texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 03/08/2012
Fui ver o Fausto de Sokurov. Não sei ainda o que penso desse filme. Não foi experiência chata (o que não seria problema; já fiz o elogio da chatice nesta coluna). A trama é até animada, com coisas chocantes o tempo todo – irresistível usar o lugar-comum: não dá tempo para o público respirar. Mas sei lá, perdi a paciência com cinema “de arte” (e Fausto quer ser arte desesperadamente, com muitas imagens “cabeças” e atores dando tudo de si…). Não acompanho a carreira dos novos diretores asiáticos, nem do cinema independente norte-americano. Vi muito Godard e Tarkovsky na minha juventude. As experimentações atuais parecem repetições fraquinhas do que já foi realizado com muito mais garra. Prefiro blockbusters, com multidões – algo que talvez não seja nem mais cinema. O “filme de arte” é como a canção segundo Chico Buarque: “Assim como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20.” Passou? Vai ser mercadinho de nicho, sem repercussões maiores na cultura contemporânea?
Procurei críticas sobre Fausto na internet. Encontrei artigo da Variety com fala do produtor Andrey Sigle. Ele revela que o filme obteve financiamento “depois da intervenção pessoal do primeiro-ministro Vladimir Putin”. O que vem a seguir é mais intrigante: “O filme é um grande projeto cultural russo e para Putin isso é muito importante. […] A Rússia não é apenas uma potência militar ou uma potência do petróleo e do gás, ela tem uma imensa tradição cultural e filme pode ajudar o povo europeu a ver melhor o rosto da Rússia.”
Poderia passar a coluna inteira comentando essa fala (inclusive sua fixação com a Europa, como se o resto do mundo não existisse, ou como se parte da Rússia não fosse Europa também). Porém, isso me fez deixar de lado a particularidade do caso Sokurov/Putin para ficar intrigado com a longa relação entre poder e cinema na Rússia soviética e pós-soviética.
Entre as boas surpresas do mercado de DVDs nacionais, há dois filmes que nos ajudam a entender de forma mais complexa a história do cinema russo (deixarei um terceiro, “A cor da romã”, para futura coluna só sobre Paradjanov). Não terei espaço para comentá-los devidamente neste texto. Quero apenas chamar a atenção seus lançamentos.
O primeiro é “Elegia a Alexandre”, de Chris Marker (que morreu esta semana; fará muita falta – quem cuidará do seu gato Guillaume-en-Egypte?), um tributo ao cineasta russo Alexandre Medvedkine, lançado na Coleção VideoFilmes. Na verdade, é um filme sobre crença, verdade e mentira, arte e poder, em tempos revolucionários ou não. Medvedkine foi chefe da propaganda do Exército Vermelho. Via no cinema ferramenta de educação para as massas. Alguém resumiu sua vida: “um comunista legítimo num país de comunistas que fingem ser comunistas” (estes denunciavam aqueles por não serem comunistas verdadeiros: em “Elegia” aprendi que Vertov chorou ao ser acusado de cosmopolitismo). Em busca de imagens também legítimas, Medvedkine criou o cine-trem, estúdio pop-up que percorria a União Soviética promovendo debates: filmava-se de dia, editava-se á noite e na manhã seguinte o resultado era exibido para quem foi objeto do olhar da câmera. “Ele não era um mentiroso”. “Todos acreditavam no partido”. Até que um dia todos saíram às ruas, derrubando estátuas de mitos comunistas, numa reação que as imagens de Marker mostram ter sido de exuberante alegria (verdadeira ou falsa?).
O segundo filme só coube numa caixa de 3 DVDs. É “Notícias da antiguidade ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital”, dirigido pelo alemão Alexander Kluge com base no projeto do russo Eisenstein de filmar “O Capital” de Marx seguindo a estrutura do “Ulisses”, do irlandês Joyce. É a Europa redevorando a ideia maluca russa (por sua vez produto da apropriação de ideia europeia), num caminho inverso ao de Sokurov filmando Goethe. O lançamento brasileiro foi iniciativa do coletivo Projeto Revoluções, que busca “recolocar os termos do político num mundo cuja sensibilidade é atravessada por imagens midiáticas”.
Conseguir passar pelos seus 492 minutos com atenção redobrada. Muitas anotações. Posso apenas citar duas. Primeiro, o sorriso da atriz (muito fofa) Sophie Rois, deslumbrada com a carga poética de trecho de Marx, que declarava os gregos como crianças normais. Segundo, o filósofo Peter Sloterdijk, falando de “O Capital” (uma fala de 46 minutos) como história teatral, onde a mercadoria está sempre disfarçada e tudo não é o que parece. O capitalismo como crença, o estado como fiador da crença, garantindo que a riqueza acumulada não vai evaporar do dia para noite.
“Todas as coisas são homens enfeitiçados.” Estranha crença para fundamentar o poder soviético, e seu cinema revolucionário. Estanho mundo o nosso, pós-Perestroika, com a Rússia tentando se aproximar da Europa, terra de Marx, com pacto com Fausto.