Posts Tagged ‘Chto Delat?’

minha (anti)ideologia

09/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22/10/2010

Entre as várias declarações inesquecíveis de Andy Warhol, gosto de citar esta aqui: “Não estou tentando educar as pessoas para verem coisas ou sentirem coisas em minhas pinturas; não há nelas nenhuma forma de educação.” Gosto sobretudo por encarnar uma contradição pessoal: Warhol continua sendo um dos meus mais exigentes educadores, com lições que marcaram profundamente a maneira como vejo o mundo ou como quero que o mundo seja. Foi isso que redescobri com a leitura de “Andy Warhol – o Gênio do Pop” (tradução torta, mas não absurda, para “Pop – the genius of Andy Warhol”), livro imagino que recém-lançado no Brasil, encontrado numa mesa de saldos da Livraria da Travessa.

É uma biografia dos anos mais importantes da carreira de Warhol, praticamente toda a década de 60, da sua entrada para mundo das galerias até o tiro de Valerie Solanas. Foi escrita por dois jornalistas mais ligados ao universo da música, Tony Scherman e David Dalton. Um deles, Dalton, foi fundador da revista Rolling Stone. A crítica do New York Times resume minha desconfiança ao ler essas informações na orelha, e depois o meu alívio ao reconhecer que tinha feito uma boa compra, apesar de impulsiva: “A idéia de dois connoisseurs do rock trabalhando na enésima biografia de Warhol não soa muito sedutora, mas eles de fato escreveram um livro excelente, um trabalho de grande clareza e concisão que dá novo frescor para Warhol (e os críticos de rock).”

Esse frescor não vem apenas de fofocas bem pesquisadas, várias delas reunindo até então muito esparsas informações sobre a vida sexual do biografado, ele mesmo um fofoqueiro convicto (“Uma das coisa que sempre gostei de fazer é ouvir o que as pessoas pensam uma das outras – você aprende tanto sobre a pessoa que fala quanto sobre a pessoa que está sendo esculachada. Isso é chamado fofoca, claro, e é uma das minhas obsessões.”) Mas confesso que não sou o melhor juiz para medir o grau de novidade de mexericos do meio das artes plásticas norte-americanas. Não sabia nem que Robert Rauschenberg namorava com Jasper Johns, formando casal abençoado por John Cage. Vivendo e aprendendo.

Para além dos detalhes apimentados, o que mais me interessou na biografia foi a quantidade exuberante de informações sobre o processo criativo de Warhol, com minúcias sobre a gênese das idéias que estão na base da maior parte dos trabalhos produzidos nessa época, das latas de sopa Campbell’s aos shows com o Velvet Underground. Se, mesmo para o samba, idéia é que nem passarinho (“é de quem pegar primeiro”), no Pop o ambiente incentivava constante criação coletiva, e o esvaziamento glamuroso da noção de autoria. Tudo bem assumido, com humor e densidade filosófica: “Eu nunca fiquei envergonhado ao perguntar para alguém, literalmente, ‘O que devo pintar?’ porque o Pop vem de fora”.

O gesto de Marcel Duchamp, que ainda produziu objetos únicos, entrou para a linha de produção de massa. Fazer mais do mesmo, como uma máquina, ou deixar que os outros cuidem do artesanato de cada obra, virou motivo de orgulho: “Eu fiz 50 telas com Elvis em um único dia!” A mesma coisa dita com outras palavras: “Todo mundo pode fazer o que eu faço.” Tudo fora. Plástico, artificial, não-original. Nada dentro. Ele mesmo dava a fórmula: “Se você quiser saber alguma coisa sobre Andy Warhol, olhe apenas para a superfície de meus quadros e filmes e de mim mesmo – e ali estou. Não há nada atrás disso.” No vazio, pop-zen, e no gosto pelas coisas do mundo (“tudo é bonitinho”) está a salvação. “Se eu vou me sentar e ver a mesma coisa que vi ontem, não quero que ela seja essencialmente a mesma – quero que seja exatamente a mesma. Quanto mais você olha para a mesma exata coisa, mais o sentido vai embora, e você se sente melhor e mais vazio.”

A estratégia de Warhol foi tão inteligente, e tão profissional, que a arte depois da Factory tem que partir de onde ele nos deixou, desamparados e iluminados no grande supermercado da vida, transformada num grande vazio, renovador da possibilidade de crítica. Qualquer ação artística que não leve esse golpe em consideração vira tentativa ingênua e burra de restauração de uma ordem caduca ou simplesmente fascista. Sempre considerei Warhol de esquerda, da melhor esquerda. Como lembra um componente do coletivo russo Chto Delat?: a pergunta da direita é “quem é o culpado?”, a da esquerda é “que fazer?”. O Pop, em seu momento de maior genialidade, era um plano de ação para um mundo sem nenhuma ilusão, sem boba “interioridade”, sem culpados (porque sem Culpa).

Fiquei animado ao reler essas coisas, parte essencial de minha (anti)doutrina, no meio desse tiroteio religioso-eleitoral, sob o qual o Rio vive um momento privilegiado em termos de exposições, com a série Apocalipse de Keith Haring (o melhor discípulo de Warhol junto com o Kraftwerk?) e William Burroughs (Warhol declarou querer viver dentro de uma cena de Naked Lunch) exposta até novembro, em algum lugar do Centro (a Caixa Cultural) entre o buraco na rede de pingue-pongue de Waltércio Caldas, os aviões-árvores de Nuno Ramos, as araras arrancadas da Tropicália de Hélio Oiticica (nunca mais penetraremos na obra completa?), o Islã do CCBB e qualquer mídia dos 2 RochaPittas. Muita coisa para fazer, e fazer novamente, para nos inspirar no dia da votação.

tudo punk-dominado

06/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24-09-2010

Duas semanas atrás, em  Londres. Tudo punk-dominado: impossível, com olhar atento/”antenado”, circular pelos arredores chiques de New/Old Bond Street sem encontrar algum vestígio da influência cada vez mais consolidada que Vivienne Westwood exerce em certa cultura contemporânea. Os folders de suas novas coleções ordenavam em letras garrafais: “Compre menos”. Havia uma exposição de seus sapatos na loja de departamentos Selfridges. As vitrines da Lee traziam o lançamento de jeans com sua assinatura. E dentro do Palácio de St. James, residência real, na Garden Party organizada pelo príncipe Charles, Vivienne Westwood era a curadora de moda. Apenas Vivienne Westwood não. O material de divulgação do evento a tratava por Dame Vivienne Westwood, título ainda de alguma nobreza que recebeu em 2006.

Nada mal para alguém que inventou, junto com seu marido Malcolm McLaren e o designer situacionista Jamie Reid, o estilo visual e indumentário dos punks. Ou que, ainda no início dos anos 80, dizia fazer “moda de confrontação” e declarava: “Tenho uma visão política da moda: é uma maneira de contestar o sistema.” Interessante encontrá-la agora no núcleo duro do “sistema”, entronizada nas lojas mais comerciais e aliada de um príncipe que não esconde uma visão artística tradicionalista, vide seus ataques a toda tentativa de construção de edifícios de arquitetura (pós)moderna em Londres. Mudou o sistema ou mudou Vivienne Westwood?

A Garden Party do príncipe Charles não era uma festa qualquer, sem causa. Havia uma isca: os jardins cheios de História dos palácios Clarence House, St. James, Marlborough House e Lancaster House, geralmente cercados por forte aparato de segurança, estavam abertos para a população plebéia. Claro, era preciso pagar as libras da entrada, mas, repetindo a propaganda, por uma boa causa: o dinheiro arrecadado seria aplicado em alguma iniciativa ecologicamente correta de Sua Alteza. Muitos debates, shows, exposições de projetos que nos incentivavam a poupar energia, deixar de viajar, não desperdiçar nada e até plantar a própria comida seguindo o exemplo da horta orgânica cultivada ali mesmo pelo Príncipe de Gales.

Confesso que fico sempre meio apavorado nesses ambientes verdes, achando que sou culpado pelo fim do mundo. Também tenho implicância com a idéia de que a Natureza é boazinha e que tudo que é artificial faz mal. Mesmo assim consegui me divertir nos jardins reais, descobrindo gente bem maluquinha, não apenas velhinhas fazendo bolsas com o tecido das cortinas velhas dos palácios. Como o  pessoal de moda reunido pela curadoria da Dame Vivienne Westwood. Tenho certeza que suas criações vão ser cada vez mais presentes em qualquer passarela: o pessoal do coletivo Noki House of Sustainability, a atriz Emma Watson (Hermione nos filmes de Harry Potter) agora também eco-designer, ou a estilista Orsola de Castro, líder do movimento do “upcycling”, o termo fashionista para reciclagem.  Mas em nenhum momento deixava de causar estranheza a presença de idéias até bem extremistas em local tão “estabelecido”.

O ar estranho dos tempos, onde está tudo – conservadores e vanguardas – junto e misturado, ficou mais denso quando entrei, bem do lado dos palácios, no prédio do Institute of Contemporary Arts (ICA), ocupado pelos russos do Chto Delat?, coletivo ou “plataforma” formado por artistas, filósofos, críticos e escritores que tentam fundir teoria política, arte e ativismo. (E quando lembramos do poder que magnatas pós-Perestroika, como Roman Abramovich, exercem hoje em Londres – do futebol do Chelsea ao circuito de arte, isso para falar só na “superestrutura”… – tudo fica ainda mais pesado e animado.) Chto Delat? pode ser traduzido como Que Fazer?, título do livro de Lênin, que trata das “questões palpitantes  do nosso movimento”. O pessoal do Chto Delat? faz muitas coisas bem palpitantes: vídeos, instalações, performances, um jornal, seminários etc. Para Londres prepararam várias ações diferentes que poderão ser acompanhadas online até 24 de outubro.

Assisti o final de um seminário que durou 48 horas. Os participantes tinham mesmo que ficar 48 horas juntos, inclusive comendo e dormindo juntos nas galerias do ICA. Terminou com uma performance brechtiana. O tema era “Que lutas temos em comum?”, tudo comandado por Olga Egorova, artista que cria umas roupas filosóficas (a que mais gostei era um vestido com a seguinte declaração bordada, estilo Leonilson, no peito: “acordo às 6 para ler Hegel”). No palco, divididos, dois grupos: os artistas e os ativistas. Atrás deles um coro cantando hinos comunistas. Os artistas recebem convite para exposição patrocinada por uma grande corporação, os ativistas fazem campanha contra a aceitação do convite. Na platéia, a Liga dos Trabalhadores Culturais Revolucionários protesta: tudo aqui seria uma farsa ingênua, promovida com dinheiro público inglês.

No final, palmas, risos – obviamente nenhuma conclusão. Sigo dali para a festa de 16 anos da Rinse FM, rádio que era pirata e comemorava sua oficialização recente no dial londrino. A programação era também extremista: dubstep, UK funky, grime. Muito subgrave esquisito. Na fila da entrada, mais de três mil garotos normais, nada esquisitos. De volta à contradição dominante: a contestação no poder, o choque e o banal de mãos dadas. Mundo complexo este “nosso”.


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