com os quais ganhou quase tanto dinheiro quanto como jornalista, experiência narrada no livro “Play money”, cuja sequência foi reportagem na China – para o New York Times – sobre as “gold farms”, lugares onde garotos trabalham em regime de semi-escravidão produzindo dinheiro de jogos virtuais, depois convertidos em dinheiro real.

O feitiço brasileiro não iria deixar Julian escondido em algum lugar obscuro da rede, fora do nosso alcance. Há até uma lenda de que ele teria sido um dos maiores responsáveis pela disseminação do Orkut no Brasil. Não foi bem assim: entrei no Orkut a convite do pessoal da Insite paulistana (que tinha algum contato interno no Google – acho que foi ali que a onda brasileira do Orkut começou). Não sei se mandei convite para o Julian ou se o encontrei depois por lá. Sua contribuição para o ciberespaço brasileiro foi menos apoteótica, mas talvez mais decisiva. Gil iria fazer sua primeira viagem como ministro para a Midem, feira da indústria fonográfica. Descobri que John Perry Barlow, autor da “Declaração de independência do ciberespaço”, faria palestra no evento. Pedi ajuda a Julian, que colocou Gil em contato com Barlow.

Na época, Julian dava aula com Lawrence Lessig, do Creative Commons, em Stanford. Pouco tempo depois os dois mais Barlow e Gil participaram de um seminário sobre direito e internet organizado no Rio por Ronaldo Lemos e a FGV. Meses adiante, eu estava com Julian em São Paulo, entrevistando José Serra sobre patentes e genéricos e em seguida, ciceroneados por Sérgio Amadeu e João Cassino, visitando telecentros, para uma matéria da Wired que foi lançada com show pró-Creative Commons, de Gil e Byrne, em Nova York.

Lembrei de tudo isso ao ver a palestra (vimeo.com/21964000) que Julian deu em Copenhagen na semana passada, sobre games e morte. Reflexão mais uma vez original e estimulante, complexificando a relação entre computadores (a metafísica/máquina de Alan Turing) e violência. Devemos aproveitar suas últimas incursões nessa área. Ainda este ano, Julian vai abandonar o tecnojornalismo por uma pós-graduação em Direito. Nova mutação em sua carreira. Tomara que o Brasil o encontre novamente, logo mais, à frente.

abundância

06/04/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 25/03/2011

O comentário mais inspirador que já encontrei sobre a transformação que a internet provocou na vida cultural foi publicado por José Miguel Wisnik em sua coluna de 05/03/2011, aqui no Segundo Caderno. Antigamente, na era pré-digital, “as coisas eram decantadas pelo tempo. Porque o seu valor e seu preço simbólico eram ditados pela capacidade de sobreviver à morte. A cultura era em grande parte um culto aos mortos.” Hoje, aumentou “assustadoramente o número dos vivos.” Wisnik se pergunta: “Quem dá conta da cascata infinita de autores de tudo? Quem decanta essa massa informe e simultânea, epidérmica, cheia de potencialidades e de engano?” Indagações que contêm os principais desafios da cultura contemporânea. O que fazer com tanta vida, transbordante, que não cabe mais nem nos modelos de negócio nem nas instituições artísticas que até outro dia tentavam organizar nossa relação com a cultura?

Sintetizando: a cultura dos mortos se fundamentava na escassez; a cultura dos vivos produz cada vez maior abundância. Pense nos exemplos de uma gravadora, de uma produtora de filmes, de uma empresa de rádio e TV, de uma revista de arte. Eram poucos os artistas contratados, eram limitados os recursos que faziam com que as obras fossem produzidas, ganhassem visibilidade e fossem distribuídas no restrito circuito de comércio e divulgação (lojas de discos, salas de cinema, os 13 canais de TV, o “dial” do rádio, o número de páginas da revista). E mesmo assim nem tudo o que era lançado fazia sucesso: um raro hit pagava o prejuízo de muitos fracassos. Mas a conta tinha que fechar; então sempre foi reduzido o número lançamentos e contratações, mesmo em épocas de grandes lucros.

As restrições orçamentárias e mesmo físicas (o espectro por onde podem ser transmitidas ondas radiofônicas tem limites preci(o)sos) se combinava com a crença, provavelmente “verdadeira”, de que o talento é um igualmente um bem escasso, e que só talentosos – ou sortudos enganadores – podem ser artistas de sucesso (seja lá como é feita a medição do grau de sucesso). Estou relendo “O mal-estar na civilização”, na nova tradução (a primeira diretamente do alemão) de Paulo César de Sousa. Ali Freud também denuncia a “fraqueza” do método da sublimação dos instintos através da arte, pois não é de “aplicação geral” e “pressupõe talentos e disposições especiais”, aos quais poucos têm “acesso”. Então tudo conspirava para que a produção de arte fosse vista necessariamente como uma atividade de poucos para muitos. E os poucos eram filtrados por uma série de intermediários para chegar aos muitos.

A internet bagunçou com o coreto pequenininho, onde só haveria espaço para pouquinhas pessoas. Hoje qualquer menino com uma webcam pode transmitir sua nova dança diretamente da laje da favela para mundo inteiro (e alguma dessas danças viram logo “a melhor dança de todos os tempos” – já viu a moda planetária do “choque” colombiano em bit.ly/9EVGQe?), através de novos tipos de intermediários – por exemplo, o YouTube – que não mais selecionam o que vão lançar, e sim aceitam tudo e mais alguma coisa. É Arte com A maiúsculo? Talvez não seja, talvez seja algo diferente, um jogo de diversão coletiva, sem pretensão à eternidade. Um novo mundo pior ou melhor? Quem pode saber com certeza? Se como diz Freud, em seu Mal-estar, a finalidade da vida é “a busca da felicidade”, penso que hoje há mais gente feliz, “brincando” de ser artista, como faziam seus antepassados em outras brincadeiras que ficaram conhecidas como folclore e onde, geralmente, não havia diferença entre quem estava no palco e na platéia.

Essa mudança radical e rapidíssima, da escassez para a abundância, exige outras posturas diante da criação, sua distribuição e seu consumo. Muita gente já apontou, mas isso fica cada vez mais claro, que estamos deixando de lado o império da propriedade para entrarmos na era do serviço. Eu não quero ser o feliz proprietário de todos os vídeos de gente dançando choque colombiano, até porque isso seria impossível – agora mesmo dezenas de vídeos com novos movimentos de choque estão sendo publicados. Quero poder ver esses vídeos na hora que quiser, e melhor, quero poder fazer meus remixes desses vídeos e publicá-los na rede, retroalimentando a brincadeira. Então quem quiser que copie meu vídeo à vontade, e espalhe por aí. Provavelmente não vou nem guardar cópia desse vídeo, que se transformará apenas num item perdido no meu mar de bookmarks. Claro que seria bom ganhar dinheiro com o meu remix, pagando também para os produtores de todas as imagens que remixei. Isso será cada vez mais fácil, pois saberemos exatamente quantas pessoas assistiram o vídeo completo, ou quantas outras fizeram remixes do meu remix.

Evoluindo: o melhor é deixar a obra aberta, facilitando sua circulação de diversas maneiras. Quanto mais gente republicá-la ou remixá-la melhor. A abertura está se tornando a norma, mesmo para o bom senso comercial. O segredo e a proteção atrapalham. Vide o caso do Kinect, da Microsoft. Logo após seu lançamento, hackers abriram o aparelho e inventaram para ele novos usos. A Microsoft desistiu de proibir e começa timidamente a facilitar a vida dos hackers lançando um kit de desenvolvimento. Os hackers agora podem ganhar dinheiro ajudando a Microsoft a lucrar mais com o Kinect. O que é bom para todo mundo. Os vivos agradecem.


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