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colaboração

28/03/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27/03/2015

Iris van Herpen pode ser apresentada como inventora holandesa. A revista “Time” escolheu suas roupas produzidas em impressoras 3D como uma das “melhores invenções de 2011”. Foi procurando exemplos de utilização bem criativa dessa nova técnica de impressão que descobri seu nome. Um hiperlink depois e já estava no seu site, que me apresentou a uma multidão de outros artistas/pensadores que até então desconhecia. Sempre defendi por aqui que a moda é hoje um dos territórios mais inovadores da cultura contemporânea. Mesmo assim não estava preparado para ser levado tão longe pelo trabalho de uma única estilista.

Claro, Rei Kawakubo ou Vivienne Westwood são igualmente mestras em colaborações transdisciplinares. Mas parecem mais focadas, perseguindo algumas trilhas bem definidas, apesar de todas as rupturas. O trabalho de Iris van Herpen busca a diversidade de maneira ainda mais extrema, incluindo os temas que inspiraram cada uma de suas coleções desde a estreia, em 2007.

Citarei alguns exemplos, os que me deixaram mais espantado, curioso e alegre. Vários assuntos queridos desta coluna foram materializados nas passarelas. Começando pelo desfile mais recente, o do Outono/Inverno 2015-16, que explorou a ideia de terraformação, o projeto de modificar outros planetas para que possam ter biosferas terráqueas (para mais informações vide minha coluna sobre a literatura de Kim Stanley Robinson). O texto de apresentação usa outras palavras que não esperamos encontrar normalmente em press-releases de estilistas: estruturas biomiméticas, infinitos “hackeáveis”, geologia mineral, couro cortado a laser. Minha praia total.

Voltando no tempo a mistura de conceitos das mais variadas procedências vai ficando explosiva. No ano passado as duas coleções tiveram como títulos “Movimentos magnéticos” e “Biopirataria”. A inspiração para a primeira veio de uma visita que Iris van Herpen fez ao CERN, o gigantesco acelerador de Genebra, que produz campo magnético 20 mil vezes maior que o da Terra. “Biopirataria” apresentou modelos flutuando em posições embrionárias dentro de úteros artificiais, tudo para discutir a comercialização de sequenciamento genético e a atual confusão público/privado no mais íntimo de nossos corpos.

Em 2013 suas roupas viraram orquestra de instrumentos musicais eletrônicos. Antes seus desfiles já tinham sampleado imagens de microscópios eletrônicos e fumaças de refinarias. Obviamente: não há pessoa no mundo que domine todas essas áreas de conhecimento. Por isso a criação de Iris van Herpen está baseada em intensa colaboração, com cientistas, arquitetos, escultores, coreógrafos, músicos, cineastas. A lista de créditos de cada coleção impressiona e por isso seu site hoje funciona para mim como enciclopédia de novidades, onde sempre sou apresentado a outras pessoas que me interessam demais. Não há espaço para escrever sobre todas elas. Recomendo que cada leitor faça suas próprias descobertas. Seleciono aqui apenas alguns nomes que quero passar adiante.

O arquiteto canadense Philip Beesley já colaborou em várias coleções. Seu “método” entrelaça desenho industrial, prototipagem digital, engenharia mecatrônica (seja lá o que isso for), vida artificial e arquitetura interativa (as construções reagem a atividades naturais e dos seres vivos em seu interior e ao seu redor). Os resultados, por incrível que pareça, são ambientes/instalações de beleza alienígena estonteante e/ou assustadora, tipo vegetação do planeta Pandora ou enxames de monstros que nem Sigourney Weaver conseguiria combater. Alguns deles levam bem a sério o conceito de hilozoísmo e panpsiquismo de maneira que só tinha encontrado antes na ficção científica de Rudy Rucker, muso desta coluna.

Aleksandra Gaca é uma designer têxtil polonesa. Sua especialidade tem sido a criação de tecidos a partir de novos materiais, ou novas maneiras de produzir materiais. Ela também trabalha com “architextiles” que podem ser usados em construções, substituindo paredes e divisórias com vantagens sustentáveis (circulação de luz, purificação do ar etc.). A austríaca (hoje trabalhando no Suprastudio da UCLA) Julia Koerner usa impressoras 3D e tecnologia robótica para misturar arquitetura, moda e design. O designer holandês Jólan van der Wiel inventa processos em que os objetos adquirem suas formas fora da influência humana.

Em cada um dos sites desses criadores encontro outros nomes formando redes de colaboração cada vez mais complexas. Roupas e objetos passam a circular por outros cenários, como os shows e clipes de Bjork, que recentemente sempre apresentam invenções de Iris van Herpen e sua turma. É assim que o mundo hoje segue adiante.

 

ostentação 12014.0

01/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 31/10/2014

Tempos atrás, a Maison Martin Margiela era grife estabelecida fora do radar do consumo de luxo de massa (sim, luxo e massa não são mais termos contraditórios, como comprovam as bagagens de turistas Classe C vindos de Miami). Toda sua estratégia de marketing incentiva exclusividade radical, ostentação camuflada de invisibilidade, atitude de artista conceitual (obra cara contra o mercado). Por isso é surpresa acompanhar hoje sua transformação em objeto de desejo do hip hop. “Maison Margiela” é nome de música do Future, nova sensação do rap. Ou citação na letra de “Se joga” (“o swing dela” rima com “eu tô de Margiela”), pós-funk-carioca de Naldo Benny.

Talvez essa tendência – podemos chamá-la de Ostentação 2.0? – tenha sido fundada por Kanye West. Não por acaso o figurino de sua turnê mais recente, que também tem a colaboração da artista conceitual Vanessa Beecroft, pode ser pensado como desfile das peças mais “icônicas” da história da Margiela. Ítens do vestuário usado no palco foram colocadas à venda com preços amargos, mas sempre esgotaram suas tiragens limitadas. É uma confusão high/low, abundância/escassez bem característica de nossos tempos, que tem nos astros do hip hop seus principais comentaristas/arquitetos-de-sensibilidade.

Mesmo quando era cultura de gueto, e periferia ainda não tinha a centralidade cultural atual, o hip hop já construía as pontes artísticas mais improváveis entre mundos artísticos nascidos para viver sem contato uns com os outros. Sonoramente, havia a aliança entre o pop e as ferramentas menos populares da música erudita contemporânea (as colagens concretas, por exemplo). Visualmente, o grafite logo colocou as ruas nas galerias.

Indumentariamente, os rappers também anunciaram a reinvenção do mercado das grifes de luxo que aconteceria, com sucesso avassalador, nas décadas seguintes. O início dessa história está bem contado no artigo “Harlem Chic”, que o crítico Kelefa Sanneh publicou em março de 2013 na New Yorker (que maravilha que essa revista tenha seu arquivo aberto na internet – aproveite enquanto a política é mantida). Sim, havia a celebração das marcas esportivas (a dupla Run-DMC lançou hit chamada “My Adidas”), mas já nos anos 1980 grifes como Gucci ou Louis Vuitton, quando eram consumidas apenas por milionários, fizeram sua estreia em capas de LPs. Tudo por culpa de Dapper Dan, criador das melhores roupas dos primeiros rappers (e de vários traficantes da época), fazendo com as agulhas de costurar o que os DJs inventavam com as agulhas dos toca-discos: remixes juntando (contra a legislação de copyright) elementos de procedências/propriedades diferentes.

Kanye West e sua geração (terceira ou quarta na história do hip hop?) levou essa nova tradição para o próximo nível. Quando grava seus primeiros discos, o rap já não é mais periferia, mas sim o centro econômico da indústria fonográfica, com sua rede de artistas ricos e poderosos, constituindo uma nova elite do entretenimento (hoje as revistas de celebridade acompanham a vida de Jay Z/Beyoncé/Blue Ivy com tratamento de família nobre). Usar Vuitton ou Gucci não impressionava, era a regra. Kanye começou a explorar universos mais exclusivos, que não são comprados apenas com muito dinheiro. Passou a andar cercado de arquitetos, designers, artistas, que possuem outros códigos de ostentação. Daí Margiela.

Todos sabem: Kanye é megalomaníaco, egocêntrico, se acha o tal. E é o tal. Nunca verei outro show com tanto swag como aquele perfeito que apresentou no Tim Festival (para horror da crítica local) ocupando sozinho um palco imenso em viagem intergaláctica. Logo depois (ou logo antes?) da vinda para o Brasil, ele fez apresentação para o canal VH1 que depois foi lançado em disco (pena que com cortes em muitos discursos confessionais que fazia durante as músicas). Adoro o medley “Heartless/Pinocchio Story”, com sua entonação especial para versos que dizem que pode comprar Gucci/Vuitton/YSL mas nada disso poderá tirar “sua mente desta prisão”. Mas o trecho mais comovente, terapia pública sobre a tragédia desse grau de celebridade, está nos momentos finais de “Flashing lights”: “cometi erros, mas eles me fazem crescer, como se eu tivesse que lutar para ser eu mesmo, mas tenho que liderar a luta, pois isso ajuda todos a ser quem querem ser.”

Ostentação de erros que não podem ser cometidos por mais ninguém fora do círculo íntimo dos superpoderosos. Estou lendo “Antes da história”, de Alain Testart (mais uma vez obrigado pela dica, Marco Veloso). Os primeiros ricos, no neolítico, davam festas para construir megálitos. Pura ostentação. Hip hop como megálito do agora. Vitória do Bronx.

diretor artístico

18/01/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 17/01/2014

O programa Navegador – que apresento na Globo News com Alê Youssef, José Marcelo Zacchi e Ronaldo Lemos – é a celebração de atividade que parece condenada à extinção com o predomínio de redes sociais e apps fechadas: gostamos de passear livremente pela velha internet, numa errância de um assunto/site para outro, sem saber onde vamos parar. Incentivamos que outras pessoas façam o mesmo. Por isso deixamos disponíveis todos os links comentados, para serem pontos de partidas de outras viagens. A quantidade frenética de tópicos diferentes é intencional. Não queremos esgotar cada tema, mas sim dar início a muitas e diversas conversas paralelas, que podem acontecer em qualquer lugar, inclusive nesta coluna. Por exemplo: quero retomar aqui o que falei sobre Nicola Formichetti, mais conhecido como o stylist da Lady Gaga, na edição do Navegador que pode ser vista neste link.

O pano de fundo para minha decisão de trazer seu nome à baila (prefiro usar “à baila” do que “à balha”, pois lembra mais uma dança do pensamento) era o debate, que fez algum sucesso em 2013, sobre o uso da Lei Rouanet para a captação de recursos para desfiles de moda. Nada contra a vontade geral de tornar mais claros os limites para o uso de dinheiro incentivado. Porém, muitos comentários raivosos entraram em terreno perigoso ao colocar a dúvida: moda é cultura? Ou ainda: moda é cultura relevante?

Achava que isso era polêmica de passado remoto. Não consigo pensar o melhor ou mais radical da cultura do Século XX sem incluir na lista de artistas megaimportantes nomes como Vivienne Westwood, Yohji Yamamoto ou Rei Kawakubo (da Comme des Garçons). Estou sendo até conservador, indo no correto, citando os trabalhos aceitos em meios intelectuais ou da Grande Arte. Yamamoto já foi centro de documentário de Win Wenders, honra só obtida por Pina Bausch e Nicholas Ray. Kawakubo e Westwood têm verbetes na The Heilbrunn Timeline of Art History do museu Metropolitan de Nova York. Outras pessoas são mais liberais. Veja o que o pintor Julian Schnabel escreveu sobre Azzedine Alaïa na última Art Issue da revista Interview: “é um escultor que desenha com tesouras.”

Nichola Formichetti é um passo além. Ele não é nem um estilista, mas um “stylist”. Não sei se há termo em português para diferenciar os dois trabalhos. O estilista cria as roupas, inventa os conceitos para as coleções. O “stylist” até bem pouco tempo parecia ocupar uma posição secundária, combinando peças e acessórios para sessões de fotografias ou desfiles. Não mais, talvez sinal dos tempos em que curadores (os que juntam as criações dos outros) são tão criativos quanto os criadores “de primeira instância” (podemos discutir, em outro momento, se há mesmo essa primeira instância já que a arte contemporânea tem sido, há tempos, um jogo – severo ou lúdico, tanto faz – de citações).

Filho de pai piloto de avião italiano e mãe aeromoça japonesa, Formichetti foi criado na ponte aérea Roma-Tóquio. Depois estudou arquitetura em Londres, mas abriu lojas de roupas “alternativas” e logo começou a trabalhar como stylist nos editoriais de moda da revista Dazed and Confused, onde teve carreira meteórica chegando a ser diretor criativo. Seu encontro com Lady Gaga, que tem faro aguçado para se cercar de pessoas talentosas (assim como Grace Jones com Chris Blackwell e Jean-Paul Goude nos anos 1980), deu visibilidade para suas ideias fora do mundo das revistas de moda britânicas. Tudo com estética do choque em mundo onde nada mais choca. Vide aquele vestido de carne usado por Gaga em alguma dessas milhares de cerimônias de entrega de prêmios de música.

Hoje Formichetti é uma das pessoas mais poderosas também no mundo das artes. Ele ocupa o cargo de diretor criativo (como observou José Marcelo Zacchi: que denominação espetacular essa de “diretor criativo”) da Diesel, marca italiana de jeans. Lá criou a campanha Reboot, que tem sua base na rede social Tumblr e trata a internet como a nova rua, de onde são pinçadas as novas tendências. Antes os adolescentes se mostravam nas calçadas da King’s Road. Agora tiram fotos no espelho do quarto. Formichetti transformou a campanha da Diesel em exposição virtual, apresentando novos talentos.

O virtual vai para o real e vice-versa. Uma das descobertas da Reboot, o fotógrafo Michael Mayren (que ficou famoso com retratos de adolescentes ensanguentados em lutas de box), fez exposição na vitrine da Diesel de Convent Garden, tudo bancado também pela Serpentine Gallery do curador não menos poderoso Hans-Ulrich Obrist. Moda? Arte? Promiscuidade? Relativismo? Coloquem a culpa na modernidade, essa menina sem noção e sem aura.

afropolita

23/07/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15-07-2011

Taiye Selasi, ou Taiye Tuakli-Wosornu, parece personagem criada por alguma campanha de marketing viral-fake. Mas vale o lugar-comum: se não existisse, precisaria ser inventada, urgentemente. A primeira página do seu site contém apenas uma foto do que parece ser uma porta de metal, metade de seu rosto de mulher linda, e uma microbiografia sem pontuação ou letras maiúsculas: “nascida em londres criada em boston vive nova york nova delhi roma escreve estórias ensaios roteiros + livros faz imagens parada + em movimento”. As palavras “estórias”, “ensaios” e “livros” são as únicas clicáveis – “livros”, por exemplo, nos conduz apenas a uma matéria – suspeita? – do jornal New York Observer falando que, com apoio de nada menos que Salman Rushdie e Toni Morrison, Taiye assinou contrato com a Penguin para publicação de “Ghana must go”, seu romance de estréia, que ainda não terminou de escrever. Já seria um dos lançamentos literários mais aguardados de 2012. Quem sabe ela não vem para a próxima FLIP e confirmaremos se existe em carne e osso?

Mesmo que não exista: sua influência não poderia ser mais real. Sim, escreveu – acho que apenas – um conto, intitulado “A vida sexual das garotas africanas” e selecionado para o mais recente número de verão da Granta. Mas foi um artigo, intitulado “Bye-bye Barbar”, que apareceu em 2005 na revista inglesa Lip, especializada na publicação de textos de estudantes (na época Taiye fazia mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Oxford, depois de ter cursado Estudos Americanos em Yale), que virou seu passaporte para a celebridade pop-intelectual. O primeiro parágrafo descrevia a pista de dança do Medicine Bar, em Londres, animado ao som de Fela Kuti. O segundo lançava uma pergunta para os dançarinos: “de onde você é?” Todos, como Taiye, titubeavam ao responder: “este mora em Londres mas cresceu em Toronto e nasceu em Accra; aquele trabalha em Lagos mas cresceu em Houston, Texas”. Conclusão inconclusiva: “eles não pertencem a uma geografia única, mas se sentem em casa em muitas.” O artigo dava nome a essa identidade híbrida: “Eles (leia: nós) são afropolitas.”

Cada vez mais pessoas se reconhecem na palavra inventada (ou pelo menos popularizada) por Taiye, com sua mistura de “africano” e “cosmopolita”. E o “conceito” se infiltra em lugares surpreendentes. O museu Victoria & Albert, de Londres, realiza na útima sexta-feira de cada mês um evento chamado “Friday Late”, quando suas galerias ficam abertas para visitação até 10 horas da noite. O tema da “Friday Late” de junho era “Afropolitan”. Os africanos londrinos mais chiques (certamente alguns dos africanos mais chiques do mundo) marcaram presença. Foi uma das mais interessantes festas da minha vida.

A entrada do museu foi transformada num boteco árabe pelo fotógrafo e designer marroquino Hassan Hajjaj. Esqueça a tradição: engradados de coca-cola formavam a base dos bancos e a música ambiente era uma mistura de kuduro com coupé-décalé. Minha primeira parada da noite (depois de conferir a exposição do Yohji Yamamoto, a galeria medieval e aquela roupa de plumas usada pelo Brian Eno na época do Roxy Music) foi um debate divertidíssimo (e olha que acho a maioria dos debates chatérrimos) sobre o significado do “afropolitismo”.

O moderador – o poeta/escritor/jornalista Tolu Ogunlesi – abriu a conversa fazendo para os debatedores a mesma pergunta dos primeiros parágrafos do artigo de Taiye Selasi: “de onde você é?” As respostas foram outras microbiografias transculturais/geográficas. Minna Salami, coordenadora do MsAfropolitan (autodefinido como “blog cultural-analítico de estilo de vida”) nasceu na Finlândia. Lulu Kitololo, artista/designer (a dificuldade de encontrar um rótulo profissional também é característica desse povo), nasceu no Quênia, mas seu pai era da Tanzânia e aí começou sua vida errante. Hannah Pool (segundo o programa do evento: “jornalista, personalidade da TV e do rádio”) nasceu na Eritréia, foi adotada por pais noruegueses que moraram em Cartum e estudou no interior da Inglaterra em época que não era “cool” ser africano – ela se definia apenas como “black”. O produtor musical Yemi Alade-Lawal, fundador da AfroPop Live (plataforma de lançamento para novos artistas africanos), o único londrino no palco (mas que tem família em Ifé, local sagrado para o candomblé, e iniciou sua carreira em Nova York e Los Angeles), declarou que a moda do “afropolitismo” é muito bem-vinda: “tudo que me faz “cool”, eu gosto.” Algumas pessoas da platéia cobraram militância política. Um médico que trabalha jovens de famílias pobres de imigrantes denunciou as tendências elitistas dos componentes da mesa: “vocês tiveram sorte, estudaram nas melhores universidades…” Tolu Ogunlesi, o moderador, escapou com filosofia de Andy Warhol: “não estamos propondo um movimento político, o afropolitismo é uma lente – mais uma no supermercado das lentes – para olhar para a identidade.”

Saindo do debate, ninguém mais conseguia entrar na galeria em que ficam os enormes desenhos de Rafael (os moldes da tapeçaria da Capela Sistina), totalmente lotada e festiva, onde seria realizado o desfile de moda com curadoria de Minna Salami. Fui comer galinha africana apimentada nos jardins, ao som kwaito-punk ao vivo de Spoek Mathambo, sob frio e chuva do verão londrino.

tudo punk-dominado

06/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24-09-2010

Duas semanas atrás, em  Londres. Tudo punk-dominado: impossível, com olhar atento/”antenado”, circular pelos arredores chiques de New/Old Bond Street sem encontrar algum vestígio da influência cada vez mais consolidada que Vivienne Westwood exerce em certa cultura contemporânea. Os folders de suas novas coleções ordenavam em letras garrafais: “Compre menos”. Havia uma exposição de seus sapatos na loja de departamentos Selfridges. As vitrines da Lee traziam o lançamento de jeans com sua assinatura. E dentro do Palácio de St. James, residência real, na Garden Party organizada pelo príncipe Charles, Vivienne Westwood era a curadora de moda. Apenas Vivienne Westwood não. O material de divulgação do evento a tratava por Dame Vivienne Westwood, título ainda de alguma nobreza que recebeu em 2006.

Nada mal para alguém que inventou, junto com seu marido Malcolm McLaren e o designer situacionista Jamie Reid, o estilo visual e indumentário dos punks. Ou que, ainda no início dos anos 80, dizia fazer “moda de confrontação” e declarava: “Tenho uma visão política da moda: é uma maneira de contestar o sistema.” Interessante encontrá-la agora no núcleo duro do “sistema”, entronizada nas lojas mais comerciais e aliada de um príncipe que não esconde uma visão artística tradicionalista, vide seus ataques a toda tentativa de construção de edifícios de arquitetura (pós)moderna em Londres. Mudou o sistema ou mudou Vivienne Westwood?

A Garden Party do príncipe Charles não era uma festa qualquer, sem causa. Havia uma isca: os jardins cheios de História dos palácios Clarence House, St. James, Marlborough House e Lancaster House, geralmente cercados por forte aparato de segurança, estavam abertos para a população plebéia. Claro, era preciso pagar as libras da entrada, mas, repetindo a propaganda, por uma boa causa: o dinheiro arrecadado seria aplicado em alguma iniciativa ecologicamente correta de Sua Alteza. Muitos debates, shows, exposições de projetos que nos incentivavam a poupar energia, deixar de viajar, não desperdiçar nada e até plantar a própria comida seguindo o exemplo da horta orgânica cultivada ali mesmo pelo Príncipe de Gales.

Confesso que fico sempre meio apavorado nesses ambientes verdes, achando que sou culpado pelo fim do mundo. Também tenho implicância com a idéia de que a Natureza é boazinha e que tudo que é artificial faz mal. Mesmo assim consegui me divertir nos jardins reais, descobrindo gente bem maluquinha, não apenas velhinhas fazendo bolsas com o tecido das cortinas velhas dos palácios. Como o  pessoal de moda reunido pela curadoria da Dame Vivienne Westwood. Tenho certeza que suas criações vão ser cada vez mais presentes em qualquer passarela: o pessoal do coletivo Noki House of Sustainability, a atriz Emma Watson (Hermione nos filmes de Harry Potter) agora também eco-designer, ou a estilista Orsola de Castro, líder do movimento do “upcycling”, o termo fashionista para reciclagem.  Mas em nenhum momento deixava de causar estranheza a presença de idéias até bem extremistas em local tão “estabelecido”.

O ar estranho dos tempos, onde está tudo – conservadores e vanguardas – junto e misturado, ficou mais denso quando entrei, bem do lado dos palácios, no prédio do Institute of Contemporary Arts (ICA), ocupado pelos russos do Chto Delat?, coletivo ou “plataforma” formado por artistas, filósofos, críticos e escritores que tentam fundir teoria política, arte e ativismo. (E quando lembramos do poder que magnatas pós-Perestroika, como Roman Abramovich, exercem hoje em Londres – do futebol do Chelsea ao circuito de arte, isso para falar só na “superestrutura”… – tudo fica ainda mais pesado e animado.) Chto Delat? pode ser traduzido como Que Fazer?, título do livro de Lênin, que trata das “questões palpitantes  do nosso movimento”. O pessoal do Chto Delat? faz muitas coisas bem palpitantes: vídeos, instalações, performances, um jornal, seminários etc. Para Londres prepararam várias ações diferentes que poderão ser acompanhadas online até 24 de outubro.

Assisti o final de um seminário que durou 48 horas. Os participantes tinham mesmo que ficar 48 horas juntos, inclusive comendo e dormindo juntos nas galerias do ICA. Terminou com uma performance brechtiana. O tema era “Que lutas temos em comum?”, tudo comandado por Olga Egorova, artista que cria umas roupas filosóficas (a que mais gostei era um vestido com a seguinte declaração bordada, estilo Leonilson, no peito: “acordo às 6 para ler Hegel”). No palco, divididos, dois grupos: os artistas e os ativistas. Atrás deles um coro cantando hinos comunistas. Os artistas recebem convite para exposição patrocinada por uma grande corporação, os ativistas fazem campanha contra a aceitação do convite. Na platéia, a Liga dos Trabalhadores Culturais Revolucionários protesta: tudo aqui seria uma farsa ingênua, promovida com dinheiro público inglês.

No final, palmas, risos – obviamente nenhuma conclusão. Sigo dali para a festa de 16 anos da Rinse FM, rádio que era pirata e comemorava sua oficialização recente no dial londrino. A programação era também extremista: dubstep, UK funky, grime. Muito subgrave esquisito. Na fila da entrada, mais de três mil garotos normais, nada esquisitos. De volta à contradição dominante: a contestação no poder, o choque e o banal de mãos dadas. Mundo complexo este “nosso”.


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