Archive for the ‘turismo’ Category

tudo punk-dominado

06/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24-09-2010

Duas semanas atrás, em  Londres. Tudo punk-dominado: impossível, com olhar atento/”antenado”, circular pelos arredores chiques de New/Old Bond Street sem encontrar algum vestígio da influência cada vez mais consolidada que Vivienne Westwood exerce em certa cultura contemporânea. Os folders de suas novas coleções ordenavam em letras garrafais: “Compre menos”. Havia uma exposição de seus sapatos na loja de departamentos Selfridges. As vitrines da Lee traziam o lançamento de jeans com sua assinatura. E dentro do Palácio de St. James, residência real, na Garden Party organizada pelo príncipe Charles, Vivienne Westwood era a curadora de moda. Apenas Vivienne Westwood não. O material de divulgação do evento a tratava por Dame Vivienne Westwood, título ainda de alguma nobreza que recebeu em 2006.

Nada mal para alguém que inventou, junto com seu marido Malcolm McLaren e o designer situacionista Jamie Reid, o estilo visual e indumentário dos punks. Ou que, ainda no início dos anos 80, dizia fazer “moda de confrontação” e declarava: “Tenho uma visão política da moda: é uma maneira de contestar o sistema.” Interessante encontrá-la agora no núcleo duro do “sistema”, entronizada nas lojas mais comerciais e aliada de um príncipe que não esconde uma visão artística tradicionalista, vide seus ataques a toda tentativa de construção de edifícios de arquitetura (pós)moderna em Londres. Mudou o sistema ou mudou Vivienne Westwood?

A Garden Party do príncipe Charles não era uma festa qualquer, sem causa. Havia uma isca: os jardins cheios de História dos palácios Clarence House, St. James, Marlborough House e Lancaster House, geralmente cercados por forte aparato de segurança, estavam abertos para a população plebéia. Claro, era preciso pagar as libras da entrada, mas, repetindo a propaganda, por uma boa causa: o dinheiro arrecadado seria aplicado em alguma iniciativa ecologicamente correta de Sua Alteza. Muitos debates, shows, exposições de projetos que nos incentivavam a poupar energia, deixar de viajar, não desperdiçar nada e até plantar a própria comida seguindo o exemplo da horta orgânica cultivada ali mesmo pelo Príncipe de Gales.

Confesso que fico sempre meio apavorado nesses ambientes verdes, achando que sou culpado pelo fim do mundo. Também tenho implicância com a idéia de que a Natureza é boazinha e que tudo que é artificial faz mal. Mesmo assim consegui me divertir nos jardins reais, descobrindo gente bem maluquinha, não apenas velhinhas fazendo bolsas com o tecido das cortinas velhas dos palácios. Como o  pessoal de moda reunido pela curadoria da Dame Vivienne Westwood. Tenho certeza que suas criações vão ser cada vez mais presentes em qualquer passarela: o pessoal do coletivo Noki House of Sustainability, a atriz Emma Watson (Hermione nos filmes de Harry Potter) agora também eco-designer, ou a estilista Orsola de Castro, líder do movimento do “upcycling”, o termo fashionista para reciclagem.  Mas em nenhum momento deixava de causar estranheza a presença de idéias até bem extremistas em local tão “estabelecido”.

O ar estranho dos tempos, onde está tudo – conservadores e vanguardas – junto e misturado, ficou mais denso quando entrei, bem do lado dos palácios, no prédio do Institute of Contemporary Arts (ICA), ocupado pelos russos do Chto Delat?, coletivo ou “plataforma” formado por artistas, filósofos, críticos e escritores que tentam fundir teoria política, arte e ativismo. (E quando lembramos do poder que magnatas pós-Perestroika, como Roman Abramovich, exercem hoje em Londres – do futebol do Chelsea ao circuito de arte, isso para falar só na “superestrutura”… – tudo fica ainda mais pesado e animado.) Chto Delat? pode ser traduzido como Que Fazer?, título do livro de Lênin, que trata das “questões palpitantes  do nosso movimento”. O pessoal do Chto Delat? faz muitas coisas bem palpitantes: vídeos, instalações, performances, um jornal, seminários etc. Para Londres prepararam várias ações diferentes que poderão ser acompanhadas online até 24 de outubro.

Assisti o final de um seminário que durou 48 horas. Os participantes tinham mesmo que ficar 48 horas juntos, inclusive comendo e dormindo juntos nas galerias do ICA. Terminou com uma performance brechtiana. O tema era “Que lutas temos em comum?”, tudo comandado por Olga Egorova, artista que cria umas roupas filosóficas (a que mais gostei era um vestido com a seguinte declaração bordada, estilo Leonilson, no peito: “acordo às 6 para ler Hegel”). No palco, divididos, dois grupos: os artistas e os ativistas. Atrás deles um coro cantando hinos comunistas. Os artistas recebem convite para exposição patrocinada por uma grande corporação, os ativistas fazem campanha contra a aceitação do convite. Na platéia, a Liga dos Trabalhadores Culturais Revolucionários protesta: tudo aqui seria uma farsa ingênua, promovida com dinheiro público inglês.

No final, palmas, risos – obviamente nenhuma conclusão. Sigo dali para a festa de 16 anos da Rinse FM, rádio que era pirata e comemorava sua oficialização recente no dial londrino. A programação era também extremista: dubstep, UK funky, grime. Muito subgrave esquisito. Na fila da entrada, mais de três mil garotos normais, nada esquisitos. De volta à contradição dominante: a contestação no poder, o choque e o banal de mãos dadas. Mundo complexo este “nosso”.

mais Cingapura

04/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 10-09-2010

Sempre me surpreende a repercussão desta coluna. Assuntos que esperava poderem causar debates acalorados são recebidos com silêncio intrigante. Divagações ultrapessoais que pensava não interessar a mais ninguém geram um bombardeio de comentários. Como meu texto sobre Cingapura. Depois da minha introdução de semanas atrás, recebi dezenas de pedidos de dicas de viagem. Resolvi dar aqui uma resposta coletiva, que pode motivar também boas explorações virtuais, via fotografias 360 graus do Google Earth ou sites devidamente “linkados” abaixo. Boa viagem!

Uma primeira parada obrigatória, ao chegar em território cingapuriano, é a BooksActually, situada nas ruas hoje chiques, atrás de Chinatown. Na conversa com os vendedores dessa livraria totalmente independente, ligada em novidades locais, será possível ter um panorama do que mais interessante acontece no país em matéria de exposições, festas, peças e shows, além de comprar livros, discos e filmes lançados por editoras pequenas, que não têm seus produtos distribuídos em outras lojas.

Andando entre suas estantes, o visitante logo percebe um barulho estranho no ambiente. Quem é novo de idade não vai conseguir descobrir o que é. Quem tem mais de 30, vai desconfiar dos seus sentidos, até ter certeza: aquilo é som de máquina de escrever. Sim, várias pessoas trabalham na BooksActually datilografando trechos de livros em cartões ou na capa de cadernos criados em papel especial e depois vendidos pela editora da casa. É algo como um culto ao vinil, à fita cassete ou ao super 8. Nostalgia da pré-história da mídia, encanto por velhas máquinas e tecnologias. Descobri logo que a livraria era parte de uma rede de coletivos, espalhados pelo mundo, que têm obsessão comum não apenas por datilografia mas por técnicas de imprensa da época de Gutenberg, incluindo o cheiro de tinta “vintage”. Ali na loja, fui transportado da Ásia para Sintra, Portugal, através das publicações do pessoal do Serrote, sobretudo os exemplares da série Cadernos, com capas imitando padronagem de toalhas de mesa ou de floppy discs, todos produtos de uma impressora Heidelberg do tempo do ronca. É tão retrô que parece o futuro.

De volta à Cingapura e ao presente, próxima da livraria, se o visitante tiver sorte, ainda vai encontrar aberta a loja, sem nome (como convém hoje a tudo esquisito, “de guerrilha”, ou “pop-up”), que vende roupa de novos estilistas suecos e música tão experimental, mas tão experimental que nunca vi anunciada nem na revista The Wire. O local também funciona como sede de uma empresa de design responsável pela Chocolate Research Facility, cadeia que vende barras de chocolate de cerca de 100 sabores diferentes (incluindo uma com recheio de durian, fruta adorada por locais e que estrangeiros consideram ter gosto de putrefação), com embalagens de vanguarda.

Ao lado das compras, comida é outro passatempo preferido em Cingapura. Há de tudo, incluindo culinária molecular. Mas obviamente o mais recomendado é se esbaldar com a variedade asiática, principalmente em termos de comida de rua, fresca, feita na hora. Para faciltar nossa vida surgiu a Food Republic, idéia matadora de qualquer fome, que certamente virará império global. É uma megareunião, tipo praça de alimentação de shopping, de antigos vendedores ambulantes (thai, coreanos, indianos, indonésios etc.), tudo limpinho e com controle de qualidade. Experimente a culinária peranakan, com sua mestiçagem chino-malaia.

Se exagerar na comida o bom é passar em alguma filial da Eu Yan Sang, antiga loja de ervas de Chinatown, que agora atende até no aeroporto Changi ou no shopping Paragon, do lado da Gucci. Quem teve a felicidade de ser tratado pelo Mestre Liu, medico chinês que morou em São Paulo, sabe o que vai encontrar por lá: aquela combinação de raízes, folhas e, sei lá, cauda de escorpião que faz um bem horrível. Mas na Eu Yan Sang tudo agora vem em doses certas, sacos hermeticamente limpos, prontos para uso. Se você for exigente mesmo, pode escolher entre uma variedade incrível de ninhos de pássaros que custam uma pequena fortuna.

Dá para visitar quase tudo isso andando. Cansou? Você pode descansar vendo o último sucesso do cinema tâmil perto da Little India, ou encarar um narguilé no fumódromo-espécie-de-Baixo-Gávea ao redor da mesquita Sultan, em Kampong Glam, ou se entregar aos cuidados de um dos massagistas da cadeia Kenko, espécie de McDonald’s da reflexologia. Ou melhor, no Kenko mesmo, pode experimentar o cibercafé, twittando à vontade com os pés dentro de uma água cheia de ervas e centenas de peixinhos que fazem massagem sublime no dedão.
Já cheguei ao fim da coluna e nem falei ainda de dois de meus restaurantes preferidos, o Din Tai Fung ou Ci Yan Organic Vegetarian Health Food (que apesar do nome não tem nada de moderno: parece que você está comendo no refeitório de um mosteiro – não tem nem site próprio…) Não haverá espaço para escrever sobre a coleção do Museu das Civilizações Asiáticas, nem sobre nenhum dos templos de reza obrigatória. Também não vou conseguir introduzir a história subterrânea do seu punk-rock-local, nem o cinema de Eric Khoo. Fica para alguma próxima coluna, se os leitores novamente exigirem.


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