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quem tem medo de espectro? – o retorno

15/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 14/11/2014

Não consigo mais escrever sem internet. Fico o tempo todo alternando “abas”, entre processador de texto e navegador, até para consultar a grafias ou gramática. Então, antes de iniciar esta coluna, liguei o wi-fi, que me respondeu com lista de redes ao alcance: há nove sinais com força suficiente para minha utilização. Mas os vizinhos tomaram cuidado de protegê-los com “cadeados” virtuais. Depois da reflexão da semana passada sobre a “escassez” do espectro eletromagnético, fiquei mais sensível para essas demonstrações de desperdício. Claro que seria mais racional, em termos de banda/grana, transformarmos essas redes privadas sobrepostas, e subutilizadas, em compartilhado wi-fi público. Porém, já fizemos escolha pela vida de cada um no seu quadrado espectral.

Sim, conheço movimentos pela abertura de todos esses cadeados, liberando as redes de nossas casas/empresas para quem passa por perto. Custos adicionais seriam compensados quando precisarmos da banda larga do wi-fi alheio. Pena: a indústria do medo nos faz pagar caro por isolamento, afirmando que qualquer abertura nos tornaria vulneráveis para ataques de ladrões de dados, como se toda conexão com a internet não fosse já arriscada (mesmo com todos os cadeados do mundo) ou como se as redes sociais, nuvens e governos não espionassem todos nossos passos eletrônicos. Não adianta: eu e meus nove vizinhos pagamos dez vezes pela “mesma” conexão.

Manuais de modem/roteador nos ensinam que espaço público deve ser evitado. Parece com congestionamento de SUVs blindados na porta de colégios de elite. Dizem as cartilhas de segurança: transportes públicos são perigosos. Resultado: em vez de brigar por melhores (em todos os aspectos) linhas de ônibus, os “poderosos” fogem das ruas, deixando o “comum” para quem “depende de programas sociais”. Abandono também visível na decadência dos orelhões – que não por acaso têm nome oficial de “telefones públicos”. Tudo indica que a “sociedade” já fez a escolha, aparentemente mais cômoda ou segura, de trocá-los por celulares privados e pela dependência de operadoras e fabricantes de “obsolescência programada”.

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Estou parecendo velho comunista, perseguindo espectros, incluindo nostálgica ternura por wi-fi compartilhado? Enquanto escrevia o texto da sexta-feira passada, com link para o “Manifesto Comunista”, fiz pesquisa paralela sobre a utilização do termo “espectro” na obra de Marx e Engels. A língua alemã tem a palavra “Spektrum”, mas no “Manifesto” encontramos “Gespenst” que tem mais cara de “fantasma”. Tanto que quando apareceu em inglês pela primeira vez foi traduzido por “hobgoblin”, adequado para personagem de Tolkien. Traduções posteriores preferiram a maior seriedade de “spectre”. Mesmo assim, como demonstrou Derrida em seu “Espectros de Marx”, continuamos numa cena hamletiana, entre fantasmas e fetichismos (hoje fantasiados de “hedge funds” que rondam as novas crises do capitalismo).

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Descobri, lendo a página “Verso” deste jornal (aquela que brinca com nossa percepção do real alterando o sentido da leitura), a comemoração dos 150 anos da Primeira Internacional, quando “os trabalhadores do mundo se uniram”. Tanto tempo depois, os fantasmas ocupam o centro do palco das representações mesmo sindicalistas: estamos aprendendo a lidar com “trabalho imaterial” ou com o “precariado”.

Hoje, em Nova York, tem início conferência chamada “Trabalho digital”, que pretende colocar em debate novas formas fantasmagóricas de trabalho (terceirizado, free-lancer, flexibilizado etc.), incluindo a polêmica sobre a definição do que fazemos nas redes sociais como “criação de valor” ou “exploração trabalhista” para/por empresas donas desses espaços (públicos? privados?) de convivência, onde temos avatares e encontramos robôs e “fakes” a cada instante. Multidões de espectros rondando nossas vidas. Novos invasores de corpos.

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Quando Agostinho da Silva será descoberto em outras línguas, para além de nosso mundo lusófono? Em “Vida conversável”, publicado em 1994 pela Editora da UNB, ele defendia claramente a “abolição da obrigação do trabalho”. Nosso eterno professor lutava por um mundo em que “a máquina chegue a sua máxima elaboração, cujo fim será o de nunca nos oprimir, em que só tenham que trabalhar com ela os homens que lhe tenham amor, homens que estejam apaixonados pela máquina”.

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Anunciado na coluna passada, o crowdfunding (“ajude-nos a construir o futuro que a humanidade merece”) do Ind.ie conseguiu arrecadar 43% de US$ 100 mil em menos de 24 horas. Mesmo sem contribuir todo mundo precisa ver o vídeo da campanha em https://ind.ie. Aparentemente nem os fantasmas ficarão fora da nova nuvem.

quem tem medo de espectro?

08/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/11/2014

Um espectro ronda o planeta. Agora não é o espectro do comunismo. É o espectro eletromagnético – congestionado, loteado, disputado, central na vida de todos os terráqueos. Com a popularização dos smartphones, mesmo o mais comum dos mortais passa a ter consciência desse problema que antes parecia ser apenas científico, regulamentado por agências técnicas, sem passar por debates parlamentares. Hoje, cada vez mais gente transmite/recebe quantidades cotidianas cada vez maiores de dados. Trocas de vídeos de centenas de megabytes são ocorrências banais, visíveis não só em telas de tamanhos variados, mas em planos 4G, 5G e boletos mensais. Li que as operadoras brasileiras vão acabar com aquela prática de transmissão mais lenta, sem custos adicionais, depois que limites contratados são ultrapassados. Sinal que nem a banda mais larga do mundo será suficiente para saciar nossos desejos culturais de altíssima definição? Contra a abundância dos HDs e dos processadores, esbarramos na escassez espectral? Vamos ter que racionar água e ondas eletromagnéticas?

Na próxima quinta-feira o governo dos EUA realizará leilão para uma faixa de espectro chamada AWS-3, realocando frequências até agora utilizadas principalmente para comunicações militares. Concorrentes como as operadoras AT&T e Verizon estão na disputa que prevê lances iniciais de mais de U$ 10 bilhões. Explicação básica: espectro é bem público, por isso são os governantes de cada país que decidem quais as regras, incluindo preços, para essa utilização. É fonte de arrecadação considerável. E como geralmente é também multibilionária, poucos “players” podem entrar na concorrência. Resultado: duas ou três empresas passam a monopolizar o acesso para as “estradas” que possibilitam qualquer comunicação.

A escassez também é gerada por essa realidade comercial. Hoje todos podemos produzir qualquer tipo de conteúdo, mas para essa produção circular dependemos de quantidade ínfima de operadoras, de fabricantes de aparelhos e de provedores de serviços (inclusive para armazenar nossos dados mais e mais pesados). A nuvem também tem poucos donos, outros bilionários (Google, Amazon etc.) que podem manter parques de milhares de computadores capazes de guardar com segurança os trilhões de vídeos, fotos, áudios, textos criados todos os minutos. Estranho: a internet começou descentralizada, mas paradoxalmente caminha para ser ambiente perigosamente centralizado.

Sim é assunto árido, difícil, pois depende de conhecimentos técnicos de ponta. Porém, como sempre nos ensinou Bruno Latour, as questões políticas mais importantes hoje envolvem ciência cabeluda: genoma, clima, transgênicos, clonagem, vírus (naturais e artificiais) e tanta coisa complicada mais. Não adianta: sem estudar isso tudo, deixamos nosso futuro na mão de políticos, ou os políticos deixam na mão de técnicos que não foram eleitos por ninguém para determinar o rumo do mundo. Então precisamos esquecer a preguiça e prestar atenção nos sinais de resistência que felizmente aparecem em muitas frentes.

Por exemplo: quem determinou mesmo que o espectro tem que ser escasso? Há pesquisas realizadas no mundo inteiro (inclusive no CPqD brasileiro) sobre rádio cognitivo (ninguém precisa se assustar com esses nomes), que apontam para a possibilidade de compartilhamento inteligente do espectro. Roteadores saberão identificar frequência de onda sem utilização naquele momento, redirecionando seu tráfego de dados para lá. Se seguirmos esse caminho, não haverá mais donos únicos para cada faixa.

Outras experiências: desenvolvimento do conceito/prática peer-to-peer como alternativa, para a invenção de uma nuvem compartilhada ou para parques públicos de computadores (vide o projeto Our Grid, da Universidade Federal de Campina Grande, lançado em 2004). Além disso, há cada vez mais projetos de máquinas “abertas”, com sucesso crescente, como o Arduino ou o Raspberry Pi, usados até por crianças (como o Júnior, computador da novela “Geração Brasil”). Uma mistura disso tudo tem o início de seu financiamento coletivo marcado para amanhã: chama-se Indie, e inclui a criação de nuvem (vai se chamar “estratosfera”), sistema operacional, linguagem de programação, cliente de sincronização entre aparelhos e muito mais, tudo isso livre e desembocando no lançamento de um smarphone aberto, com serviço no qual nossos dados não serão propriedades de nenhuma empresa. Impossível? Utopia liberal, anarquista ou comunista?

Bom ficar de olho nesse crowdfunding. Não é prudente descartar essas propostas ousadas como piração. Afinal, menos de duas décadas atrás, o Google parecia ideia pirada de frequentadores do Burning Man.


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