Posts Tagged ‘Buda nagô’

Dorival Caymmi e a medicina da alma

07/06/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06/06/2014

Ainda é tempo de celebrar o centenário de Dorival Caymmi. Gilberto Gil, na canção “Buda nagô”, afirma que Dorival é, entre muitas outras coisas, índio. Então faço um remix Gil & Jorge. Pego “todo dia era dia de índio” e decreto: “todo dia é dia de Dorival”. Deveríamos acordar sempre, todo dia, não só em 2014, cantando Dorival.

Participei de entrevista com Dorival quando ele fez 80 anos. Havia redes no cenário. Chegando ao local da gravação, Dorival comentou, incomodado: “sempre pensam que vivo deitado numa rede.” Não vivia: ele passou grande parte de sua vida como cidadão de apartamento de Copacabana. Contradição? Só na cabeça de quem o imaginava isolado em aldeia de pescadores sem contato com a modernidade. Volto a “Buda nagô”: “Dorival é impar / Dorival é par”.

Por um período, eu passava frequentemente na calçada de seu prédio de Copacabana. Era muito bom encontrá-lo na janela, olhando o movimento da rua cosmopolita, com a atitude de quem estava numa pacata cidade do interior. Aquela visão iluminava meu dia. Fazia questão de cumprimentá-lo (“oi Dorival”), como se Copacabana fosse Itapuã, nos anos 1940. Tudo para ver, com os olhos bem abertos, a Copacabana do presente. O título do livro de Antonio Risério sobre Dorival é “Caymmi: uma utopia de lugar”. Encontrar Dorival na janela tinha o efeito de medicina para minha alma: transformava Copacabana, com sua beleza e seu caos, em utopia imediata.

Dorival é grego, é romano. Suas canções podem ser ouvidas como máximas de Epicuro, como cartas de Sêneca. Nada disso é garantia de felicidade geral, eu sei. E reaprendi essa lição trágica em cada página de “Medicina da alma – artes do viver e discursos terapêuticos”, livro precioso do filósofo (e também iniciado nos mistérios do samba) Paulo Henrique Fernandes Silveira. Pré-socráticos, platônicos, epicuristas, estóicos, céticos, cínicos: aquele momento do pensamento humano foi pródigo em experimentações com “pharmakon” (veneno/remédio) de todas as espécies. Paulo Henrique mostra como filósofos tentam ocupar o lugar do “therapeutés” (palavra que significa “aquele que trata ou cuida de outrem, mas também aquele que cultua os deuses”). Adianto logo a conclusão: “Independente das divergências entre as várias escolas, certos princípios norteiam as ‘therapeíai’ de que tratamos aqui. Talvez o mais importante seja a busca da autossuficiência (‘autárkeia’).” Dorival sereno na janela de Copacabana era a imagem mais justa dessa autossuficiência, como uma antena transmitindo tranquilidade para o mundo.

Na entrevista dos 80 anos, ao escutar a pergunta “quando fica triste, o que faz para recuperar a alegria?” ele respondeu “eu nunca fico triste”. Insistimos: “mas quando a tristeza vem lá longe?” Bem melhor que Prozac (será que algum psiquiatra ainda receita Prozac? saiu de moda?): “tomo água”. E começou a elogiar o azul do plástico das garrafas de água mineral, e depois o azul do papel que antigamente embrulhava as maçãs nas barracas das feiras livres. Não era um devaneio tolo. Havia bom humor budista ali, de contato radical com a realidade.

Exercício para guerreiro de Chögyam Trungpa: “Para começar, temos de olhar a realidade doméstica: as facas, os garfos, os pratos, o telefone, a lavadora, as toalhas – as coisas triviais. Nelas não há nada de místico ou de extraordinário, mas, sem um vínculo com as situações triviais, cotidianas, sem examinarmos a vida diária, nunca encontraremos nenhum senso de humor, nenhuma dignidade ou, em última instância, nenhuma realidade.” Porém, isso tem mais a ver com trecho de carta de Sêneca, que trata da futilidade de planejar o futuro: “Como fugiremos dessa inquietação? De um único modo: não deixando a vida depender do futuro, reconduzindo-a sobre ela mesma. […] Como a inconstância e as mudanças do acaso poderiam perturbar aquele que permanece estável na instabilidade?”

Permanecer estável na instabilidade. Ímpar/par. Lição da medicina da alma greco-romana. Lição de Dorival Caymmi, um dos melhores brasileiros de todos os tempos (incluindo os vindouros), cantando suas canções perfeitas, bebendo água azul, na janela de seu apartamento de Copacabana, dando outro rumo para a agitação da realidade.

*****

Ilan Waisberg, artista plástico que também faz trabalhos de cibermarcenaria (lembram canções de Dorival?), ao ler minha coluna (sobre o erro) da semana passada, gentilmente me mandou a seguinte citação de seu grande mestre Montaigne (Dorival francês?): “Sinto-me muito mais orgulhoso da vitória que obtenho sobre mim quando, no ardor mesmo do combate, deixo-me curvar sob a força do argumento de meu adversário do que me sinto gratificado pela vitória que obtenho sobre ele devido a sua fraqueza.” Palavras do lado bom da força.