Archive for the ‘política’ Category

Der leone have sept cabeças

18/07/2020

Antes da pandemia, quando eu podia andar distraído pela cidade admirando o sol batendo nas bancas de revista, houve um momento em que pensei estar tendo alucinação grave. Descobri uma pilha de DVDs com o filme O leão de sete cabeças de Glauber Rocha entre jornais, cigarros avulsos e garrafas de coca-cola. Como assim? Era bem o contrário do “é tudo verdade”, deveria ser fake news, prank de hackers russos, produto de alguma teoria da conspiração tricontinental. Poderia ser só a capa, e conteúdo terrorista no disco, com vírus explode-home-theater. Mas descobri que era produto legítimo de uma coleção de grandes diretores de cinema lançada pela Folha de S. Paulo.

Nunca tinha tido a oportunidade de ver este filme. Não tenho certeza se foi lançado no Brasil antes. Cabeças cortadas eu vi no cinema. Cinema de rua, não cinemateca ou festival. O mundo já foi estranho assim. Mas Der leone have sept cabeças – o título “original” continha essas palavras em várias línguas – era uma lacuna na minha cultura cinematográfica e glauberiana. Não é mais: e como foi interessante ver essa obra agora, depois de tantos anos de estudos pós-coloniais, depois de ter visitado a África várias vezes, inclusive de ter conhecido a Kinshasa do Zaire de Mobuto Sese Seko, na margem oposta do rio Congo filmado por Glauber Rocha. Como tudo aquilo já era de certa forma afrofuturista.

Recentemente andei estudando o uso da música no cinema de Glauber Rocha: Villa-Lobos, Marlos Nobre, Naná Vasconcelos em A idade da terra. Candomblé. Sérgio Ricardo. Em O leão de sete cabeças há apropriações radicais de sons de várias procedências. Surpreso, numa cena ouvi a voz de Clementina de Jesus cantando A marselhesa em português. Outra alucinação? O Google me ajudou a entender o que era aquilo: a viagem de Clementina de Jesus para o festival de artes negras organizado por Léopold Senghor no Senegal, com esticada no festival de Cannes, onde cantou sua versão do hino francês.

Mas escrevo este post para recomendar especialmente uma cena, entre as mais impressionantes já filmadas em toda a história do cinema: muitos africanos trepados numa frondosa árvore, batucando em seus próprios corpos, bem Barbatuques. Todo mundo é obrigado a descer. Fila. Execução por tiros. Todo mundo morre. Sem explicações ou consequências. Fiquei louco com essa cena, e com o resto todo do filme. Como continua atualíssimo no seu gritante e original anticolonialismo.

Pensei em Dziga Vertov. Em Três canções para Lenin. Pode existir filme mais colonialista? E evolucionista. Imperdoável seu tratamento do islamismo. E aquela certeza revolucionária. Vertov estava na ordem do dia quando Glauber filmava na África. O Groupe Dziga Vertov, que tinha a participação do Godard. Etc. Tenho que investigar para saber como tudo isso se relacionava.

Antes disso, trecho de carta de Glauber Rocha, escrita em Roma durante a montagem de O leão de sete cabeças: para Alfredo Guevara: “não se esqueça de mostrar Antônio a Fidel: mas acho que ele gostará mesmo é do filme da África – o mais forte politicamente de todos”.

missão

30/06/2020

Minha intenção era publicar o post de ontem apenas para recomendar um podcast. A evolução da escrita me surpreendeu: o texto virou um manifesto para salvar o mundo. Já era tarde, eu estava cansado, com pressa para ir dormir, o terceiro parágrafo ficou totalmente incompreensível. Volto aqui para tentar esclarecer. Melhor aproveitar a argumentação de David Baltimore, que não é apenas excelente cientista de laboratório, mas homem de ação em muitos outros campos (e ele declara: “eu amo instituições”, por isso foi reitor de universidades etc.). Aproveito para fazer uma tradução e um resumo MUITO livres de trechos da sua entrevista para o Mindscape Podcast (o original está aqui em áudio e transcrição):

Precisamos ter em nosso armamentário, remédios que inibirão o desenvolvimento dos coronavírus. Todos os coronavírus estão relacionados uns com os outros. Todos fazem basicamente o mesmo conjunto de coisas. Eu diria que a indústria farmacêutica, com tempo e dinheiro suficientes, poderia produzir um remédio contra os coronavírus, e não seria necessário saber qual coronavírus específico para ter moléculas inibidoras. […] Deveríamos nos dedicar a isso agora, mesmo que seja tarde para a COVID-19. Para a COVID-20 e 21 e 22 não é tão tarde, e deveríamos nos dedicar a isso para que nunca mais sejamos atingidos como agora. […] Não vejo essa dedicação acontecendo. […] Enquanto dependermos do lucro, não vamos nos dedicar a isso […] Temos que encontrar uma maneira de financiar e incentivar a pesquisa pública e das universidades […] E não só para coronavírus. A mesma coisa é verdadeira para toda uma variedade de outros vírus. […] O novo coronavírus não é algo fora da curva, e deveríamos estar nos preparando uma pandemia como a atual. Houve os alertas com a SARS e a MERS que revelaram que os coronavírus tinham a habilidade de aparecer em novas formas que não conhecíamos, que estavam por aí no mundo. Deveríamos trabalhar para identificar cada vírus num morcego pois os morcegos parecem ser um reservatório eficaz para vírus que podem atacar seres humanos. Mas não são só os morcegos. Todo o mundo natural tem vírus com os quais precisamos nos preocupar. […] Devemos levar tudo isso muito a sério. Agora, faremos isso? Eu não sei. […] E eu não sei porque já sabemos disso há muito tempo. Isso é saúde pública. E a história da saúde pública nos mostra que quando uma coisa deixa de ser um problema imediato, então perdemos nosso foco e passamos a usar os recursos para outros fins e essa precisa ser a lição das lições

Que fazer? Hoje acordei com as notícias de um novo vírus parente do H1N1 entre porcos de fazendas chinesas. Vamos viver assim? Esse é o novo normal? Como encarar a lição das lições, inventar um novo movimento político para que essa pesquisa seja realizada com os recursos que precisa, com a transparência necessária? Esse novo movimento político tem que ter a força de uma pandemia. Não pode deixar por menos. E não dá para esperar que Bill Gates ou a OMS nos salvem. É missão para todo mundo, que não deve ser pensada apenas como uma batalha científica contra um vírus – para dar certo, certamente vai exigir mudanças profundas em todas as áreas de nossa vida atual. Mas não tem jeito: teremos que enfrentar o desafio.

física e virologia – e o mundo

29/06/2020

Essa moda de podcast me irrita. Mas é preciso reconhecer: o formato é ideal para os tempos que correm, com tanta (pre)ocupação de todos os lados. Colocamos os fones e podemos realizar outras tarefas pesadas. Música me distrai muito. Ouvir um podcast aperfeiçoa meu foco. Então aqui mais uma dica: o Mindscape Podcast. O apresentador, Sean Carroll, é físico, professor da Caltech, especializado em cosmologia, incluindo ondas gravitacionais e outros assuntos cabeludos. Sabe explicar bem questóes teóricas de ponta, extremamente complexas. Gosto dos episódios solo. Mas o podcast tem mais entrevistas, com uma lista incrível de cientistas estrelas de todas as áreas. Este ano começou com Daniel Dennett, uma conversa sobre consciência e reconhecimento de padrões. Recomendo especialmente o episódio com Jenann Ismael, autora do livro How Physics Makes Us Free, que eu não conhecia, mas agora considero uma das pessoas mais inteligentes habitando o planeta.

Ontem ouvi a entrevista com outra inteligência fascinante: David Baltimore, Nobel de Medicina, especialista em vírus. No site do podcast havia link para seu vídeo no iBiology, canal que disponibiliza pequenas aulas dos melhores biólogos do mundo de língua inglesa, tudo de graça. Passeando por ali, olhando os “veja também” do YouTube, comecei imediatamente a fazer o excelente curso de virologia de Vincent Racaniello na Columbia University (mas este vou demorar para completar, pois exige ficar sentado por várias horas na frente de uma tela). Repito: andei de mal com a internet, que se transformou neste perigoso trem fantasma de trolagem. Mas quando tenho acesso imediato a essa abundância de bom conhecimento percebo que nem tudo está perdido.

No iBiology encontrei também este vídeo importantíssimo sobre a transmissão de vírus de outros animais para seres humanos e a pesquisa para produção de vacinas. Estou convencido: ali há todo um projeto que precisa ser colocado em prática com urgência (David Baltimore fala a mesma coisa no final de sua entrevista no Mindscape Podcast, até bem mais enfaticamente). Não é só um projeto científico, ou de financiamento da pesquisa científica. Para virar realidade, e produzir uma vacina que evite também as próximas e inevitáveis pandemias (e a terrível pandemia atual é até leve se comparada ao que pode vir por aí – já aprendi que os vírus são bem impŕevisíveis, instáveis, em constante mutação – e os seres humanos, cometendo atentados contra o meio ambiente, cada vez mais próximos de focos de contaminação – no vídeo há a informação de que quase a totalidade dos coronavírus tem alguma relação com morcegos e no mapa que mostra as áreas onde há mais espécies de morcegos o Brasil é quase totalmente vermelho), precisamos de uma nova maneira de fazer política (ou diplomacia, vide Bruno Latour), de uma nova estratégia para identificar o que é prioridade econômica, de um novo entendimento sobre nosso lugar (o lugar da Humanidade) no planeta (que inclui a ação também urgente para evitar a catástrofe climática). Não é pouca coisa: é juntar todo mundo (naturezas e culturas) para salvar o mundo. Sou ingênuo o bastante para acreditar que é possível encontrar recursos e vontades para travar essa batalha. Já estou arregaçando minhas mangas e descobrindo como posso participar da luta.

PS: continua neste post

inteligência artificial antropófaga

21/10/2017

Em agosto, recebi surpreendente convite do laboratório brasileiro da IBM Research para participar de painel no seu Colloquium 2017, abordando os impactos culturais da inteligência artificial (IA) em nosso país.  Sempre me interessei por inteligência artificial, mas de forma totalmente diletante. Tive menos que dois meses para preparar minha fala. Foi uma correria. Mesmo assim, nem precisava me esforçar para encontrar material de pesquisa pois, quase que diariamente, o assunto estava nas manchetes de jornais e capas de revistas. Deixo aqui anotações que fui colecionando durante o aprendizado mais que intensivo. Como o convite era maluco (por que eu?), achei exigia uma intervenção maluca. Chegando lá – diante de seleta plateia de centenas de cientistas e engenheiros – amarelei. Fui bem comedido. Mas, aqui no blog, posso exagerar na maluquice irresponsável (ou talvez responsável demais, dependendo do ponto de vista):

No dia primeiro de setembro, Vladimir Putin proferiu uma “aula aberta” via satélite para abrir o ano letivo russo. Da lição científica presidencial, a frase mais retuitada foi a seguinte: “quem se tornar o líder nessa área [IA], dominará o mundo”. Parecia recado para seus coleguinhas, também viciados em testosterona, Donald Trump e Kim Jong-un. Como se dissesse, bancando o mais inteligente: “vocês perdem tempo brincando com mísseis, a batalha mais importante acontece em outro campo e usa outras armas…” Porém, o que mais me chamou a atenção foi algo pouco comentado nos artigos que repercutiram os ensinamentos do professor Putin: o objetivo principal da produção de conhecimento por uma nação não é algo vago como “contribuir para o aumento dos índices de felicidade geral” ou o “combate contra a injustiça” ou a “descoberta da verdade”, mas sim “dominar o mundo”. Eis o bê-a-bá do imperialismo.

Melhor deixar de lado esse tipo de especulação. Afinal, como descobrir o que realmente se passa na inteligência de Putin? Como se certificar se seus discursos não sejam apenas pistas falsas, escondendo seus verdadeiros planos de dominação global? Até porque, se há realmente uma corrida armamentista no campo da IA, a Rússia – ao que tudo indica… – não parece ocupar postos próximos aos primeiros colocados. EUA, China e talvez Índia estariam correndo na frente, quase isolados dos demais países.  O resto é o resto.

E o Brasil estaria no resto do resto. O que isso significa? Está tudo – para ser – dominado por IAs que não pensam em português, que vão nos impor – sem escapatória – seus vieses culturais, suas maneiras bem específicas de classificar ou enxergar ou manipular a realidade, o mundo ao redor? Penso na IA do Google que colocou pessoas negras sob a tag “gorila”, provavelmente por, no seu processo de aprendizado, só ter lidado com seres humanos brancos. Os brasileiros seremos invisíveis, meros ruídos incompreensíveis (ou insignificantes, ou desclassificados), fantasmas nas máquinas da nova ciber-ordem? A quem interessará o investimento em machine learning para tornar detectáveis nossas diferenças?

Fiquei assustado com o cenário apocalítico, mas descrito com frieza ou objetividade comercial espantosas, que aparece no artigo que Kai-fu Lee, poderoso investidor “venture” chinês (ex-diretor do Google na China), publicou este ano no New York Times. Em resumo: a corrida é entre EUA e China. A IA vai acabar com a maioria dos postos de trabalho. A única saída será alguma espécie de renda universal, com impostos sobre as empresas vencedoras. Maior problema: o que fazer com os países que não terão empresas vencedoras? Não haverá alternativa (a pregação da crença neoliberal do artigo resposta de colunista da Forbes não me deixou menos preocupado): teremos que virar colônias dos vencedores, como mercado do consumo, aceitando os quadrados ou bolhas nos quais os algoritmos de Washington ou Beijing nos colocaram.

Mais assustador ainda foi descobrir recente edição especial sobre IA da revista Science e tomar conhecimento do trabalho do Centro de Psicologia Positiva da Universidade da Pensilvânia (comandado pelo psicólogo superstar Martin Seligman) com algoritmos para identificar sinais de depressão e outros problemas bem humanos nas redes sociais. Tudo bem intencionado. Um dos projetos se chama Bem-estar Mundial. Não quero ser ranzinza e alertar apenas para os problemas éticos óbvios, que todos os “papers” assinados pelos pesquisadores dessa instituição fazem questão de identificar com alertas: nossa saúde mental vai ser agora diagnosticada sem nossa autorização? Esse é somente uma característica de nossa realidade big brother/data cada vez mais sofisticada. Questão mais sutil: que diagnóstico será esse? Sabemos que culturas diferentes classificam estados mentais de maneiras distintas. Depressão em distantes bairros de uma mesma cidade pode não significar a mesma coisa. Vamos aceitar os laudos de algoritmos, mesmo com vieses “positivos”, feitos na Pensilvânia?

Sei que não sou a primeira pessoa me preocupar com esses aspectos da dominação global da IA. Há importantes debates e instituições nos EUA que tentam encontrar saídas para vários desses impasses. Cito a FATML.org, que cuida de “fairness, accountability and transparency” (prefiro não traduzir, pois são conceitos – até eles – que funcionam melhor em inglês) em processos de machine learning. Ou a diversity.ai, que lida com “inclusion, balance, neutrality”. Muitas empresas, como a Autodesk, criam departamentos para combater várias espécies de vieses. Tudo bem, tentam fazer sua parte. Mas qual a nossa parte? Seremos apenas espectadores, mendigando por algumas migalhas de atenção para nossas especificidades culturais, ou queremos ter voz ativa na invenção da nova política global? Nem espero tanta atividade: uma pequena intervenção realmente original nesta conversa já me deixaria menos desanimado.

*****

Tudo bem, muito o que se fala atualmente sobre IA é hype. Mas o hype geralmente cria as tais “janelas de oportunidade” que podem ser aproveitadas por quem está de fora do debate principal, usando a confusão blá-blá-blá geral para dar pitaco na conversa para a qual não fomos chamados. Na minha opinião o Brasil perdeu a oportunidade da internet. Não inventamos um aplicativo original para o uso da Grande Rede, como o Skype criado por estonianos, suecos e dinamarqueses (mas talvez seja o único exemplo de algo que realmente se internacionalizou – junto ao Waze? – vindo de fora dos EUA… e que acabou sendo comprado pela Microsoft). Nem criamos versões locais de ferramentas globais capazes de em seguida terem impacto no resto do mundo, como os chineses conseguiram com o Alibaba ou o Baidu. Os brasileiros se contentaram basicamente com o papel de consumidores vorazes das novidades, campeões ou vice-campeões em uso de redes sociais, publicação de vídeos, números de mensagens instantâneas trocadas… Nosso comportamento foi cada vez mais adquirindo o padrão de servidão voluntária diante de grandes corporações como Facebook. Trocamos a liberdade do código aberto (ou da noção de que a informação quer ser livre) por condomínios fechados administrados por empresas cada vez mais espertas no uso e na venda de nossos dados privados. Desconfio que quando falam em desenvolvimento nacional, grande parte dos brasileiros (inclusive dos economistas brasileiros) está pensando apenas na compra de camisetas da Abercrombie via Amazon. E todos ficam felizes com os mesmos uniformes aparentemente cosmopolitas, ou descaradamente submissos.

Meu consolo: pode existir algo criativamente predatório nessa tendência apenas consumista. Muitos estudos e artigos (por exemplo este aqui) sobre os trabalhos em vias de desaparecer por causa da IA profetizam que as juventudes das periferias pobres serão as parcelas da população mais prejudicadas quando operários ou pessoal administrativo forem substituídos por computadores. Habilidades mais sofisticadas, ou menos “algoritmizáveis”, como a comunicação, seriam monopolizadas por gente mais rica, estudantes de MBAs caros. Olhando para o que aconteceu no Brasil, sinto alívio em descobrir furos interessantes nessa tese. Novos comunicadores das periferias parecem ser os mais bem sucedidos criadores de conteúdo online no país.

Pense no Whindersson, que apareceu recentemente no topo da lista dos maiores influenciadores do Brasil, acima de apresentadores e atores da “mídia tradicional”. Ele foi criado em Bom Jesus, interior do Piauí, e hoje lota estádios de todas as capitais brasileiras com seu show solo de comédia stand-up. Observe atentamente a plateia da gravação de seu DVD em Salvador: em sua maioria parece ser formada por gente que não costuma frequentar teatro, uma novidade no show business brasileiro. Está ali para ouvir um monólogo que mistura observações de cultura tradicional nordestina com cultura pop de jogos eletrônicos e mangás japoneses, um mash-up de referências que são sempre pensadas, em ambientes acadêmicos, como mundos sem conexão.

Outro exemplo importante: Kondzilla é hoje um dos principais empresários de música e audiovisual no país. Seu canal no YouTube tem mais de 20 milhões de assinantes. O conjunto de vídeos ali publicados já acumulou mais de 7 bilhões de visualizações. Nenhuma outra empresa da mídia brasileira tem o mesmo tipo de sucesso online, construído na marra, inventando estratégias de viralização originais. Kondzilla tinha apenas 18 anos quando, com o dinheiro do seguro recebido após o falecimento de sua mãe, comprou sua primeira câmera de vídeo e começou a publicar clipes de MCs do funk santista e paulistano na internet. Vários outros fenômenos das periferias das grandes cidades brasileiras, do tecnobrega paraense ao sertanejo do Centro-Oeste, tiveram trajetórias semelhantes, abrindo caminhos em nova realidade diante da qual grandes gravadoras fracassaram.

Mas claro: tudo isso acontece utilizando plataformas de novas grandes corporações, em nuvens que não habitam céus brasileiros. Continuamos totalmente dependentes de tecnologia estrangeira para estabelecer links entre produtores e público.

*****

Também considero tímidas as tentativas de reflexão crítica sobre essa situação por parte das ciências sociais brasileiras. Há esforços isolados, aqui e ali. Pouca continuidade entre as tentativas, que surgem e desaparecem ao sabor de mudanças das políticas científicas e institucionais.

Em 1995, fui convocado por Tadao Takahashi, então diretor da RNP (a instituição que criou a – e ainda cuida da – espinha dorsal da internet brasileira, na época com sede carioca numa sala de fundos do IMPA), para organizar seminário “sobre aspectos sócio-culturais da internet no Brasil”. Chamei meus colegas antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Jayme Aranha Filho para me ajudar na tarefa. Eram tempos bem “ingênuos”: não havia ainda internet comercial no país. Para quem não era de universidade e governo, a única porta de entrada para a rede era uma ONG, o Ibase. A RNP imaginava que haveria tempo para planejar qual seria a melhor maneira da abertura comercial. O seminário aconteceu nos dias 28 e 29 de agosto daquele ano, no auditório do LNCC. Pouco tempo depois, o ministro Sérgio Motta autorizava a criação de provedores, que gerou um boom (a internet era o único futuro para tudo) que não deu muito em nada.

Se não fosse o esforço pessoal do Jayme Aranha Filho provavelmente o material do seminário estaria perdido. Os anais podem ser lidos neste link e retratam tentativa de estabelecimento de diálogo entre cientistas sociais e “das exatas” que não teve sequência realmente consistente e profunda, mas que agora em tempos de IA deveria ser considerado prioritário.

*****

Sou antropólogo. Os antropólogos são seres estranhos, escolheram trabalhar não com big data, mas com small data: nosso método principal de pesquisa é o “trabalho de campo”, imersão por período longo de tempo na vida cotidiana de um grupo pequeno de pessoas, mesmo quando estudamos em grandes cidades, com suas culturas complexas e heterogêneas. O contato face a face é a ferramenta principal para nossas melhores descobertas. Obviamente um olhar big data pode nos ajudar em várias tarefas (até porque podemos pensar a cultura como a primeira inteligência artificial) – um dos aspectos mais fecundos da reflexão antropológica vem de seu pendor comparativo, quando estabelecemos conexões entre costumes de muitas culturas diferentes (fico imaginando se a IA ajudaria Lévi-Strauss na investigação sobre seus mitemas). Porém, é preciso desconfiar de gente que tenta nos vender a ideia de que tudo agora será resolvido com machine learning.

Aprendi a cultivar essa desconfiança com um sociólogo, para muitos o maior sociólogo americano vivo. Tive a enorme sorte, a partir da apresentação de Gilberto Velho, de ter Howard S. Becker como orientador no ano que passei com bolsa sanduíche na Northwestern University, entre os créditos e a defesa de tese do meu doutorado. Howie, como exige ser chamado pelos estudantes, se tornou um de meus principais interlocutores para conversas nas quais o tema principal era tecnologia, pois sempre esteve atento aos avanços de várias áreas ciberculturais, como comprova o texto pioneiro que escreveu sobre o hipertexto (e sua amizade com Michael Joyce) ou o outro sobre novas mídias e a web.

Quando cheguei na Northwestern, fiz, com Howie e o saudoso Dwight Conquergood, um curso sobre performance e ciências sociais. Não era teoria: em todas as aulas tínhamos que fazer performances artísticas baseadas em textos de sociologia e antropologia. Mas ele insistiu que eu me inscrevesse também no curso do professor Charles Ragin, que envolvia estatística pesada (hoje o trabalho de Ragin é bem conhecido pelo uso inovador que faz dos “fuzzy sets“, que também têm aplicações bem curiosas no campo da IA). Portanto, não pensei duas vezes antes de mandar para o Howie, em 2008, um dos primeiros artigos que li sobre pesquisas big data nas ciências sociais.

Eu tinha ficado empolgado com a abertura de novas possibilidades para nosso trabalho. Achei que meu orientador americano, hipster de 80 anos, vibraria também. A primeira mensagem de volta, sempre recebida com rapidez impressionante, foi uma ducha de água gelada. Howie dizia que não tínhamos conjuntos de dados massivos sobre as coisas que realmente nos interessam pesquisar. O exemplo que me deu era sobre o livro que estava escrevendo na época, em parceria com Robert Faulkner, que agora já foi publicado como “Do you know…?“, sobre como músicos que nunca antes trabalharam juntos decidem repertórios para tocar na noite ou em festas. Não há banco de dados com todas as música tocadas nessas ocasiões. Não interessa a ninguém e seria muito caro criar esses bancos de dados.

Insisti, maravilhado com a riqueza dos outros bancos de dados que estariam sendo formados a partir da interação de milhões de pessoas nas redes sociais então nascentes. Cito a resposta quase completa (pedi autorização, era apenas um email pessoal) para não ser infiel a nenhuma sutileza do argumento (palavras para mim fundamentais não apenas para cientistas sociais, mas para qualquer uso de big data):

I’m always a little (more than a little, really) suspicious when someone tells me about a way to find out all the things that fieldworkers are really interested without having to do all the work that it usually requires. In this case, everyone (not just you!) is telling me that I don’t have to do anything, the internet and social networking sites and so forth are more or less automatically accumulating mountains of information about all the things I’m interested in and it’s there for the taking. There’s usually a catch in all this, which is that there’s data about some things and not about others, and it’s only human to say to yourself, “Well, I might as well look at what’s available and see what we can do with that,” instead of saying, “Here’s what I’d like to know about, does this material tell me about that or not?”

To take what’s on my mind right now, which is the repertoire, the songs musicians play when they get on the bandstand, let’s even imagine that some site would accumulate information about all the music that anyone, anywhere, anytime is playing and has played, and who played it and in what kind of setting, etc. What would still be missing is the interchange among the players that led to them playing just those songs, and that’s the part that we’re convinced is crucial. The rest is interesting, nice and even helpful to know. But what tells the story decisively is what they talk about as they negotiate things.

Claro, há sempre a possibilidade – digamos que não temos mais custos de armazenamento – de gravar em vídeo 3D ou traquitana semelhante todas as negociações. Mas – e aqui eu Hermano acrescento – isso seria como o mapa de Borges, que fica inútil por ser do tamanho do território, ser uma cópia exata do território que queríamos representar. Teríamos que enviar antropólogos para fazer trabalho de campo nessa “second life” (antes que vire cartografia despedaçada, apodrecendo no “deserto do real”). Ou ensinar uma IA a ter olhar antropológico e mesmo os anthropological blues de Roberto da Matta. É isso realmente o que queremos? Podemos criar também IAs antropólogas brasileiras?

*****

Há uma maneira brasileira de pensar? Conseguiríamos aqui construir uma inteligência artificial realmente outra, alienígena para padrões dominantes, ou fora do projeto Putin de dominação mundial? O Brasil não acabou? Por que insisto nessa ideia de que o Brasil tem algo de original para propor para o mundo? A realidade recente toda não me contradiz?

Sou insistente, repetitivo, não consigo sair desse loop… Quando Cláudio Pinhanez me convidou para o colóquio da IBM brinquei com ele: temos que inventar uma inteligência artificial antropófaga, ou tropicalista. Lembrei os aforismos do Manifesto de Oswald: “nunca fomos catequisados, fizemos foi o carnaval”. E o carnaval é sim uma outra forma de inteligência, bem artificial. Mais um aforismo, este mais adequado ao tema em questão: “nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”. Há inteligência artificial ilógica? Outra lembrança: admitimos sim, entre nós, o nascimento da lógica paraconsistente de Newton da Costa, e que poderia nos guiar no caminho para uma IA brasileira ambígua, não entre o sim e o não, mas acreditando piamente no sim e no não, tudo ao mesmo tempo agora, uma outra lógica talvez também chinesa (lembremos que – como Gilberto Freyre sonhava – o Brasil é a China Tropical).Uma IA que talvez nos ensine a lidar com a mistura não apenas como entropia, e sim como um sinal de que nada é puro. Pensar a bagunça, na bagunça – isso não deveria ser considerado tarefa impossível para seres inteligentes.

Outro caminho: fazer a IA virar escritora fan fiction de Guimarães Rosa (via também Eduardo Viveiros de Castro) se metamorfoseando em IA onça, não humana. Gosto da ideia de Close AIs e Far AIs. Quanto mais longe a gente conseguir ir, melhor, mais surpresas. Ir além de Wittgenstein: se um leão falar, vamos dar um jeito de entender o que ele diz. Remixagem xamânica de “formas de vida”, algumas naturais  (mas nem todas humanas), outras artificiais. Navegando contra a (in)sensatez de John Searle, seguindo trilha multinaturalista: pensamento é um só, corpo e perceptos/afectos são múltiplos. Ou não. Vamos descobrir. Ou não tão longe: que tal uma IA que fale as quase 200 línguas indígenas ainda vivas no Brasil? Sei que as IAs ainda engatinham no português. Mas por que se contentar com pouco?

*****

Durante o período em que fazia pesquisa em busca do que falar no colóquio da IBM, ouvi – como faço religiosamente – vários episódios do podcast do meu amigo Erik Davis. Foi assim que descobri o pensamento de Ken Goldberg. Não parei mais de devorar, como uma onça, suas ideias, que saio por aí replicando memeticamente. O texto que escreveu para o Wall Street Journal é um bom resumo. Gosto especialmente – eu empenhado deleuziano – de sua ordem para esquecermos a Singularidade e pensarmos a multiplicidade. Não um algoritmo único no final da História. mas um enxame de sistemas cognitivos, baseados em uma matilha de modelos diferentes, junto com humanos e outras formas de vida, não guerreando pela dominação total/mundial, mas estabelecendo múltiplas formas de colaboração entre si.

Assim, guiado por Ken Goldberg, cheguei ao conceito (já patenteado!) de random forest, ou florestas randômicas (explicação simples neste podcast). Tudo por aí me atraí, e tento juntar com o que acho interessante quando penso em IAs brasileiras: não um monólito 2001, copiado igual em todo o universo, mas um conjunto fuzzy de fragmentos muito diversos, cada um com sua experiência, e a soma das experiências produzindo um carnaval, ou carnavais. Mandei o artigo do Ken Goldberg para o Eduardo Viveiros de Castro. Ele me respondeu, sintético e preciso: “Sobretudo temos de colocar a floresta literal nesta multiplicidade… Fazer o salto, da Amazon à Amazônia…”

*****

Minhas melhores descobertas de livros não acontecem com o uso dos algoritmos da Amazon. Foi numa estante de livraria tradicional que encontrei “La France contre les robots” de Georges Bernanos. Contém textos escritos por volta de 1945, quando estava exilado no Brasil, cuidando de uma fazenda em Barbacena. Fiquei fascinado, imaginando Bernanos no seu cavalo, indo todo dia da fazenda para um café na cidade, onde escrevia em francês seus sermões desancando os imbecis. Digo isso como introdução pitoresca para citar um trecho que agora, com a IA, faz novo sentido: “O perigo não está nas máquinas, senão deveríamos realizar o sonho absurdo de destruí-las pela força, à maneira dos iconoclastas que, espatifando as imagens, pensavam aniquilar também as crenças. O perigo não está na multiplicação das máquinas, mas no número incessantemente crescente de homens habituados, desde sua infância, a desejar apenas aquilo que as máquinas podem dar.”

Lembrei-me então de outro europeu aqui exilado, o português Agostinho da Silva, em suas entrevistas publicadas no livro “Vida conversável”, que é um dos meus favoritos, sempre na cabeceira. Não era contra as máquinas. Achava que deveríamos prestar homenagens ao parque industrial que pode contribuir para a “libertação do homem”, se bem utilizado. Acreditava que a economia global já produz o suficiente para um regime de renda universal, onde só trabalharia quem quiser e gostar daquele trabalho específico. Mas o professor Agostinho da Silva escreveu o seguinte: “Nunca ninguém enamorado do imprevisível conseguiu construir uma máquina.”

Então com essa mistura improvável de Georges Bernanos com Agostinho da Silva ficam aqui minhas sugestões para um projeto realmente original de IA brasileira: vamos imaginar outros desejos, múltiplos? E outras máquinas que nos presenteiem com o imprevisível? Máquinas que produzam as transformações desejadas por Gilberto Gil em “Cibernética“, canção dos anos 1970:

Onde lia-se alfândega leia-se pândega
Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá

LKJ

21/03/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 20/03/2015

Linton Kwesi Johnson (LKJ) se apresenta hoje no festival Back2Black. É sua primeira vez em palco carioca. Portanto: noite de gala. Não se atrase no trânsito de sexta-feira na Barra. O show começa às 21 horas, antes de Planet Hemp e Damian “Jr. Gong” Marley. Prepare seu corpo (incluindo o cérebro) para ser massageado pelo dub da banda de Dennis Bovell acompanhando a voz grave e a poesia  de LKJ. Será ocasião rara para contato imediato com um dos trabalhos mais criativos das artes atuais.

Para quem gosta de credenciais: sua poesia foi premiada com o Golden PEN, honraria concedida para seleto grupo de escritores que inclui Harold Pinter e Doris Lessing. Também foi o segundo poeta vivo – e o primeiro poeta negro – a ser publicado na série Modern Classics da editora Penguin. Seus discos são igualmente considerados clássicos. Por exemplo: o site AllMusic  elege “Forces of Victory” (1979) “um dos mais importantes discos de reggae já gravados”. Na minha opinião, qualquer coletânea de grandes sucessos de LKJ deveria figurar entre os melhores disco de todos os tempos e todos os estilos. Sempre preciso reescutar “Making History” para entender as transformações do mundo. Mesmo com décadas de vida, os poemas/letras continuam urgentes, e o instrumental produzido por Dennis Bovell tem som de futuro.

Poesia e música estão plenamente integradas nas obras de LKJ, em termos estéticos e políticos (inclusive na indumentária, de extrema elegância, estilo PhD da rebelião). Tudo ali é radical, no melhor sentido. Por isso é interessante acompanhar sua entrada no “cânone”, para desconforto de muitos ocidentalistas que não suportam nem os primeiros acordes de “Inglan is a Bitch”. “Inglan” é a grafia de patuá jamaicanos para “England”. “Bitch” ainda precisa ser traduzida por palavrão ou, depois de tantos anos de funk carioca, “cachorra” dá conta do recado? Existe ousadia maior que um imigrante dando lições com tal autoridade moral para sua ex-metrópole?

A trajetória biográfica de LKJ, e de sua parceria com Dennis Bovell, reflete as sucessivas reviravoltas daquilo que foi o Império Britânico ou, generalizando, a Civilização Ocidental. Nascido na Jamaica, imigrou para a Inglaterra com 11 anos para se encontrar com a mãe que já trabalhava em Londres (Dennis Bovell nasceu em Barbados e foi para o Reino Unido com 12 anos). Morou no bairro de Brixton, caldeirão étnico, território de conflitos com frquente violência policial, inspiração para várias de suas poesias. Cursou sociologia no Goldsmith College. Teve contato intenso o braço britânico dos Panteras Negras e com o coletivo da revista “Race Today”, pioneira na análise política do racismo contemporâneo, e que publicou pela primeira vez seus poemas.

Na mesma época os jamaicanos criavam o reggae, e a nova música cruzou rapidamente o Atlãntico, emplacando vários sucessos nas paradas inglesas. Em 1970 Dennis Bovell, que também foi DJ no clube Metro, já tinha formado o grupo Matumbi, e nos anos seguintes vai inventando maneiras de produzir um dub cada vez mais pesado, sofisticado, vanguardista. Quando LKJ e Dennis Bovell começam a lançar discos juntos, nasce a “poesia dub”, levando as experiências dos DJs jamaicanos (viva U-Roy!) para outros territórios estéticos e outras militâncias políticas. O resto é História, com H maiúsculo, que continua no Rio esta noite.

*****

Nota familiar: uma das maiores façanhas dos Paralamas do Sucesso foi juntar as vozes de Tom Zé e LKJ na faixa “Navegar impreciso” do álbum “Severino” (1994). A letra, em português e inglês, lamenta a atitude de um Portugal seduzido pela Comunidade Econômica Europeia, na época fechando as portas para imigrantes (muitos dentistas!) brasileiros. Apesar de tudo, havia carinho (assumidamente ingênuo) na acusação. Herbert me contou que LKJ, depois de gravar sua surpreendente participação (nossa admiração por ele era imensa – era tanta nobreza artística que ele parecia inacessível), comentou que gostaria que o mundo mudasse para poder escrever algo com sentimento semelhante para a Inglaterra. Não deve ter sido exatamente isso o que ele ou Herbert disseram, mas é assim quero guardar na memória. O mundo mudou muito de lá para cá? Neste século outros “riots” tocaram fogo nas ruas londrinas, muito parecidos com os de Brixton, décadas atrás. Portugal é que vive o fim do sonho do Euro. E talvez agora tenha oportunidade de se descobrir africano. Tema para conversa com José Eduardo Agualusa e Ângelo Kalaf (os melhores “lusófonos” que há), também no Back2Black, antes do show de LKJ.

*****

Mais familiar ainda: parabéns para minha mãe, que hoje completa 80 anos.


%d blogueiros gostam disto: