texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/07/2014
Todo mundo precisa ver “A farra do Circo” durante a Copa. O contraste entre as propostas do Circo Voador e da Fifa pode nos ensinar muitas coisas. Coincidência importante: momento decisivo no documentário, dirigido por Roberto Berliner e Pedro Bronz, é a viagem do Circo para a Copa de 1986 no México. Nada dá certo por lá. Talvez hoje, tudo fosse ainda mais difícil. Imagine “circos voladores” latino-americanos tentando armar suas tendas por aqui. O “Padrão Fifa” se tornou muito mais rígido, combatendo qualquer espontaneidade sem “business plan”. Ainda bem que o espírito do Circo resiste.
Escrevi por aqui em agosto do ano passado: “O Brasil pode ensinar a Fifa e o COI a fazer uma grande festa (com gastos transparentes), fora dos padrões caretas do esporte convertido em espetáculo chato. O Brasil pode salvar a Fifa, e o mundo. Maluco, eu?” Minha maluquice ficou animada com a farra na Avenida Atlãntica, ou com a insubordinação da torcida brasileira contra as regras do Padrão, insistindo em cantar o hino a capela até o fim. Festa padronizada nunca fica boa. Hoje vivemos este dilema: muita gente quer ao mesmo tempo o espontâneo e o luxo quadradinho do shopping, do multiplex VIP, da “arena” (o desejo de ter estádios parecidos com os americanos não é só da Fifa). Dá para conciliar as duas coisas? Esse é o dilema do Brasil? Dilema do ser humano?
Taquigrafei o depoimento de Perfeito Fortuna depois do problema do Circo Voador no México, quando a Coca-Cola e a prefeitura de Guadalajara retiraram qualquer apoio. É longo, mas vale a pena citar um resumo (por favor, veja o filme para a fala completa, emocionante e lúcida), pois pode nos ajudar a escolher qual futuro queremos: “Esse lance da gente com as empresas, multinacionais, toda a coisa de patrocinador, a gente nunca se entendeu direito, a gente nunca combina, pois são ideologias muito diferentes. É verdade. A gente não está atrás da grana. A gente é mais um risco no papel, não sabe direito o que vai acontecer no fim. Então é evidente que a gente não dá o resultado esperado, tudo certinho no papel. A gente tem prazer e as organizações não têm a volta desse prazer. Então elas não estão erradas: a gente quer uma coisa, tem um objetivo, e elas têm outro. Estou totalmente de acordo que elas tenham saído fora. De verdade, acho mesmo, acho certo. A gente não vai dar aquilo que elas querem. O Circo Voador é uma energia que está no ar. Por mais que tirem nosso tapete a gente nunca cai, porque a gente voa, ou a gente cai na nossa mãe, que é a Terra, que está voando, num salto no vazio, um salto pro desconhecido, que é o que nos interessa, não interessa fazer o que a gente já sabe.”
O mundo mudou muito de 1986 para cá. A mentalidade MBA dominou o mercado de entretenimento. Tudo ficou arrumadinho. As imagens do show de Gilberto Gil, superlotado, com o público empoleirado nos canos do teto, seriam totalmente improváveis ou proibidas hoje. Era o avesso do avesso do avesso do Padrão Fifa. Chacrinha, ele mesmo, na platéia do Circo, elogia o ambiente “completamente descontraído” e “à vontade”. “Realmente”. Em outra entrevista, Dercy Gonçalves emenda: “sou a irreverência do Brasil”. Retorno ao dilema: como juntar irreverência e regras de segurança? Qual o espaço seguro para o risco artístico?
Volto a afirmar: o espírito do Circo Voador resiste. O documentário mostra como ele está conectado com a longa história de experimentação arriscada da cultura carioca (a conexão mais óbvia com o teatro do Asdrúbal Trouxe o Trombone, que por sua vez estava conectado com “Hoje é dia de rock” e assim por diante). Perfeito Fortuna mais uma vez sintetiza o que acontecia ali: era uma “experiência de coisa nova”, de quem troca a reclamação por ação: “o poder está com cada um que quer fazer, não tá com o outro que você acha que está com o poder, esse é o jogo.”
O sonho não acabou. Muita gente que aparece na “Farra” está por aí, na ativa, mudando de ideias para inventar outros padrões. A horta urbana do Circo Voador reaparece em muitos outros lugares. Difícil escolher minha cena preferida do filme. Bom rever os dançarinos do Coringa, ou o bigode grosso (patente alta) do Leminski anunciando o que está faltando para não faltar nada. Incrível ouvir novamente “Farol da Jamaica”, com o Asdrúbal, reggae bem brasileiro de Péricles Cavalcanti que parece anunciar carnavais baianos de vários anos depois. Mas fico com Fausto Fawcett, no Festival de Poesia de 1985. Poderia ser hoje, pode ser o futuro: uma loura cartesiana bombardeia os olhos de uma chinezinha videomaker com imagens comerciais, pré ou pós-Fifa. É acompanhado pelo som da voz (antes do sampler) de David Byrne cantando: “I’m still waiting”. Continuamos esperando/aprontando a próxima Farra.