texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/11/2012
“Arto Lindsay é tipo o Picasso da guitarra rítmica.” Gostaria de assinar essa frase. Mas seu autor é Glenn O’Brien, que na época escrevia a coluna Beat na revista Interview ainda editada por Andy Warhol. Glenn é um liquidificador furioso de referências díspares e mestre de afirmações estonteantes, mas invariavelmente verdadeiras. Sobre o DNA, grupo de Arto fundador da No Wave (estilo cuja influência estética é cada vez maior): “banda soul biometálica cubista.” Sobre Arto letrista: “ele está em algum lugar entre Tristan Tzara [o poeta dadaísta] e Johnny Mercer [autor de “Moon river”].” Sobre o Arto cantor: “ele está em algum lugar entre Yma Sumac [a diva peruana que se dizia princesa inca] e Hoagy Carmachael [mais conhecido como compositor de “Stardust”].”
Citei tudo isso para acordar o leitor. Sou menos criativo. Começaria este texto de forma sóbria, repetindo o que escrevi aqui três semanas atrás: Arto é nosso melhor embaixador. Deveria ter cargo vitalício no Ministério das Relações Exteriores. Seus serviços prestados para a divulgação da modernidade brasileira pelo mundo afora têm valor incalculável. Agora, pós-Brics, é bem mais fácil vender nossa cultura no exterior. Brasil, de Hélio Oiticica ao tecnobrega (o DJ alemão Daniel Haaksman – outro bom embaixador – acaba de lançar coletânea desse gênero amazônico na Europa, repetindo a estratégia abre-alas que usou para seu CD pioneiro de funk carioca fora de nossos bailes), é “cool”. Até outro dia, nossa imagem – quando havia alguma – era exótica. Arto me dizia: “tento mostrar que Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Nelson Rodrigues são nomes centrais, e não periféricos, na arte moderna mundial.”
A credibilidade que Arto tinha (e continua a ter) na cena de vanguarda de Nova York (onde trabalhou com “todo mundo”, de Jean-Michel Basquiat a John Zorn), e depois de Berlim (onde colaborou com os dois Heiner, Muller e Goebbels) ou Tóquio (onde colaborou com Ryuichi Sakamoto ou com trilhas dos desfiles da Comme des Garçons) fazia com que suas lições brasileiras fossem levadas a sério (convencendo até Laurie Anderson a participar de espetáculo sobre Carmen Miranda), abrindo cada vez mais espaços para visões menos estereotipadas sobre nosso país. Suas intervenções por aqui, de produções de discos de Marisa Monte ao desfile carnavalesco organizado em Salvador em parceria com Matthew Barney e o Cortejo Afro, levaram suas atividades de mediador para outro patamar, contribuindo para cada vez mais saudáveis questionamentos sobre a localização das fronteiras entre o nacional e o global.
Quando fiquei fã do DNA (como Lester Bangs, eu queria ver essa banda tocando no Madison Square Garden), não sabia que Arto tinha conexão brasileira. Ele mesmo me contou sobre sua infância pernambucana quando nos encontramos no Rio, no início dos anos 80. Ficamos amigos (Arto me apresentou a muitos de seus amigos, como Caetano), mas permaneci tiete. Seus discos solos, com usos surpreendentes de percussão brasileira ou eletrônica pós-hip-hop sob melodias de pop perfeito, continuam a me maravilhar. Permaneço também aluno do Arto pensador/radar daquilo de mais interessante que acontece no planeta (este ano, por exemplo, ele já trabalhou até com o cineasta Apichatpong Weerasethakul na Tailândia). Tenho interesse especial em ideia que Arto vem desenvolvendo com a produção de paradas/procissões/passeatas/desfiles artísticos (já aconteceram em Veneza e Los Angeles, entre outras cidades). O Brasil tem longa tradição, desde o Triunfo Eucarístico colonial, de colocar arte para andar na rua. Gostaria de ver um dos desfiles de Arto em nosso solo.
Temos a sorte de ter Arto morando no Rio. Sua lista atual de atividades com base carioca impressiona: disco duplo (um CD retrospectivo com o melhor dos discos solos e outro CD ao vivo, com registro dos shows com voz e guitarra – o próximo será realizado hoje no New Museum em Nova York); participação na exposição com curadoria Hans Ulrich Obrist na casa de Lina Bo Bardi, em São Paulo; produção do disco novo da banda Tono; produção de DVD do Ilê Aiyê; reapresentação do desfile “Somewhere I read”, com música tocada em telefones celulares, na Noruega; reapresentação do projeto “36 years in 1 night”, inspirado em “Simão do deserto” de Buñuel (cada músico na sua torre de cinco metros com seu próprio sistema de som e um arrastão de 60 adolescentes) em Bolonha; planejamento de curadoria de um projeto de instalações e performances no Inhotim. Ufa! Mesmo assim, tenho a impressão que não estamos aproveitando devidamente a presença do Arto na cidade. Ele tem muito mais o que fazer por aqui.