Archive for the ‘modismo’ Category

diretor artístico

18/01/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 17/01/2014

O programa Navegador – que apresento na Globo News com Alê Youssef, José Marcelo Zacchi e Ronaldo Lemos – é a celebração de atividade que parece condenada à extinção com o predomínio de redes sociais e apps fechadas: gostamos de passear livremente pela velha internet, numa errância de um assunto/site para outro, sem saber onde vamos parar. Incentivamos que outras pessoas façam o mesmo. Por isso deixamos disponíveis todos os links comentados, para serem pontos de partidas de outras viagens. A quantidade frenética de tópicos diferentes é intencional. Não queremos esgotar cada tema, mas sim dar início a muitas e diversas conversas paralelas, que podem acontecer em qualquer lugar, inclusive nesta coluna. Por exemplo: quero retomar aqui o que falei sobre Nicola Formichetti, mais conhecido como o stylist da Lady Gaga, na edição do Navegador que pode ser vista neste link.

O pano de fundo para minha decisão de trazer seu nome à baila (prefiro usar “à baila” do que “à balha”, pois lembra mais uma dança do pensamento) era o debate, que fez algum sucesso em 2013, sobre o uso da Lei Rouanet para a captação de recursos para desfiles de moda. Nada contra a vontade geral de tornar mais claros os limites para o uso de dinheiro incentivado. Porém, muitos comentários raivosos entraram em terreno perigoso ao colocar a dúvida: moda é cultura? Ou ainda: moda é cultura relevante?

Achava que isso era polêmica de passado remoto. Não consigo pensar o melhor ou mais radical da cultura do Século XX sem incluir na lista de artistas megaimportantes nomes como Vivienne Westwood, Yohji Yamamoto ou Rei Kawakubo (da Comme des Garçons). Estou sendo até conservador, indo no correto, citando os trabalhos aceitos em meios intelectuais ou da Grande Arte. Yamamoto já foi centro de documentário de Win Wenders, honra só obtida por Pina Bausch e Nicholas Ray. Kawakubo e Westwood têm verbetes na The Heilbrunn Timeline of Art History do museu Metropolitan de Nova York. Outras pessoas são mais liberais. Veja o que o pintor Julian Schnabel escreveu sobre Azzedine Alaïa na última Art Issue da revista Interview: “é um escultor que desenha com tesouras.”

Nichola Formichetti é um passo além. Ele não é nem um estilista, mas um “stylist”. Não sei se há termo em português para diferenciar os dois trabalhos. O estilista cria as roupas, inventa os conceitos para as coleções. O “stylist” até bem pouco tempo parecia ocupar uma posição secundária, combinando peças e acessórios para sessões de fotografias ou desfiles. Não mais, talvez sinal dos tempos em que curadores (os que juntam as criações dos outros) são tão criativos quanto os criadores “de primeira instância” (podemos discutir, em outro momento, se há mesmo essa primeira instância já que a arte contemporânea tem sido, há tempos, um jogo – severo ou lúdico, tanto faz – de citações).

Filho de pai piloto de avião italiano e mãe aeromoça japonesa, Formichetti foi criado na ponte aérea Roma-Tóquio. Depois estudou arquitetura em Londres, mas abriu lojas de roupas “alternativas” e logo começou a trabalhar como stylist nos editoriais de moda da revista Dazed and Confused, onde teve carreira meteórica chegando a ser diretor criativo. Seu encontro com Lady Gaga, que tem faro aguçado para se cercar de pessoas talentosas (assim como Grace Jones com Chris Blackwell e Jean-Paul Goude nos anos 1980), deu visibilidade para suas ideias fora do mundo das revistas de moda britânicas. Tudo com estética do choque em mundo onde nada mais choca. Vide aquele vestido de carne usado por Gaga em alguma dessas milhares de cerimônias de entrega de prêmios de música.

Hoje Formichetti é uma das pessoas mais poderosas também no mundo das artes. Ele ocupa o cargo de diretor criativo (como observou José Marcelo Zacchi: que denominação espetacular essa de “diretor criativo”) da Diesel, marca italiana de jeans. Lá criou a campanha Reboot, que tem sua base na rede social Tumblr e trata a internet como a nova rua, de onde são pinçadas as novas tendências. Antes os adolescentes se mostravam nas calçadas da King’s Road. Agora tiram fotos no espelho do quarto. Formichetti transformou a campanha da Diesel em exposição virtual, apresentando novos talentos.

O virtual vai para o real e vice-versa. Uma das descobertas da Reboot, o fotógrafo Michael Mayren (que ficou famoso com retratos de adolescentes ensanguentados em lutas de box), fez exposição na vitrine da Diesel de Convent Garden, tudo bancado também pela Serpentine Gallery do curador não menos poderoso Hans-Ulrich Obrist. Moda? Arte? Promiscuidade? Relativismo? Coloquem a culpa na modernidade, essa menina sem noção e sem aura.

aliens e locais

05/05/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/05/2012

Chia. Entre em qualquer loja de produtos naturais e você vai comprovar: é a semente da moda, ocupando lugar de destaque nas prateleiras, com muitas embalagens diferentes, geralmente mínimas e caras. Os rótulos dizem que faz um bem horrível. Já testei: parece comida alienígena, digna de ser servida pela Whoopi Goldberg no bar de “Jornada nas estrelas – a nova geração”. Em contato com qualquer líquido, sua casca durinha sofre mutação instantânea ganhando consistência gelatinosa, quase psicodélica. Li em algum local da internet que duas colheres de sopa de chia eram combustível suficiente para sanguinários guerreiros astecas marcharem por 24 horas. Essa informação me deixou um tanto paranóico: chia, quinoa, amaranto… – por que essa onda pré-colombiana, logo agora? Tem a ver com o fim do mundo segundo o calendário maia?

Já deveríamos estar acostumados a essa globalização radical dos paladares. Mas quando chego numa feira, e encontro blueberries e dragon fruits à venda, não consigo deixar de pensar nas minhas férias dos anos 70, quando encontrava primos paraibanos que nunca tinham tocado em uvas ou morangos. Hoje facilidades de transportes e logística comercial transformaram nossas cozinhas em laboratórios de mash-ups culinários juntando ingredientes de origens geográficas disparatadas.

Sou também do tempo em que não havia lojas de koni em cada esquina. No início da década de 80, restaurante japonês na Zona Sul carioca era só um, que não existe mais: o Goemon, na rua Francisco Sá. Fui levado até lá, quando comi sushi pela primeira vez, por um amigo de Tóquio, que estava visitando o Rio. Acabei apresentando o peixe cru para muita gente, inclusive paulistanos que nunca tinham pisado na Liberdade, bairro ainda praticamente inexplorado por quem não tinha família nipo-brasileira.

Não estávamos “atrasados”. O antropólogo Theodor C. Bestor, de Harvard, escreveu um artigo muito esclarecedor sobre a emergência do sushi como comida global, partindo do comércio de atum “bluefin” na Costa Noroeste dos EUA. Até os anos 70, naquele litoral, essa espécie era vítima apenas da pesca esportiva, e geralmente virava ração de gato. No Japão, pelo contrário, era comida nobre. Vários fatores explicam a difusão desse gosto para o resto do planeta. Com a imposição da regra das 200 milhas em muitos países, os pesqueiros japoneses foram expulsos de vários mares e a captura do bluefin se internacionalizou. Ao mesmo tempo houve a emergência econômica nipônica, a moda de comida saudável, a transformação de tudo que tem ar zen em base para estilo de vida sofisticado. Resultado: sushi virou cool, pelo menos até os anos 90, quando, com a crise japonesa, muito peixe que antes voava para Tóquio passou a ser vendido mais barato em mercados locais, e os hashis entraram em processo de orkutização. O que é muito bom: finalmente podemos comer sashimi na Rocinha.

Essa história da popularização do peixe cru dá um ar conspiratório para hábitos gastronômicos. Fica parecendo que nossos paladares são controlados por forças macroeconômicas obscuras, onde as flutuações da Bolsa de Tóquio determinam o emprego do sushiman cearense. Nem tudo é tão amarrado assim. As economias mexicana e peruana não estão bombando a ponto de produzir artificialmente demanda global por chia ou quinoa. Essa tendência pré-colombiana atual deve seguir caminhos mais prosaicos, como aquele que o kiwi percorreu até virar ingrediente comum nas saladas de frutas do Bibi Sucos. Foi uma escriturária de Los Angeles que resolveu importar a fruta asiática para os EUA e batizou-a com o nome kiwi como estratégia de marketing. A história do tomate também é curiosa: no início do século XIX, propagandeado por seus benefícios medicinais, era tão exótico quanto a chia. Demorou, mas acabou se orkutizando como ketchup.

Atualmente, tudo ficou mais acelerado e misturado. Os netos de Vasco da Gama esperavam meses pelas caravelas que traziam canela das Índias. Ninguém poderia sonhar com a complexa rede informatizada de abastecimento dos nossos supermercados contemporâneos. Assim como toda a produção cultural planetária pode ser baixada com poucas carícias na touch-screen, todos os sabores chegam em nossas casas via delivery. Simon Reynolds, além de popularizar o termo retromania para denominar a disponibilidade de toda história da música via internet (e o eterno “regaste” de estilos passados), também anda analisando a xenomania (o contrário da xenofobia) que mistura ritmos de várias procedências geográficas numa mesma pista de dança. Somos todos nômades etnoculturais, remixando informações, coisas, sensações, emoções, não importa onde foram criadas, cultivadas, produzidas.

Claro que o excesso e a abundância geram também efeitos contrários, entre eles a busca do local, do simples antiglobal. Não é a toa que, na lista 2012 das 100 pessoas mais influentes do mundo publicada pela revista Time, Ferran Adrià saúda o chef dinamarquês René Redzepi como “aquele que estabelece o caminho para frente”. Sabemos que Redzepi valoriza o ingrediente que pode ser plantado, pescado, criado nos arredores de seu restaurante. Provavelmente não encontraremos chia em suas mesas. O que pode ser uma decisão sustentável (o comércio global queima muito petróleo). Então teremos que voar para a Dinamarca para provar suas invenções? Gasto de petróleo também. Comer chique e saudável virou dilema ecológico.

muros

06/08/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29-07-2011

Na semana passada, a seção Digital & Mídia deste jornal publicou página inteira sobre a migração da internet “tradicional” para as redes sociais. Talvez não haja fenômeno cultural mais importante acontecendo atualmente no mundo. Muitas pessoas embarcaram na onda e até já abandonaram seus emails, forma de correspondência que passou a ser considerada tão antiga quanto cartas de papel. Por isso esses migrantes são apontados como pioneiros das novas tendências bacanas. Mas podem ser vistos igualmente como garotos propaganda – não-remunerados – de uma reação poderosa contra a liberdade na rede, que faz tudo para transformar nossa vida virtual (já a parte mais decisiva de nossas vidas?) em propriedade de meia dúzia de megacorporações.

Uma capa recente do Segundo Caderno também mostrou pessoas que passaram a usar o Facebook “para compartilhar seu conhecimento”, construindo excelentes guias culturais – que “antigamente” teriam lugar em blogs e sites pessoais – dentro do território do Mark Zuckerberg. Não sei se todos pensam, ao fazer essa opção de publicação numa rede social específica, que só outras pessoas inscritas no Facebook, tendo portanto aceitado os Termos de Uso do Facebook (permitindo que essa empresa utilize seus conteúdos com finalidades comerciais), terão acesso a seu valioso conhecimento. Não posso deixar de comparar: é como deixar as ruas comuns de uma cidade e passar a viver num condomínio cercado por muros e seguranças, com serviços “públicos” próprios e onde todas as casas são propriedade de uma única empresa e não de quem mora nelas.

Redes sociais como o Facebook são conhecidas justamente como “walled gardens”, ou – tradução apressada – “jardins murados”, que não possuem canais livres de trocas de informações com o resto da rede (e que fazem inúmeras restrições técnicas para impedir a “portabilidade” dos dados que criamos por lá – tente, por exemplo, transferir a sua lista de “amigos” do Facebook para uma outra rede social – é praticamente impossível). A mudança da internet “tradicional” para dentro do muro é uma mudança radical de “estilo de vida”. Não sei se todo mundo tem consciência do que está fazendo ao trocar o “tradicional” pelo “novo”.

Não são só as redes sociais os vilões desta minha fábula moral. Perigosas também são todas essas apps que a Apple, com auxílio luxuoso de nossos impulsos consumistas e design genial, transformou em moda obrigatória para smartphones e tablets. Elas quase sempre nada mais são do que interfaces bonitinhas entre o usuário e a internet “tradicional”, tornando nossa vida on-line muito mais facilmente controlável pelas empresas. Tudo que uma app faz, um browser “antigão” poderia ser desenvolvido para fazer, com muito mais compatibilidade entre sistemas operacionais e aparelhos. Agora não: se quisermos que o público tenha acesso às informações que desejamos compartilhar, precisamos de apps diferentes para o iPhone, o iPad, o Android, o sistema-sei-lá-qual-é-o-nome da Nokia e assim por diante. Desenvolver todas essas apps custa caro e precisamos ser aprovados pelas várias lojas – da Apple, do Google etc. – que passaram a ter o poder de aprovar tudo que entra em suas redes. Labirintos de jardins, com muralhas cada vez mais altas.

O exemplo da Apple é seguido por milhares de outras empresas, como as fabricantes de televisão, que estão criando seus mundos fechados de comércio, onde só poderemos acessar apps específicas. Por exemplo: se isso vingar, numa TV da Sony só poderemos comprar vídeos na loja A, ou fazer ligações pela empresa Y, ou participar da rede social Z. Claro, tudo rodará por cima da internet, e um browser poderá ser o caminho secreto para fora do muro. Mas pouca gente saberá o que vem a ser um browser, e muitos dos novos serviços serão desenvolvidos somente para essa nova realidade pós-browser.

Os browsers foram criados nos tempos pioneiros da internet, quando surgiu a própria web, desenvolvida nos laboratórios do CERN, com dinheiro público europeu, pelo santo Tim Berners-Lee, que fez questão de manter sua invenção livre e gratuita. Naquele tempo, as grandes empresas, mesmo a Microsoft, não prestavam tanta atenção para qualquer rede que não fosse corporativa. Só embarcaram na grande aventura virtual depois, junto com outras empresas nascidas no mundo on-line, buscando fechar o que era aberto, para enquadrá-lo em seu “modelo de negócio”. Várias tentativas de transformar a internet em shopping center totalitário explodiram como bolhas. A estratégia atual parece ser a mais difícil de combater. As pessoas estão interessadas em máquinas e não nos conteúdos que elas podem apresentar (não há mais filas para lançamentos de discos – há filas para lançamento do iPhone 4). Compramos, e só depois vamos inventar um uso para os objetos comprados. Uma app colorida (sai dessa, Bjork!) nos transmite a sensação de que não jogamos dinheiro fora.

Quando vou ficando pessimista, penso na Microsoft, que parecia invencível pré-internet, controlando cada vez mais áreas importantes de nossa vida. Hoje tem que correr atrás do Facebook, da Apple e do Google. Esperemos novos corredores, que vão surgir distantes da prisão divertida das apps e redes sociais que querem ser nossas únicas portas de entrada para a verdadeira riqueza das redes. Ainda acredito que a abertura é a única forma de aumentar essa riqueza. O resto vira bolha.

shangaan-eletrificação do mundo

30/07/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22-07-2011

Richard “Nozinja” Methethwa, também conhecido por “Dog”, fez agradecimento público a Wills Glasspiegel, o responsável pelo lançamento de sua música fora da África do Sul: “ele me tirou da aldeia e me colocou no lugar ao qual eu pertenço.” Que lugar é esse? O palco do Rich Mix, novo centro cultural londrino – localizado no bairro vendido como o mais trendy da cidade – no qual Nozinja se apresentava pela primeira vez em solo britânico? Ou é lugar mais abstrato, aquele ocupado por celebridades mundiais, adoradas por platéias de todos os continentes? Óbvio: Nozinja estava em casa, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida além tocar sua música pelo mundo afora, ou como se tivesse se preparado a vida inteira para aquele momento, com sentimento claro de que sua aldeia era pequena e que inevitavelmente iria se tornar influente cidadão planetário.

A transformação foi repentina. Até 2010 – apesar de produzir cerca de 50 mil discos por ano para a sua gravadora – era um nome a mais na cena musical do povo shangaan (ou tsonga – falante de uma das 11 línguas oficiais da África do Sul), ouvida apenas em aldeias pobres da fronteira com Moçambique ou nas áreas shangaan de Soweto, favela de Joanesburgo onde vivem muitos grupos étnicos que abandonam o campo para caçar dinheiro na selva urbana. Como aconteceu em tantas outras periferias globais, essa gente animada também descobriu no YouTube um espelho. Ali colocaram vídeos de suas festas de rua, inicialmente somente para comunicação aldeias-favelas. Mas não se fabrica mais isolamentos culturais como antigamente. As imagens estão na rede e podem ser consumidas por outros povos. Foi através do YouTube que Wills Glasspiegel, no seu apartamento do Brooklyn nova-iorquino, entrou em contato com a produção musical de Nozinja, que por sua vez estava criando uma nova roupagem, século XXI, para o pop shangaan.

Ninguém sabe ao certo como essas microtendências viram “virais”. Talvez Wills Glasspiegel tenha uma boa rede de amigos-formadores-de-opinião-mundial, ou talvez exista por trás de tudo uma campanha de marketing poderosa, de nova empresa secreta. Os vídeos toscos de gente dançando a rapidíssima batida (no show, Nozinja não parava de anunciar os BPMs de cada música, até chegar aos impossíveis 185) totalmente eletrônica sul-africana passaram a ser recomendados nos sites de música “antenada” mais influentes, em meados de 2010. Logo depois foi lançado, com muitos elogios na imprensa on-line e off-line, a compilação “Shangaan Electro”, destaque em várias listas de “melhores do ano”. Gosto especialmente da crítica de Bruno Silva, publicada no ótimo site português “bodyspace.net”. Repare o adorável sotaque lusitano (como gostaria de escrever assim!), que encontra justificativa estonteante mesmo para a monotonia das bases sonoras de todas as faixas, excessivamente repetitivas, ou tolas: “É um facto que todas as malhas assentam arraiais numa instrumentação idêntica, mas dada a frescura de tudo isto, acaba por nem se revelar pernicioso. Trata-se de música de dança, no sentido mais verdadeiro da palavra, onde a repetição é via para a comunhão entre o corpo que não se cansa e uma mente ao abandono. Esbatem-se as diferenças, mas permanece um corpo de obra importantíssimo, cujo entusiasmo se revela sem parcimónia.”

Agora, neste verão de 2011 no Hemisfério Norte, Nozinja excursiona triunfal por vários festivais europeus, levando platéias ao delírio (como comentou Chico Dub aqui no Segundo Caderno, em sua cobertura sobre o Sonar, de Barcelona, plataforma de lançamento para muitas modas). Ao se apresentar no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbekian, em Lisboa, foi alvo de resenha ainda mais apoteótica do nosso querido “bodyspace.net”: “Pode-se até começar por dizer que terá sido o melhor Domingo de 2011. Ou por referenciar o ambiente familiar (em todos os sentidos) que se fazia sentir no anfiteatro da Gulbenkian. Ou mesmo que, por momentos, este país se tornou um sítio um pouco melhor para se estar. Mais do que tudo isso, foi prova cabal de que a música tem mesmo a capacidade de inflamar corações.” (Gosto de pensar na vingança do colonizado, colonizando mentalmente o ex-colonizador: a favelização do povo shangaan, povo comandante do Império de Gaza, foi obra do colonialismo português que derrotou o Imperador Gugunhana, cujo nome era também Reinaldo Frederico e morreu exilado nos Açores.)

No Rich Mix londrino, eu percebia o mesmo entusiamo na platéia. Não era platéia afropolita, como a da festa do museu Victoria & Albert comentada aqui na coluna da semana passada. Era maioria branca, mas não menos chique e dava para perceber que não podia haver público mais caçador de tendências na cidade. Todos – o show lotou dias antes – pareciam contentes por se imaginarem os primeiros a ter acesso não virtual e exclusivo ao fino da próxima bossa (se Lady Gaga for mesmo esperta fará um remix shangaan electro de “Judas”, aquela faixa harley-davison de seu disco mais recente). Mas tudo isso não deixa de ser bem estranho. A transposição do vídeo de rua para o palco europeu funciona de maneira divertida, mas capenga. Tudo bem: vivemos época de microtextos, microtendências, microcenas – e também microentusiasmos. Nada é falso, e é bom enquanto dura. Tudo é pop-up, mesmo a alegria. Sejamos bem-vindos ao lugar ao qual Nozinja pertence.

afropolita

23/07/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15-07-2011

Taiye Selasi, ou Taiye Tuakli-Wosornu, parece personagem criada por alguma campanha de marketing viral-fake. Mas vale o lugar-comum: se não existisse, precisaria ser inventada, urgentemente. A primeira página do seu site contém apenas uma foto do que parece ser uma porta de metal, metade de seu rosto de mulher linda, e uma microbiografia sem pontuação ou letras maiúsculas: “nascida em londres criada em boston vive nova york nova delhi roma escreve estórias ensaios roteiros + livros faz imagens parada + em movimento”. As palavras “estórias”, “ensaios” e “livros” são as únicas clicáveis – “livros”, por exemplo, nos conduz apenas a uma matéria – suspeita? – do jornal New York Observer falando que, com apoio de nada menos que Salman Rushdie e Toni Morrison, Taiye assinou contrato com a Penguin para publicação de “Ghana must go”, seu romance de estréia, que ainda não terminou de escrever. Já seria um dos lançamentos literários mais aguardados de 2012. Quem sabe ela não vem para a próxima FLIP e confirmaremos se existe em carne e osso?

Mesmo que não exista: sua influência não poderia ser mais real. Sim, escreveu – acho que apenas – um conto, intitulado “A vida sexual das garotas africanas” e selecionado para o mais recente número de verão da Granta. Mas foi um artigo, intitulado “Bye-bye Barbar”, que apareceu em 2005 na revista inglesa Lip, especializada na publicação de textos de estudantes (na época Taiye fazia mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Oxford, depois de ter cursado Estudos Americanos em Yale), que virou seu passaporte para a celebridade pop-intelectual. O primeiro parágrafo descrevia a pista de dança do Medicine Bar, em Londres, animado ao som de Fela Kuti. O segundo lançava uma pergunta para os dançarinos: “de onde você é?” Todos, como Taiye, titubeavam ao responder: “este mora em Londres mas cresceu em Toronto e nasceu em Accra; aquele trabalha em Lagos mas cresceu em Houston, Texas”. Conclusão inconclusiva: “eles não pertencem a uma geografia única, mas se sentem em casa em muitas.” O artigo dava nome a essa identidade híbrida: “Eles (leia: nós) são afropolitas.”

Cada vez mais pessoas se reconhecem na palavra inventada (ou pelo menos popularizada) por Taiye, com sua mistura de “africano” e “cosmopolita”. E o “conceito” se infiltra em lugares surpreendentes. O museu Victoria & Albert, de Londres, realiza na útima sexta-feira de cada mês um evento chamado “Friday Late”, quando suas galerias ficam abertas para visitação até 10 horas da noite. O tema da “Friday Late” de junho era “Afropolitan”. Os africanos londrinos mais chiques (certamente alguns dos africanos mais chiques do mundo) marcaram presença. Foi uma das mais interessantes festas da minha vida.

A entrada do museu foi transformada num boteco árabe pelo fotógrafo e designer marroquino Hassan Hajjaj. Esqueça a tradição: engradados de coca-cola formavam a base dos bancos e a música ambiente era uma mistura de kuduro com coupé-décalé. Minha primeira parada da noite (depois de conferir a exposição do Yohji Yamamoto, a galeria medieval e aquela roupa de plumas usada pelo Brian Eno na época do Roxy Music) foi um debate divertidíssimo (e olha que acho a maioria dos debates chatérrimos) sobre o significado do “afropolitismo”.

O moderador – o poeta/escritor/jornalista Tolu Ogunlesi – abriu a conversa fazendo para os debatedores a mesma pergunta dos primeiros parágrafos do artigo de Taiye Selasi: “de onde você é?” As respostas foram outras microbiografias transculturais/geográficas. Minna Salami, coordenadora do MsAfropolitan (autodefinido como “blog cultural-analítico de estilo de vida”) nasceu na Finlândia. Lulu Kitololo, artista/designer (a dificuldade de encontrar um rótulo profissional também é característica desse povo), nasceu no Quênia, mas seu pai era da Tanzânia e aí começou sua vida errante. Hannah Pool (segundo o programa do evento: “jornalista, personalidade da TV e do rádio”) nasceu na Eritréia, foi adotada por pais noruegueses que moraram em Cartum e estudou no interior da Inglaterra em época que não era “cool” ser africano – ela se definia apenas como “black”. O produtor musical Yemi Alade-Lawal, fundador da AfroPop Live (plataforma de lançamento para novos artistas africanos), o único londrino no palco (mas que tem família em Ifé, local sagrado para o candomblé, e iniciou sua carreira em Nova York e Los Angeles), declarou que a moda do “afropolitismo” é muito bem-vinda: “tudo que me faz “cool”, eu gosto.” Algumas pessoas da platéia cobraram militância política. Um médico que trabalha jovens de famílias pobres de imigrantes denunciou as tendências elitistas dos componentes da mesa: “vocês tiveram sorte, estudaram nas melhores universidades…” Tolu Ogunlesi, o moderador, escapou com filosofia de Andy Warhol: “não estamos propondo um movimento político, o afropolitismo é uma lente – mais uma no supermercado das lentes – para olhar para a identidade.”

Saindo do debate, ninguém mais conseguia entrar na galeria em que ficam os enormes desenhos de Rafael (os moldes da tapeçaria da Capela Sistina), totalmente lotada e festiva, onde seria realizado o desfile de moda com curadoria de Minna Salami. Fui comer galinha africana apimentada nos jardins, ao som kwaito-punk ao vivo de Spoek Mathambo, sob frio e chuva do verão londrino.