Posts Tagged ‘Arto Lindsay’

paradas do Arto

01/12/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/11/2012

Arto Lindsay é tipo o Picasso da guitarra rítmica.” Gostaria de assinar essa frase. Mas seu autor é Glenn O’Brien, que na época escrevia a coluna Beat na revista Interview ainda editada por Andy Warhol. Glenn é um liquidificador furioso de referências díspares e mestre de afirmações estonteantes, mas invariavelmente verdadeiras. Sobre o DNA, grupo de Arto fundador da No Wave (estilo cuja influência estética é cada vez maior): “banda soul biometálica cubista.” Sobre Arto letrista: “ele está em algum lugar entre Tristan Tzara [o poeta dadaísta] e Johnny Mercer [autor de “Moon river”].” Sobre o Arto cantor: “ele está em algum lugar entre Yma Sumac [a diva peruana que se dizia princesa inca] e Hoagy Carmachael [mais conhecido como compositor de “Stardust”].”

Citei tudo isso para acordar o leitor. Sou menos criativo. Começaria este texto de forma sóbria, repetindo o que escrevi aqui três semanas atrás: Arto é nosso melhor embaixador. Deveria ter cargo vitalício no Ministério das Relações Exteriores. Seus serviços prestados para a divulgação da modernidade brasileira pelo mundo afora têm valor incalculável. Agora, pós-Brics, é bem mais fácil vender nossa cultura no exterior. Brasil, de Hélio Oiticica ao tecnobrega (o DJ alemão Daniel Haaksman – outro bom embaixador – acaba de lançar coletânea desse gênero amazônico na Europa, repetindo a estratégia abre-alas que usou para seu CD pioneiro de funk carioca fora de nossos bailes), é “cool”. Até outro dia, nossa imagem – quando havia alguma – era exótica. Arto me dizia: “tento mostrar que Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Nelson Rodrigues são nomes centrais, e não periféricos, na arte moderna mundial.”

A credibilidade que Arto tinha (e continua a ter) na cena de vanguarda de Nova York (onde trabalhou com “todo mundo”, de Jean-Michel Basquiat a John Zorn), e depois de Berlim (onde colaborou com os dois Heiner, Muller e Goebbels) ou Tóquio (onde colaborou com Ryuichi Sakamoto ou com trilhas dos desfiles da Comme des Garçons) fazia com que suas lições brasileiras fossem levadas a sério (convencendo até Laurie Anderson a participar de espetáculo sobre Carmen Miranda), abrindo cada vez mais espaços para visões menos estereotipadas sobre nosso país. Suas intervenções por aqui, de produções de discos de Marisa Monte ao desfile carnavalesco organizado em Salvador em parceria com Matthew Barney e o Cortejo Afro, levaram suas atividades de mediador para outro patamar, contribuindo para cada vez mais saudáveis questionamentos sobre a localização das fronteiras entre o nacional e o global.

Quando fiquei fã do DNA (como Lester Bangs, eu queria ver essa banda tocando no Madison Square Garden), não sabia que Arto tinha conexão brasileira. Ele mesmo me contou sobre sua infância pernambucana quando nos encontramos no Rio, no início dos anos 80. Ficamos amigos (Arto me apresentou a muitos de seus amigos, como Caetano), mas permaneci tiete. Seus discos solos, com usos surpreendentes de percussão brasileira ou eletrônica pós-hip-hop sob melodias de pop perfeito, continuam a me maravilhar. Permaneço também aluno do Arto pensador/radar daquilo de mais interessante que acontece no planeta (este ano, por exemplo, ele já trabalhou até com o cineasta Apichatpong Weerasethakul na Tailândia). Tenho interesse especial em ideia que Arto vem desenvolvendo com a produção de paradas/procissões/passeatas/desfiles artísticos (já aconteceram em Veneza e Los Angeles, entre outras cidades). O Brasil tem longa tradição, desde o Triunfo Eucarístico colonial, de colocar arte para andar na rua. Gostaria de ver um dos desfiles de Arto em nosso solo.

Temos a sorte de ter Arto morando no Rio. Sua lista atual de atividades com base carioca impressiona: disco duplo (um CD retrospectivo com o melhor dos discos solos e outro CD ao vivo, com registro dos shows com voz e guitarra – o próximo será realizado hoje no New Museum em Nova York); participação na exposição com curadoria Hans Ulrich Obrist na casa de Lina Bo Bardi, em São Paulo; produção do disco novo da banda Tono; produção de DVD do Ilê Aiyê; reapresentação do desfile “Somewhere I read”, com música tocada em telefones celulares, na Noruega; reapresentação do projeto “36 years in 1 night”, inspirado em “Simão do deserto” de Buñuel (cada músico na sua torre de cinco metros com seu próprio sistema de som e um arrastão de 60 adolescentes) em Bolonha; planejamento de curadoria de um projeto de instalações e performances no Inhotim. Ufa! Mesmo assim, tenho a impressão que não estamos aproveitando devidamente a presença do Arto na cidade. Ele tem muito mais o que fazer por aqui.

barulho diferenciado

10/11/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/11/2012

João Cabral de Melo Neto revela, em poema publicado na seção “Linguagens alheias” do livro “Agrestes”, entre “Debruçado sobre os cadernos de Paul Valéry” e “O último poema” (há versos mais punks?), algo que “contam de Clarice Lispector”. Conto novamente: uma conversa entre amigos, com “dez mil anedotas de morte”, é interrompida pela chegada de outros amigos “vindos do último futebol”, com comentários que refaziam o jogo “gol a gol”. Clarice espera educadamente (educação pela pedra) a animação futebolística esmorecer e faz seu pedido: “Vamos voltar a falar na morte?” Parece, por linhas bem tortas, o que aconteceu nesta coluna: interrompi a conversa sobre nosso país (segundo Brian Eno) para falar na morte de Luis Alberto Spinetta. Agora retomo: vamos voltar a falar no Brasil?

Percebo que o Brasil, também com milhares de anedotas, é meu assunto preferido, ao qual sempre volto. Mesmo quando meu tema era rock argentino, na verdade eu estava falando no nosso país, “fechado demais”. Ou grande demais, um vasto mundo, cercado – lá bem longe – por um deserto dos bárbaros (entre eles, os que nos vendem iPads). Nosso problema não seria complexo de vira-latas, e sim excesso de autoestima (inventamos até o orgulho de ser mestiço – rótulo para aqueles que não têm raça pura, isto é, os vira-latas). Meu defeito também: acredito piamente (mesmo rindo dessa crença) que podemos dar jogo de cintura para o resto do mundo, fazendo chover havaianas coloridas nas areias escaldantes para além de nossas fronteiras nacionais.

Por isso, minha fixação com as roupas de penas que Brian Eno usava na época do Roxy Music. O fato de aquele estilo espalhafatoso (os ingleses dizem “flamboyant”) ser visto com embaraço, ou como piração juvenil, me entristece, ou que torna o mundo mais triste. Passamos a viver sob uma ditadura de um bom gosto minimalista de chatice avassaladora. Tudo é contido, clean, “sofisticado”. Mesmo a contestação política tem bom design, e as passeatas parecem desfiles de Ricardo Tisci. O Brasil não pode entrar nessa onda para ter assento no conselho de segurança artística mundial. Como disse Oswald de Andrade: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.” Logo agora que somos “potência”: parar (o Carnaval) por quê?

Arto Lindsay, nosso melhor embaixador (ainda vou escrever texto só sobre sua obra aqui nesta coluna), já enfrentou sérios problemas buscando traduzir o Brasil moderno para o mundo, sem cortar nossos excessos para tornar nossa imagem mais aceitável para padrões elegantes dominantes. Colaborei com a montagem de seu espetáculo sobre Carmen Miranda para o festival Next Wave da Brooklyn Academy of Music, quartel general do bom gosto “radical”. Acabou que minha principal função foi acompanhar Aurora Miranda na coxia, para passar o texto (“Eu beijei o Mickey Mouse.”) antes de sua entrada no palco. Foi assim que escutei umas diretoras do festival furiosas com a atuação de Regina Casé (pareciam as gralhas que adoram atacar Regina nas “redes sociais” com os mesmos argumentos caretas) ao lado de Laurie Anderson. Elas acusavam: over the top! Respondi, vermelho, com raiva, como se tivesse baixado em mim um Caetano “é proibido proibir”: “ela nasceu over the top e vai ser sempre over the top. O Brasil é over the top, Carmen Miranda era over the top! Vocês querem mergulhar Carmen em gel antisséptico para transformá-la em símbolo cool?”

Ainda não vi o documentário sobre Hélio Oiticica. Regina viu e me contou a reação de nossos amigos mais jovens que a acompanharam ao cinema. Ficaram chocados, assustados. Eles não conheceram Hélio ao vivo. Eu tive a sorte de encontrá-lo pessoalmente algumas vezes, incluindo a abertura daquela exposição no Hotel Meridien (acho que Lygia Clark também estava presente) e em algumas atuações explosivas em debates. Hoje, sinto no ar dos tempos minimalistas (nada contra Robert Morris) uma perigosa tendência: dar um banho de loja da Prada (e de Fundação Prada) em Hélio, tornando sua obra apenas chique, uma espuminha de culinária pós-molecular a ser servida em vernissages com a presença de François Pinault ou Bernard Arnault (feio o pedido de cidadania belga para fugir de impostos franceses – mas o mundo das artes “radicais” adora gente rica, agora também gente rica brasileira, e não liga para esses tipos de deslizes). Há colecionadores que prefeririam que Hélio tivesse parado nos metaesquemas, tão mais vendáveis, não é mesmo?

O mundo não é perfeito, limpinho: Hélio preferiu ocupar o MAM com a escola de samba da Mangueira. Um barulho louco. Talvez a missão do Brasil agora seja fazer o mundo não dormir com um barulho diferenciado do nosso tamanho.

Julian Dibbell

23/04/2011

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15/04/2011

Julian Dibbell, segundo Caetano Veloso, é jornalista “que sabe muito sobre música popular brasileira – e tem uma visão muitas vezes original e sempre inteligente sobre o tema”. O elogio, em “Verdade tropical”, se referia especificamente ao artigo de 1988 e do Village Voice, onde Julian caracterizava “João Gilberto como o Elvis do Brasil”. A afirmação, feita “quase em tom de brincadeira”, se revelava como “imediatamente rica de estímulos para uma mente brasileira.” Minha amizade de quase três décadas com Julian sempre teve este efeito sobre minha mente: incentivo poderoso para enxergar o Brasil e o mundo de forma renovada. Minhas descobertas são sempre mais alegres quando compartilhadas com (ou estimuladas pelo) Julian. Para mim, nada de melhor se pode viver com um amigo.

Aquele Julian que comparou João Gilberto e Elvis parece personagem de outra encarnação, na qual poderia ter sido importante brasilianista ou crítico musical. Eu o conheci quando era um daqueles estudantes estrangeiros que a PUC recebe no Rio. Impressionava seu português (costumo dizer, sem brincadeira, que meu português é pior que o dele), aprendido por acaso com professor mórmon que deu aula de graça na sua “high school”. Causava também espanto seu conhecimento sobre a música brasileira dos anos 60, muito antes do tropicalismo virar moda mundial com o empurrão de David Byrne (que, levado por Arto Lindsay, apareceu uma vez na minha casa, quando Julian era meu hóspede. Byrne, pouco depois de ser capa da Time, estava lançando True Stories no Rio. Arto me apresentou Byrne e Caetano. Julian e Beth Nolasco me apresentaram Arto – eu era fã de sua banda DNA mas não sabia de suas conexões brasileiras, descobertas quando Julian o entrevistou para seu – e de Joe Levy, que depois foi editor da Rolling Stone – fanzine Nadine, publicado em Yale. Como já repetiu Caetano: este mundo é um pandeiro.)

Descobrimos, eu e Julian, o cyberpunk ao mesmo tempo. Ele leu meu exemplar de “Neuromancer”. Julian voltou para os EUA no final dos anos 80 e, por cartas, começou a me falar sobre as maravilhas da internet. Encontrei o Alternex, do Ibase, que era a única porta de acesso – fora de governo e poucas universidades – à internet no Brasil. Deixamos o papel de lado para trocar mensagens por email, que naquela época exigia a memorização de dezenas de comandos Unix. Também nos encontrávamos virtualmente no LambdaMoo, um bisavô do Second Life que funcionava só com texto, pois a web ainda não fora inventada. Apesar do novo tipo de proximidade, senti que os computadores podiam nos afastar. Julian trocou de avatar: parou de escrever sobre música e o Brasil, e virou pensador/desbravador da vida on-line.

Em 1993, ainda no Village Voice, apareceu “Rape in cyberspace”, artigo hoje clássico para os estudos sobre a internet, falando sobre a confusão virtual/real dentro do LambdaMoo. Esse texto se tornou o primeiro capítulo do seu livro “My tiny life” e mote para muita coisa que publicou nos anos pioneiros da revista Wired. Julian foi mergulhando cada vez mais no mundo ciberespacial, e chegou a se tornar – na vida real – comerciante de itens de games on-line, com os quais ganhou quase tanto dinheiro quanto como jornalista, experiência narrada no livro “Play money”, cuja sequência foi reportagem na China – para o New York Times – sobre as “gold farms”, lugares onde garotos trabalham em regime de semi-escravidão produzindo dinheiro de jogos virtuais, depois convertidos em dinheiro real.

O feitiço brasileiro não iria deixar Julian escondido em algum lugar obscuro da rede, fora do nosso alcance. Há até uma lenda de que ele teria sido um dos maiores responsáveis pela disseminação do Orkut no Brasil. Não foi bem assim: entrei no Orkut a convite do pessoal da Insite paulistana (que tinha algum contato interno no Google – acho que foi ali que a onda brasileira do Orkut começou). Não sei se mandei convite para o Julian ou se o encontrei depois por lá. Sua contribuição para o ciberespaço brasileiro foi menos apoteótica, mas talvez mais decisiva. Gil iria fazer sua primeira viagem como ministro para a Midem, feira da indústria fonográfica. Descobri que John Perry Barlow, autor da “Declaração de independência do ciberespaço”, faria palestra no evento. Pedi ajuda a Julian, que colocou Gil em contato com Barlow.

Na época, Julian dava aula com Lawrence Lessig, do Creative Commons, em Stanford. Pouco tempo depois os dois mais Barlow e Gil participaram de um seminário sobre direito e internet organizado no Rio por Ronaldo Lemos e a FGV. Meses adiante, eu estava com Julian em São Paulo, entrevistando José Serra sobre patentes e genéricos e em seguida, ciceroneados por Sérgio Amadeu e João Cassino, visitando telecentros, para uma matéria da Wired que foi lançada com show pró-Creative Commons, de Gil e Byrne, em Nova York.

Lembrei de tudo isso ao ver a palestra (vimeo.com/21964000) que Julian deu em Copenhagen na semana passada, sobre games e morte. Reflexão mais uma vez original e estimulante, complexificando a relação entre computadores (a metafísica/máquina de Alan Turing) e violência. Devemos aproveitar suas últimas incursões nessa área. Ainda este ano, Julian vai abandonar o tecnojornalismo por uma pós-graduação em Direito. Nova mutação em sua carreira. Tomara que o Brasil o encontre novamente, logo mais, à frente.


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