Posts Tagged ‘cafe tacuba’

rezo por ele

03/11/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 02/11/2012

Luis Alberto Spinetta morreu no dia 8 de fevereiro. Peço desculpas pela notícia atrasada. Só soube dela recentemente. Os jornais brasileiros ignoraram o que aconteceu. Perdemos um dos principais artistas surgidos aqui neste canto do planeta, a América do Sul. Um anjo, de carne e osso. Por isso, neste Dia de Finados, interrompo a reflexão sobre o Brasil a partir do meu encontro com Brian Eno, e rezo por Spinetta. Também em retribuição a todas as vezes que ele rezou por nós. Spinetta, com Charly García, compôs “Rezo por vos”, uma das canções mais tristes e duras que já ouvi. “Rezo, rezo, rezo, rezo / Morí sin morir / Y me abracé al dolor / Y lo dejé todo por esta soledad.”

Impressionante o tempo que fiquei sem saber que ele partiu nos deixando sozinhos por aqui. Durantes anos li os suplementos No, do jornal Página 12, e Si, do Clarín, buscando novidades da cultura jovem argentina e latino-americana, tentando loucamente estabelecer pontes entre lá e cá. Desisti? Preciso reconhecer que minhas forças não são as mesmas. Unir o continente é missão quixotesca. Pouca gente no Brasil parece interessada nisso. Somos país fechado demais.

Lembro os dias de 1997 que passei em Porto Alegre como curador do festival MTV Tordesilhas. Andei pelas ruas da cidade com o pessoal das bandas Café Tacuba (México – que acaba de lançar “O objeto antes chamado disco” – o melhor título de todos os tempos?), Aterciopelados (Colômbia), Los Tres (Chile) e Illya Kuriaki and The Valderamas (Argentina – que tem Dante Spinetta, filho de Luis Alberto, como componente), todos juntos e misturados, em momento de pico criativo. Não havia música mais potente sendo produzida no mundo. Mas aquilo parecia segredo nosso, bem particular. Os gaúchos, que imaginávamos ser o público mais receptivo no Brasil para esse tipo de experiência, não apareceram no Gigantinho, o ginásio onde o festival foi realizado, mesmo com Paralamas e Skank tocando no mesmo palco (duas bandas que lotavam sozinhas outros shows na cidade).

Lembro também do tempo em que Charly Garcia morou em Copacabana, tentando encontrar algum canal de comunicação com o público brasileiro. Nossos encontros pelas ruas do Rio não eram interrompidos por ninguém. Era como se eu estivesse acompanhado por um anônimo, um total desconhecido. Pouco tempo depois, quando encontrei Charly numa esquina de Buenos Aires, tivemos logo que nos esconder no primeiro bar, pois na calçada era impossível dar dois passos sem autógrafos ou declarações de amor de fãs enlouquecidos (mesmo um motorista de caminhão que passava do outro lado daquelas largas avenidas), uma devoção que nunca vi igual diante de músicos brasileiros. Era como se o voo Galeão-Ezeiza me transportasse para Alma Ata no Cazaquistão, ou lugar semelhante com o qual temos quase nenhum intercâmbio artístico.

Mesmo Fito Páez, quando chega por aqui, ainda precisa ser apresentado com o autor daquela música cantada pelos Paralamas ou por Caetano. Será que um dia vai poder ser apenas Fito? Utopia? Não sei mais o que fazer para que isso aconteça.

Foi Fito quem me apresentou à obra de Spinetta. Os dois gravaram juntos o disco “La la la”, que tem versões fulminantemente belas para “Parte del aire” e “Gricel”. Fiquei fascinado com a outra voz, com maneirismos semelhantes aos que já tinha ouvido no disco “Giros”, de Fito, a obra que abriu meus ouvidos para a música contemporânea argentina. Não sabia quem tinha influenciado quem. Só depois descobri que Spinetta, considerado pai do rock argentino, era grande ídolo de Fito. Fui atrás de seus discos, uma coleção imensa deles, e até hoje ainda tenho alguns de seus álbuns para escutar pela primeira vez (não escuto todos de propósito, para ter sempre algo “inédito” no futuro).

Spinetta se tornou conhecido como integrante da banda Almendra, no final dos anos 1960. Seu primeiro LP sempre aparece na lista dos melhores do rock argentino. Ali já está anunciada toda sua carreira, mesmo o flerte sério com o jazz e a música eletrônica, na qual vira e revira a tradição da canção, como se fora um Chico Buarque (em fase Guinga) que ama Beatles, Rolling Stones e Beach Boys. Escute “Laura va”, desse LP “Almendra” (1969), ou “Lago de forma mia”, do CD “Pelusion of milk” (1991). Tudo é frágil, parece que vai se desmanchar no ar, parece que aquela sofisticação melódica vai dar em beco sem saída, mas milagrosamente tudo se salva com um simples “oh”.

Sensação muito estranha: para o Brasil, é como se Spinetta não tivesse vivido. Agora, depois de sua morte, rezo para possa um dia nascer em nosso imaginário com – assim termina “Rezo por vos” – “amor sagrado”.

Ordem unida: “Ya no pienses mas que tu angel partió”.

reggaeton

02/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27-08-2010

Calle 13, dupla de rap/reggaeton, vem tocar no Brasil agora em setembro. Bateu por aqui uma inveja do bem. Há anos venho tentando emplacar seu nome na escalação de algum dos festivais em que trabalhei como curador. Sou fã tanto da poesia do cantor Residente, nome de guerra de René Perez Joglar, quanto da  arquitetura sonora e batidas de Visitante, Eduardo José Cabra Martinez – os dois nascidos em San Juan, Porto Rico. Já gostava das músicas que ouvia no MySpace, mas a Calle 13 me ganhou de vez quando vi algumas apresentações ao vivo que apareceram no YouTube: a dupla vira banda, ou melhor, vira uma grande orquestra latina, pós-hip-hop, com sopros, percussão e um balanço caliente para mesmo tradicionalistas da salsa não botarem defeito. Foram totalmente merecidos os dez Grammys Latinos e os dois Grammys americanos conquistados até agora.

Acompanho a apropriação do rap americano e do dancehall jamaicano por músicos de lingua espanhola desde o final dos anos 80. Participei da criação de Baila Caribe, série exibida na MTV, para a qual entrevistei os pioneiros do Latin Empire nas ruas do East Village nova-iorquino, no início dos anos 90. Escutava muito El General, do Panamá, e depois o mix de merengue com rap e house do Proyecto Uno. Tudo isso foi se misturando e circulando pela América Latina – inclusive na Amazônia brasileira, onde se tornou elemento importante para a invenção do tecnobrega paraense. Mas por algum motivo foi em Porto Rico que a mestiçagem de ritmos produziu seu filho de mais sucesso, o reggaeton, com uma batida eletrônica contagiante, logo copiada pela garotada de todo o planeta.

2004 foi o ano em que o reggaeton deixou os bairros latinos e conquistou pistas de dança pelo mundo inteiro, inclusive no Brasil. O responsável foi o cantor/”rapero” Daddy Yankee, com seu hit Gasolina. Sua batida, conhecida como Dem Bow, serve de base para muitas versões locais. Já escutei reggaeton malaio, japonês, senegalês, e dá para sentir a sua influência no kuduro angolano, via rap lusitano ou zouk cabo-verdeano. Mesmo Cuba não resistiu aos encantos da batida porto-riquenha: o “reggaton a lo cubano”, ou simplesmente cubaton, virou a nova febre musical na ilha de Fidel e pode ser conferido em cubanflow.com. Outro bom site para entender toda essa trajetória, inclusive suas mais recentes hibridizações, é o blog do etnomusicólogo/DJ Wayne Marshall, co-editor do melhor livro sobre reggaeton. É lá onde tenho notícias sobre as evoluções mais recentes do dembow dominicano ou a fusão desse dembow dominicano com o bubblin’, equivalente do funk carioca inventado nos bairros negros/caribenhos das cidades holandesas (como me diz o DJ Diplo há vários anos: Amsterdam é a nova Londres).

No Brasil o reggaeton faz sucesso principalmente em encontros de som automotivo, carros transformados em equipes de som ambulantes, com subgraves literalmente arrasa-quarteirões, que azucrinam a vida de quem quer um domingo silencioso e sossegado em periferias de todas nossas cidades. Os Señores Cafetões, de Goiás, fazem sucesso por todo interior das regiões Sul e Centro-Oeste, com sua mistura de reggaeton e funk carioca. O MC Priguissa, do Rio Grande do Norte, também já mixou o dem bow com o batidão do Rio, e foi adiante com embolada nordestina e carimbó paraense. Já o MC Papo, de Minas Gerais, faz a crônica da vida em favelas/aglomerados de Belo Horizonte, do pixo ao churrasco na laje, passando pela pegação com as piriguetes.

As letras do reggaeton, no mundo todo, não são muito diferentes das do funk carioca ou do kuduro: o assunto principal é sexo e há duplos sentidos para todos os gostos. Nisso a Calle 13 é diferente, começando pelos nomes de seus integrantes, Residente e Visitante, óbvia referência à política de imigração do governo americano. O tom militante, sobretudo na defesa do movimento de independência de Porto Rico, é evidente. Já no seu primeiro disco havia a faixa Querido F.B.I., produzida e lançada nas trinta horas depois do assassinato de Filberto Ojeda Rios, líder de Los Macheteros, grupo revolucionário porto-riquenho, e distribuída de graça na internet. Essa postura deu para a dupla credibilidade artística e possibilidade de circulação – em grandes festivais pelo mundo afora (incluindo o Festival de Jazz de Nova Orleans e uma performance para mais de 500 mil pessoas em Cuba) e em colaborações com artistas de outros estilos como a canadense/portuguesa Nelly Furtado, os mexicanos “avant-roqueros” do Café Tacuba ou a “rapera” espanhola La Mala Rodrigues – que outras estrelas ligadas ao reggaeton, sempre consideradas comerciais-demais ou difusores de baixarias, nunca conseguiram obter. Por essa e por outras, estão vindo tocar o Brasil.

Ao que tudo indica, no Brasil a Calle 13 fará show só em São Paulo. É um bom motivo para ser visitante, como o Visitante, na capital paulistana. Podemos ir testando o som automotivo na Via Dutra.


%d blogueiros gostam disto: