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jogo de multidão

25/02/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24/02/2012

O carnaval passou e continuo aqui com o meu samba de uma nota só sobre direito autoral. Estou empacado, tipo bloco “Concentra mais não sai”. Até agora, depois de três textos, não saí da introdução. Direito autoral é assunto complexo, talvez o mais importante para a produção cultural contemporânea. Por isso precisa ser debatido sem pressa. Não há respostas prontas ou fáceis para os desafios que a digitalização impôs, de forma avassaladora, para a relação criadores/público/mercado/mídia. Nenhuma das experimentações em andamento parece indicar solução duradoura. Ainda vamos ter que conversar muito para chegar a novos arcabouços jurídicos ou modelos de negócio que aproveitem o melhor da situação atual. Já repeti várias vezes: deixamos a economia da escassez, o que é ótimo. Mas não descobrimos como viver com tanta abundância criativa.

Resumo o que escrevi nas colunas passadas com uma citação do discurso que Victor Hugo fez para o Congresso Literário Internacional de 1878: “O princípio é duplo, não o esqueçamos. O livro, como livro, pertence ao autor, mas como pensamento, ele pertence – e a palavra não é bastante ampla – ao gênero humano. Todas as inteligências têm direito sobre ele. Se um dos dois direitos, o direito do autor e o direito do espírito humano, precisa ser sacrificado, esse será, certamente, o direito do escritor, pois o interesse público é nossa preocupação única, e todos, eu o declaro, devem passar antes de nós.”

Ao fazer minha tradução macarrônica, percebi que tais palavras podem soar mais radicais do que meu pensamento sobre o assunto, que prega apenas o equilíbrio entre domínio público e direito do autor, pois um precisa do outro para se enriquecer (nos vários sentidos, não apenas econômico, do enriquecimento).  Imagino que Victor Hugo concordaria comigo. Tanto que, parágrafos atrás dessa declaração bombástica, ele deixava claro que o direito autoral era um progresso: “Todas as velhas legislações monárquicas negaram e ainda negam a propriedade literária. Com que objetivo? Com o objetivo de escravização. O escritor proprietário, é o escritor livre. Retirar sua propriedade, é retirar sua independência.”

Pena que nada é tão simples assim. Recentemente, Eduardo Viveiros de Castro me apresentou o trabalho de Alexandre Nodari, que escreveu excelente dissertação de mestrado em Teoria Literária, intitulada “a posse contra a propriedade – pedra de toque do Direito Antropofágico”, sobre a “poética do grilo” a partir do pensamento de Oswald de Andrade. Nodari lembra, em vários de seus textos, que a noção de autor (e a obrigatoriedade de todo texto ter um autor responsável) surgiu também como estratégia da Inquisição para combater o anonimato que protegeu muitos defensores do livre pensamento na Idade Média, aqueles que se identificados terminariam na fogueira.

Foi momento fascinante na história, como sempre cheio de contradições (uma mesma inovação pode ser usada por forças democratizantes e reações totalitárias, como tanta coisa na internet hoje em dia). Junto com o autor, aparecem também a arte tal qual conhecemos hoje, com artistas assinando seu trabalho, que deveriam ser sempre originais, diferentes de tudo que apareceu antes. Essa busca incessante do novo, que nos parece tão natural, nem sempre foi característica de produção cultural anterior ou de outras culturas.

Outro dia, folheando as primeiras páginas da “História ilustrada do vestuário”, lançado no Brasil pela PubliFolha, me deparei com a seguinte informação: “As vestimentas egípcias mantiveram-se relativamente inalteradas entre 3.000 a.C. e 1.550 a.C.” Como assim: quase um milênio e meio com a mesma roupa?! Para nossa sensibilidade pós-moderna, acostumada a mudanças a cada Fashion Week, e que execra estilistas que “se repetem” ou “copiam outros autores”, é visceralmente impossível entender um povo tão avesso a mudanças. Hoje vivemos ansiosos à procura do último grito, que deve ser sempre diferente dos gritos das temporadas passadas.

A vitória da internet veio criar novo combustível para nossa ansiedade. Talvez acabemos por descobrir que o reino do autor original foi um período “fora de série” da história. Não estou dizendo que voltaremos a ser egípcios, com a calmaria do “mesmo” por séculos, mas sim que haverá tantas micronovidades, descentralizadas, e sem autoria determinada, que dará no mesmo: será impossível identificar “escolas”, ou “vanguardas” que se sucedem umas às outras, impulsionadas por seus líderes geniais. Há um novo modo de relacionamento com a produção cultural como um todo, e essa (e não a pirataria) é a principal causa da crise da indústria do entretenimento (que precisava de autores, originalidade e novidade – em número reduzido a cada estação – para sobreviver). Arte virou jogo de multidão.

Os desenvolvimentos recentes da saga “Ai se eu te pego” continuam a me iluminar. Agora, na “origem”, apareceram as meninas paraibanas que teriam composto o refrão dentro de um avião com destino a Disney. Na outra ponta, o arte-educador sergipano Zezito de Oliveira me mostrou, via comentário no Overmundo, a versão “Ai, não nos calam” com a qual o coletivo português Revoluvideo convoca participantes para manifestação antidesemprego. Que tipo de legislação de direito autoral pode lidar com essa nova realidade de apropriações constantes, sem início ou ponto final? Mais reflexões na próxima sexta-feira.