Continuando a celebrar o pensamento alegre de Clément Rosset: há 10 anos ele publicou um livrinho de menos de 40 páginas chamado “A noite de maio“. Tudo começou com um sonho tido numa noite de maio de 2007, no qual chegava em Nice de avião, vindo de Paris, e ia direto para a casa de Agnès Varda (várias interrogações aparecem no texto, ao lado desse nome – não fica claro se Clément Rosset a conhecia na “vida real”). Lá descobre que terá que fazer uma palestra sobre o desejo. Sua primeira reação foi entrar em pânico, pois não tinha nada preparado para falar. Outra pessoa o acalma sugerindo um roteiro: seria preciso dizer que o desejo é algo muito complexo, citando Proust, passando por Deleuze e terminando com Balzac. Ao acordar, Clément Rosset começou imediatamente a escrever o texto do livro baseado nas instruções que recebeu no sonho.
Óbvio, o início é a madeleine de Proust, detonadora de um prazer “extraordinário” e “delicioso”. Mas “sem noção de causa”, pois não estava relacionado com um único acontecimento, ou objeto, mas sim com uma experiência múltipla, uma pluralidade de emoções experimentadas em Combray. Nenhuma alegria é solitária, sempre vem acompanhada. Nunca podemos descobrir o que sozinho nos deixou alegre. Há em cada momento alegre uma aprovação geral da existência. Pois, afirma Clément Rosset, como uma onça de Guimarães Rosa: “Se eu estou feliz é porque tudo vai bem e porque tudo é bom; se estou feliz mas ao redor desta felicidade certas coisas não estão indo bem, é porque eu não estou.” Gosto dessa radicalidade, dificílima, que vai contra tudo o que parece em voga hoje, quando perdemos mundos a cada dia.
Indo adiante, com coragem: alegria e desejo são “termos complementares”, que estabelecem entre si uma “quase-identidade” – o que se diz de um se pode também dizer do outro. Então uma pessoa alegre é uma pessoa que deseja, e “no limite deseja tudo”. Uma pessoa deprimida chega a não desejar nada. Ou deseja uma coisa só, como ideia fixa, que pode desaparecer a qualquer momento. Boa lição: “o objeto desejável só é desejado quando acompanhado da perspectiva, mesmo fugaz, de uma multidão de outros objetos desejáveis”. E ainda: “ele é móvel, sem conseguir parar em lugar nenhum, como o mercúrio.” O desejo é necessariamente plural.
Esses são elementos importantes para uma também (ou talvez ainda mais) mercurial teoria da identidade, ou da ausência/impossibilidade de identidade, proposta por Clément Rosset, onde eu quero chegar. Mas fica para um outro post, talvez em outra noite deste maio.