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noites de maio

16/05/2018

Continuando a celebrar o pensamento alegre de Clément Rosset: há 10 anos ele publicou um livrinho de menos de 40 páginas chamado “A noite de maio“. Tudo começou com um sonho tido numa noite de maio de 2007, no qual chegava em Nice de avião, vindo de Paris, e ia direto para a casa de Agnès Varda (várias interrogações aparecem no texto, ao lado desse nome – não fica claro se Clément Rosset a conhecia na “vida real”). Lá descobre que terá que fazer uma palestra sobre o desejo. Sua primeira reação foi entrar em pânico, pois não tinha nada preparado para falar. Outra pessoa o acalma sugerindo um roteiro: seria preciso dizer que o desejo é algo muito complexo, citando Proust, passando por Deleuze e terminando com Balzac. Ao acordar, Clément Rosset começou imediatamente a escrever o texto do livro baseado nas instruções que recebeu no sonho.

Óbvio, o início é a madeleine de Proust, detonadora de um prazer “extraordinário” e “delicioso”. Mas “sem noção de causa”, pois não estava relacionado com um único acontecimento, ou objeto, mas sim com uma experiência múltipla, uma pluralidade de emoções experimentadas em Combray. Nenhuma alegria é solitária, sempre vem acompanhada. Nunca podemos descobrir o que sozinho nos deixou alegre. Há em cada momento alegre uma aprovação geral da existência. Pois, afirma Clément Rosset, como uma onça de Guimarães Rosa: “Se eu estou feliz é porque tudo vai bem e porque tudo é bom; se estou feliz mas ao redor desta felicidade certas coisas não estão indo bem, é porque eu não estou.” Gosto dessa radicalidade, dificílima, que vai contra tudo o que parece em voga hoje, quando perdemos mundos a cada dia.

Indo adiante, com coragem: alegria e desejo são “termos complementares”, que estabelecem entre si uma “quase-identidade” – o que se diz de um se pode também dizer do outro. Então uma pessoa alegre é uma pessoa que deseja, e “no limite deseja tudo”. Uma pessoa deprimida chega a não desejar nada. Ou deseja uma coisa só, como ideia fixa, que pode desaparecer a qualquer momento. Boa lição: “o objeto desejável só é desejado quando acompanhado da perspectiva, mesmo fugaz, de uma multidão de outros objetos desejáveis”. E ainda: “ele é móvel, sem conseguir parar em lugar nenhum, como o mercúrio.” O desejo é necessariamente plural.

Esses são elementos importantes para uma também (ou talvez ainda mais) mercurial teoria da identidade, ou da ausência/impossibilidade de identidade, proposta por Clément Rosset, onde eu quero chegar. Mas fica para um outro post, talvez em outra noite deste maio.

Clément Rosset

02/05/2018

Na capa da edição mais recente da Philosophie Magazine, há chamada para uma “homenagem excepcional de 14 páginas” para Clément Rosset. Inocente, fiquei me perguntando: o que ele fez para merecer tal honraria? Abri a revista e logo descubro chocado: morreu. No dia 27 de março. Como não soube disso antes? Acho que nenhum jornal brasileiro deu a notícia. Via Google, chego a obituários em jornais franceses, espanhóis, um argentino. A resenha de livro (já) póstumo publicada no “Le monde” tem o título perfeito: “Clément Rosset deixou o paraíso”. Sim, ele sempre reafirmava: não existe paraíso depois da vida; o paraíso é aqui: “aquilo que é mais antigo, em mim, é a alegria de viver, a alegria quase miraculosa de existir.” Claro que não é bobo alegre, pateta: “‘Alegria’ e ‘trágico’ são duas palavras para dizer a mesma coisa.” Ou: “a alegria e o sentimento do trágico são indissociáveis.” Ou ainda, mais didaticamente: “O ponto de partida de minha filosofia é a consciência do trágico da existência: tudo vai desaparecer, a morte nos envolve e nós estamos ameaçados por nossa própria inconsistência. Ou recusa-se o trágico e a morte. Por essa recusa do trágico, portanto do real, paga-se muito caro. Inversamente, a capacidade de se admitir a parte trágica do real é para mim a pedra de toque da saúde moral e da alegria.” E para evitar deturpações: “Ser realista, em política, não significa ser conservador ou reacionário. Eu penso apenas que só há o real e que é a partir dele que é preciso trabalhar, e não a partir da concepção ilusória de um mundo perfeito, se nós queremos ter a chance de produzir melhorias.”

Parece fácil, mas não é. É preciso muita força, constante exercício, para encarar o mundo (o real, sempre aleatório e irracional) como ele é, sem anteparos tranquilizantes de “duplos” e ilusões, ou sem cair na tentação do niilismo e da ausência de desejo. Ser alegre é trabalho pesado cotidiano, que precisa do acompanhamento implacável de mestres. Então, como Clément Rosset nos abandona, logo agora, quando tudo ao redor fica mais terrível, cansativo, desestimulante, quando produzir alegria exige muito mais energia e colaboração?

Percebo, no trabalho de luto, como Clément Rosset me acompanhou em todos meus afazeres, como grande mestre, mas de maneira silenciosa. Acho que nunca foi citado neste blog. Não aparece na bibliografia dos meus livros. Porém, de certa forma, tudo que pensei gira em torno de seus ensinamentos, de sua alegria contagiante (li alegre quase todos os seus livros de 1980 para cá). Fui mais fundo na pesquisa em meus escritos, espantado com essa ausência nunca antes constatada, e acabei encontrando seu nome e suas palavras na minha dissertação de mestrado. Por algum motivo, essa passagem – que defendia o direito de fazer festa por nada, sem motivo-consequência, e contra tudo – desapareceu na hora da publicação no livro “O mundo funk carioca”. Chegou a hora de reaparecer:

“a alegria é, na sua definição mesma, de essência ilógica e irracional. Se pretendesse ser séria ou coerente, a ela faltaria para sempre uma razão para ser que fosse convincente ou simplesmente assumida e enunciável. A língua corrente fala melhor disso que pensamos geralmente quando diz “louca alegria” ou declara que alguém está “louco de alegria”. Expressões semelhantes não são apenas imagens; ela exprimem a verdade mesma: só há alegria louca – todo ser humano alegre é necessariamente e a sua maneira irracional.”


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