Archive for the ‘música’ Category

complementos Ilustríssima 6

13/02/2021

Links complementares para o texto de hoje:

Meio ano de coluna. Passa rápido. E não passa.

Sobre Melancolia.

A entrevista de Patti Smith. Traduzi “unrest” por desespero. Ela não queria dizer só “inquietação”.

Caetano Veloso vendo o Baiana System em ação no carnaval baiano. É o amor. Palmas. Caetano Veloso entrevista Russo Passapusso. Respeito.

O disco de dub do Baiana System. O show com Gil.

Mais sobre o Baiana System aqui mesmo neste blogue.

Meu artigo-manifesto em defesa de contatos diretos e descentralizados com o mundo todo.

O Navio Pirata. O clipe de “Reza forte”. O trailer de “Nauzila”.

Singeli: a introdução. Explorar o site do Nyege Nyege para descobrir muito mais.

Nem houve espaço para falar do Abbas Jazza, ministro não-oficial das comunicações do movimento singeli, também taxista em Dar es Salaam, medidador fundamental para a produção de “Nauzila”.

Der leone have sept cabeças

18/07/2020

Antes da pandemia, quando eu podia andar distraído pela cidade admirando o sol batendo nas bancas de revista, houve um momento em que pensei estar tendo alucinação grave. Descobri uma pilha de DVDs com o filme O leão de sete cabeças de Glauber Rocha entre jornais, cigarros avulsos e garrafas de coca-cola. Como assim? Era bem o contrário do “é tudo verdade”, deveria ser fake news, prank de hackers russos, produto de alguma teoria da conspiração tricontinental. Poderia ser só a capa, e conteúdo terrorista no disco, com vírus explode-home-theater. Mas descobri que era produto legítimo de uma coleção de grandes diretores de cinema lançada pela Folha de S. Paulo.

Nunca tinha tido a oportunidade de ver este filme. Não tenho certeza se foi lançado no Brasil antes. Cabeças cortadas eu vi no cinema. Cinema de rua, não cinemateca ou festival. O mundo já foi estranho assim. Mas Der leone have sept cabeças – o título “original” continha essas palavras em várias línguas – era uma lacuna na minha cultura cinematográfica e glauberiana. Não é mais: e como foi interessante ver essa obra agora, depois de tantos anos de estudos pós-coloniais, depois de ter visitado a África várias vezes, inclusive de ter conhecido a Kinshasa do Zaire de Mobuto Sese Seko, na margem oposta do rio Congo filmado por Glauber Rocha. Como tudo aquilo já era de certa forma afrofuturista.

Recentemente andei estudando o uso da música no cinema de Glauber Rocha: Villa-Lobos, Marlos Nobre, Naná Vasconcelos em A idade da terra. Candomblé. Sérgio Ricardo. Em O leão de sete cabeças há apropriações radicais de sons de várias procedências. Surpreso, numa cena ouvi a voz de Clementina de Jesus cantando A marselhesa em português. Outra alucinação? O Google me ajudou a entender o que era aquilo: a viagem de Clementina de Jesus para o festival de artes negras organizado por Léopold Senghor no Senegal, com esticada no festival de Cannes, onde cantou sua versão do hino francês.

Mas escrevo este post para recomendar especialmente uma cena, entre as mais impressionantes já filmadas em toda a história do cinema: muitos africanos trepados numa frondosa árvore, batucando em seus próprios corpos, bem Barbatuques. Todo mundo é obrigado a descer. Fila. Execução por tiros. Todo mundo morre. Sem explicações ou consequências. Fiquei louco com essa cena, e com o resto todo do filme. Como continua atualíssimo no seu gritante e original anticolonialismo.

Pensei em Dziga Vertov. Em Três canções para Lenin. Pode existir filme mais colonialista? E evolucionista. Imperdoável seu tratamento do islamismo. E aquela certeza revolucionária. Vertov estava na ordem do dia quando Glauber filmava na África. O Groupe Dziga Vertov, que tinha a participação do Godard. Etc. Tenho que investigar para saber como tudo isso se relacionava.

Antes disso, trecho de carta de Glauber Rocha, escrita em Roma durante a montagem de O leão de sete cabeças: para Alfredo Guevara: “não se esqueça de mostrar Antônio a Fidel: mas acho que ele gostará mesmo é do filme da África – o mais forte politicamente de todos”.

peço licença

09/07/2020

Os problemas criados pela “digitalização da cultura” se tornaram muito mais agudos durante a pandemia. Certamente não o maior deles: a abundância. Pouca atenção para tanta live, tanto podcast, esse tsunami de streaming. Como se informar sobre a quantidade avassaladora de eventos de todos os tipos, para todos os gostos? Cada pessoa cria seus filtros, seus algoritmos pessoais de recomendação, sua estratégia para navegar feeds-sem-fim identificando aquilo em que vale a pena clicar. É preciso também estabelecer relações de confiança com outras pessoas mais atentas para determinadas áreas da criação artística que não temos tempo para acompanhar. Por isso valorizo tanto quem faz bom trabalho de assessoria de imprensa, escolhendo bem aquilo que divulga com empolgação. Sem os emails da Bebel Prates, por exemplo, eu não teria escrito meu post sobre o BaianaSystem – foi fácil encontrar todas as informações importantes sobre a história da banda relendo as notícias que ela me mandou.

Esta semana recebi mensagem da Mônica Ramalho, elogiando o texto que publiquei sobre Thiago Amud e sugerindo, sem maiores informações, que eu escutasse Sylvio Fraga. Não reconheci o nome. Não tinha a menor ideia do tipo de música que me aguardava. Mas há anos faço boas descobertas a partir do que a Mônica divulga. Desta vez levei sua sugestão imediatamente a sério: no primeiro tempinho, fiz pesquisa no Google e a primeira coisa que encontrei foi a faixa Da vida no YouTube. Fiquei impressionado: parecia parente de um transsamba, com guitarra nervosa e repetitiva, um trumpete em arranjo ousado, um final abrupto. Da letra, na primeira audição, só pesquei evoé e éden – mas tudo indicava consistência de “palavra cantada” bem fora da curva. O YouTube emendou com Sono do burgo, com refrão “idiotas cidades” e uma percussão baiana que me fez reparar o nome Letieres Leite na foto que ocupa o lugar do vídeo.

Em seguida, descobri o site do Sylvio Fraga, vi a lista de livros (li logo uma orelha consagradora assinada por Antonio Cícero), artigos, traduções. Escrevi de volta para a Mônica confessando minha vergonha por não conhecer nada disso antes. Ela, com a paciencia de quem me manda informações sobre Sylvio Fraga desde pelo menos 2013, respondeu indicando a edição deste julho da Piauí, que traz página com sua poesia. Aí sim a coisa ficou séria: que maravilha esse conjunto de poemas. O grito do galo haitiano no celular do taxista na Rio Branco, o peso do bebê, o “me satisfaço com pouca atenção”, os “autoritários da indignação”, a repetição do “peço licença” que repeti no título deste post.

Tudo aquilo foi intimação para dever de casa: escutei os outros discos. São três até agora. Todos extremamente interessantes. O primeiro é mais inocente, mas tem artimanhas de férias no sítio. O segundo é mais urbano, irônico, distanciado, revelando um quinteto poderoso, bem evidente em Nogueira, faixa instrumental. O terceiro, Canção da cabra, vai mais longe: é uma densa viagem sertaneja, com Graciliano Ramos segundo Antonio Candido como guia (e o ínicio de São Bernardo transformado em letra de música). Minhas faixas preferidas são: Dulcinéias, com solo magnífico de flugelhorn comentado por uma bateria da pá virada; Sertões, onde brilha o arranjo para sopros e cordas de Letieres Leite celebrando “a vida sincera de um bicho qualquer”; e Euá, faixa de abertura, para orixá que me encanta desde que li o Senhora das possibilidades de Cléo Martins.

Depois fui ligando as pontas do email da Mônica. Quando escrevi meu post sobre Thiago Amud (que é autor das letras de Da vida, Sono do burgo e Euá) nem tinha reparado que O cinema que o sol não apaga foi lançamento de uma gravadora chamada Rocinante, da qual Sylvio Fraga é diretor artístico. Seu pequeno, mas poderoso, catálogo aponta para muitos novos rumos da música contemporânea do Brasil. Como ia dizendo: problemas da abundância, desta vez problema bom: um email curtinho, pedindo licença, me abre um mundão assim. Infinito, como Guimarães Rosa dizia ser o Sertão.

PS: Como se não bastasse tanta abundância daqui, não paro de escutar a Hala 96 FM, rádio sudanesa. Incrível como não toca nada que eu não goste. Quando ouço algo que, nos primeiros acordes, não bate bem, já sei que é jingle.

saudade

28/06/2020

Quem lê este blog há muito tempo sabe que sou fã de Benjamin Biolay. Mesmo assim, não tive tempo ainda para escutar o disco que lançou na sexta-feira. Ouvi apenas a faixa de encerramento, curioso com seu título Interlagos (Saudade). Estava receoso, o álbum se chama Grand Prix. Nunca tive paixão por Fórmula 1. Então me aproximei com distanciamento sociocultural cuidadoso, mascarado. Mas logo a canção me conquistou, principalmente quando entra a voz de Bambi (que herança, ser filha e neta de gente tão brilhante) no refrão que fala em saudade, usando a palavra da língua portuguesa, e cantando que chora um Oceano Índico. Isso já seria o suficiente para me deixar totalmente satisfeito. Porém, há mais beleza: quase no final da letra surge o verso para São Paulo: “nesta cidade maior e menos suja que minha vida”. Que nossas vidas. Nesta Sampa francesa em quarentena.

The Meters

27/06/2020

Como passei tanto tempo da minha vida sem ouvir The Meters todos os dias? É vitamina pura. Estava planejando escrever sobre essa banda desde que soube da morte de Art Neville, seu tecladista, há quase um ano. Mas só agora consegui escutar todos os oito discos. Não com a atenção planejada. Sempre como trilha sonora para outras atividades pesadas-confinadas. Mas tudo fica leve e livre com essa música vigorosa e alegre (mesmo com tantas evidentes conexões com o blues do Delta do Mississipi). Então deu vontade de recomendar esse remédio, que pode ser útil para muita gente, artigo de primeira necessidade, atividade essencial.

Os dois primeiros discos, lançados em 1969, são instrumentais. Não pode haver banda – de guitarra, baixo, bateria e órgão – melhor. A mais perfeita lição do básico (incluindo toda a sofisticação) do funk, comparável aos mais celebrados momentos dos J.B.’s ou da Africa 70 (que eram quase big bands se comparadas ao minimalismo Meters). Tudo com produção de Allen Toussaint (preciso escrever também um post sobre sua obra aqui, agradecendo todo o bem que ele já me fez), som claríssimo e poderoso, poderia ser gravação de hoje (muita gente, em atitude vintage, tenta copiar aqueles sons de teclado). E como sempre digo: é música para se acabar de dançar sim, mas simultaneamente incentivando o processamento cerebral dos mais complexos conceitos estéticos.

Depois aparecem algumas faixas cantadas no disco Struttin’. A primeira é uma versão soul muito sutil de Wichita Lineman, uma das canções mais bonitas de todos os tempos, com aquela letra aparentemente surreal, mas muito concreta, de trabalhadores trepados em postes consertando cabos de linha telefônica, sozinhos no descampado no meio do nada dos EUA. O que era aéreo na voz de Glen Campbell se reconecta com a Terra sob o tratamento matemático dos Meters. A bateria de Zigaboo Modeliste (que nome incrível, que baterista divino) comenta tudo de forma inesperada.

O quarto álbum, Cabbage Alley, tem início heavy, com riffs que poderiam ser de Jimmy Page. A banda agora também tem percussionistas não oficiais. Há uma faixa chamada Gettin’ Funkier All the Time. Como se fosse possível. E é. Todos os detalhes merecem atenção, como o break de guitarra Shaft, ou os segundos iniciais que soam como ritmo de trás para frente. Depois vem Rejuvenation, disco de Hey Pocky A-Way (onde New Orleans fica totalmente evidente) ou Africa (que para meus ouvidos anuncia a Nação Zumbi). Sua capa sempre torna mais chique qualquer lista responsável de melhores discos da História.

Neste momento, The Meters fica chique mesmo. É a banda que toca na festa de lançamento de Venus and Mars, no transatlântico Queen Mary (época de pico na indústria fonográfica, Paul McCartney podia queimar dinheiro da gravadora). Mick Jagger estava na plateia. Resultado: convidou a turma de Art Neville para abrir as turnês de 1975 e 1976 dos Rolling Stones, não por acaso a época em que o disco Black and Blue estava em acabamento. Mesmo com essa exposição, e lançando o arrasta-pé (tem até um Mardi Gras Mambo, escancaradamente carnavalesco) que é Fire on the Bayou, os Meters não decolam comercialmente ou em popularidade, tanto que até hoje não são conhecidos por multidões. Bem que tentaram, o disco seguinte tinha um popozão na capa e uma primeira faixa que declarava já no título Disco is the Thing Today. Gosto de quem segue moda assim sem vergonha. E anuncia outras modas, como gravando Stop that Train, de Peter Tosh – lançada pelos Wailers (mais uma prova da ponte New Orleans/Jamaica, elemento fundamental para a invenção do reggae), no último album dos Meters. Um disco, com os metais do Tower of Power, chamado New Directions.

Depois tem muita coisa nova. Incluindo a maravilha Neville Brothers.

Mas todo dia é dia para (re)descobrir The Meters. Como se fosse o primeiro dia do mundo.


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