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próximas farras

05/07/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/07/2014

Todo mundo precisa ver “A farra do Circo” durante a Copa. O contraste entre as propostas do Circo Voador e da Fifa pode nos ensinar muitas coisas. Coincidência importante: momento decisivo no documentário, dirigido por Roberto Berliner e Pedro Bronz, é a viagem do Circo para a Copa de 1986 no México. Nada dá certo por lá. Talvez hoje, tudo fosse ainda mais difícil. Imagine “circos voladores” latino-americanos tentando armar suas tendas por aqui. O “Padrão Fifa” se tornou muito mais rígido, combatendo qualquer espontaneidade sem “business plan”. Ainda bem que o espírito do Circo resiste.

Escrevi por aqui em agosto do ano passado: “O Brasil pode ensinar a Fifa e o COI a fazer uma grande festa (com gastos transparentes), fora dos padrões caretas do esporte convertido em espetáculo chato. O Brasil pode salvar a Fifa, e o mundo. Maluco, eu?” Minha maluquice ficou animada com a farra na Avenida Atlãntica, ou com a insubordinação da torcida brasileira contra as regras do Padrão, insistindo em cantar o hino a capela até o fim. Festa padronizada nunca fica boa. Hoje vivemos este dilema: muita gente quer ao mesmo tempo o espontâneo e o luxo quadradinho do shopping, do multiplex VIP, da “arena” (o desejo de ter estádios parecidos com os americanos não é só da Fifa). Dá para conciliar as duas coisas? Esse é o dilema do Brasil? Dilema do ser humano?

Taquigrafei o depoimento de Perfeito Fortuna depois do problema do Circo Voador no México, quando a Coca-Cola e a prefeitura de Guadalajara retiraram qualquer apoio. É longo, mas vale a pena citar um resumo (por favor, veja o filme para a fala completa, emocionante e lúcida), pois pode nos ajudar a escolher qual futuro queremos: “Esse lance da gente com as empresas, multinacionais, toda a coisa de patrocinador, a gente nunca se entendeu direito, a gente nunca combina, pois são ideologias muito diferentes. É verdade. A gente não está atrás da grana. A gente é mais um risco no papel, não sabe direito o que vai acontecer no fim. Então é evidente que a gente não dá o resultado esperado, tudo certinho no papel. A gente tem prazer e as organizações não têm a volta desse prazer. Então elas não estão erradas: a gente quer uma coisa, tem um objetivo, e elas têm outro. Estou totalmente de acordo que elas tenham saído fora. De verdade, acho mesmo, acho certo. A gente não vai dar aquilo que elas querem. O Circo Voador é uma energia que está no ar. Por mais que tirem nosso tapete a gente nunca cai, porque a gente voa, ou a gente cai na nossa mãe, que é a Terra, que está voando, num salto no vazio, um salto pro desconhecido, que é o que nos interessa, não interessa fazer o que a gente já sabe.”

O mundo mudou muito de 1986 para cá. A mentalidade MBA dominou o mercado de entretenimento. Tudo ficou arrumadinho. As imagens do show de Gilberto Gil, superlotado, com o público empoleirado nos canos do teto, seriam totalmente improváveis ou proibidas hoje. Era o avesso do avesso do avesso do Padrão Fifa. Chacrinha, ele mesmo, na platéia do Circo, elogia o ambiente “completamente descontraído” e “à vontade”. “Realmente”. Em outra entrevista, Dercy Gonçalves emenda: “sou a irreverência do Brasil”. Retorno ao dilema: como juntar irreverência e regras de segurança? Qual o espaço seguro para o risco artístico?

Volto a afirmar: o espírito do Circo Voador resiste. O documentário mostra como ele está conectado com a longa história de experimentação arriscada da cultura carioca (a conexão mais óbvia com o teatro do Asdrúbal Trouxe o Trombone, que por sua vez estava conectado com “Hoje é dia de rock” e assim por diante). Perfeito Fortuna mais uma vez sintetiza o que acontecia ali: era uma “experiência de coisa nova”, de quem troca a reclamação por ação: “o poder está com cada um que quer fazer, não tá com o outro que você acha que está com o poder, esse é o jogo.”

O sonho não acabou. Muita gente que aparece na “Farra” está por aí, na ativa, mudando de ideias para inventar outros padrões. A horta urbana do Circo Voador reaparece em muitos outros lugares. Difícil escolher minha cena preferida do filme. Bom rever os dançarinos do Coringa, ou o bigode grosso (patente alta) do Leminski anunciando o que está faltando para não faltar nada. Incrível ouvir novamente “Farol da Jamaica”, com o Asdrúbal, reggae bem brasileiro de Péricles Cavalcanti que parece anunciar carnavais baianos de vários anos depois. Mas fico com Fausto Fawcett, no Festival de Poesia de 1985. Poderia ser hoje, pode ser o futuro: uma loura cartesiana bombardeia os olhos de uma chinezinha videomaker com imagens comerciais, pré ou pós-Fifa. É acompanhado pelo som da voz (antes do sampler) de David Byrne cantando: “I’m still waiting”. Continuamos esperando/aprontando a próxima Farra.

Chris Marker

19/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 03/12/2010

É um privilégio ter os DVDs da Coleção VideoFilmes numa loja ou locadora perto de nossas casas. Agora podemos ver e rever filmes – como “Eu, um negro” de Jean Rouch e “O país de São Saruê” de Vladimir Carvalho – que antes só eram exibidos em ciclos especiais ou sessões de festivais. A seleção mistura clássicos com novíssimas produções, de diferentes tendências estéticas/ideológicas, e ocupando lugares diversos no “contínuo” real/ficção. Um lançamento de 2010, “Gatos empoleirados”, o DVD n° 20 da coleção, me fez mergulhar novamente na obra de seu diretor, Chris Marker, que sempre trabalhou no limite entre o real e o virtual, a poesia e a “realidade mais crua”. Muito estranho, e ao mesmo tempo esclarecedor, ver este filme enquanto “lá fora” o Rio esteve em “guerra” e o capitalismo global se arrasta numa crise (“guerra cambial”?) que se revela cada vez mais enigmática, apesar de youtubada e twitada em tempo sempre real, real até demais da conta, gerando excessivas “visualizações”.

Na guerra todos os gatos são pardos, ou cinzas, como TV fora do ar? Chris Marker se pergunta: onde estão os gatos? Ele tem obsessão por gatos. Comentando seu filme “Le fond de l’air est rouge”, que também tem versão inglesa intitulada “A grin without a cat”, Marker declarou: “um gato nunca está do lado do poder.” Numa entrevista rara e brilhante de cabo a rabo, concedida em 2008 para a revista francesa Les Inrockuptibles e traduzida para inglês no site da – outra coleção excelente – Criterion, há o complemento paradoxal: “os gatos, vocês sabem, têm certos poderes”… Uma sequência assustadoramente hilária de “Gatos empoleirados”, depois de mostrar imagens da recente pilhagem dos museus arqueológicos do Iraque, o narrador confessa lacônico: “eu saberia bem o que tirar do Louvre…” Corte. Já estamos dentro da sala egípcia do museu parisiense, observando gatos exilados de suas pirâmides.

Um gato pode ser mestre de disfarces. Como Chris Marker. Seu próprio nome é uma máscara. A justificativa para o pseudônimo é mais uma lenda, com pose de verdade simples: “gosto de viajar, queria um nome fácil de pronunciar em todos os lugares.” Marker diz também que detesta fotos. No lugar de seu rosto, manda para a imprensa o desenho de – o que mais poderia ser? – um gato, que tem até nome bem conhecido entre seus fãs: Guillaume-en-Egypte. Por isso não é de se espantar que tenha ficado encantado quando apareceram em Paris grafites de gatos, empoleirados em vários edifícios, muros, paredes das estações do metrô. E das paredes, como um meme que se espalha viralmente pela cidade e depois pelo mundo, foram se infiltrando em vários outros ambientes, e acabaram nos cartazes que alegravam as manifestações políticas de uma França perplexa, entre o neo-liberal e o estado social, entre Le Pen e Chirac, com véus islâmicos fora das escolas. A câmera de “Gatos empoleirados” começa documentando um flash mob e sai pelas ruas tentando desvendar, ou aprofundar, o mistério felino.

Com quase 90 anos, Marker permanece ligado em todas as novidades importantes. Na entrevista da Les Inrocks – que obviamente não foi feita pessoalmente, mas sim no Second Life – ao ser perguntado sobre o que mantém seu interesse no mundo, a resposta é precisa: “Curiosidade. É tudo. Eu nunca senti muita coisa além disso.” Por isso seus filmes, incansavelmente curiosos, sempre lidam com tendências que o resto do mundo nem identifica ainda, tanto no uso de novas tecnologias de captação/edição das imagens, quanto na escolha dos temas e links entre vários assuntos diferentes. No cinema, acho que foi Marker que criou pela primeira vez uma protagonista (o fato de ser mulher não é de modo algum irrelevante) que tem como profissão o desenvolvimento de jogos eletrônicos.

Então, é de se esperar a abertura flash mob de “Gatos empoleirados” ou a entrevista realizada no Second Life. Um jornal de Zurique já escreveu, bem antes do filme de James Cameron, que Marker “nasceu para ser avatar”. Acrescento: seu planeta Pandora é a Terra mesmo. A Terra e a rede de informações/imagens que a envolve como um nevoeiro cada vez mais denso. Ele diz até que se aposentaria no Second Life, “como Brando no Taiti”. Só que nunca vai se aposentar. Hoje até arruma mais trabalho. A versão francesa de “Gatos empoleirados”, feita sem narração (que foi incluída depois, para públicos sem familiaridade com a política local), foi feita em casa: “eu podia me dar a pequena alegria de fazer um filme de A a Z com minhas duas mãos”. E acrescenta: “experimentei um júbilo suplementar quando, depois de gravar alguns DVDs no computador de casa, fui vendê-los no mercado do bairro Saint-Blaise. Do produtor ao consumidor sem nenhuma intervenção externa… Sem mais-valia…” Em entrevista, conclui: “é o sonho de Marx tornado realidade”. Ou: a tecnologia nos transforma a todos em artesãos… Ficamos livres dos atravessadores da indústria cultural. Todo trabalho, mesmo precário, é nosso.

Novamente na guerra, agora donos dos próprios narizes e armas de viralização ideológica, contaminando o mundo com a poesia de gatos sorridentes. Marker com a palavra: “Eu temo que o que é comumente chamado de ideologia não tenha mais nenhuma relação com sua definição original. No início, era um ardil de guerra. Hoje é meramente um substituto para uma guerra que não existe.” Algum gato para atirar a primeira pedra?


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