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Inquisição

21/02/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 20/02/2015

Na coluna da semana passada escrevi uma única frase (incluindo parêntese tipicamente desajeitado) sobre o carnaval de Goa. Muito pouco para matar as saudades daquela beira de mar do Oceano Índico. Poucos lugares no mundo são tão belos. Parece Olinda, combinando o barroco com coqueiros. Mas tem também o colorido dos templos hindus. E as guirlandas enfeitando os cruzeiros que identificam as casas católicas. Há uma combinação cultural explosiva, luso-tropicalista-lisérgica, em todos os cantos. Não foi por acaso que os hippies escolheram Goa como um de seus destinos mochileiros favoritos. E depois que ali tenha surgido uma cena rave conhecida como “Goa trance”. A paisagem, tanto física quanto humana, sugere novos desenvolvimentos para tecnologias do êxtase, acústicas ou eletrônicas, naturais ou sintéticas.

Tudo sobre aquele lugar me interessa. Por isso não resisti quando vi exemplar de “A Inquisição de Goa” na prateleira de lançamentos de uma livraria. Terminei a leitura – incluindo vários anexos, estudo e notas – em poucas horas. Sim, Portugal levou o carnaval para suas colônias (e Goa era território português até 1961, quando foi invadida pelo exército indiano). Mas junto impôs também a Inquisição. Mudando a letra de “A novidade”, mas mantendo sua descrição profunda da tragédia humana: ó mundo tão desigual, de um lado esse carnaval, do outro o auto da fé, com os condenados – suas roupas pareciam fantasias macabras – sendo queimados em fogueiras, dor balançando o chão da praça, tendo multidões (incluindo a família real, quando acontecia no Terreiro do Paço em Lisboa) como testemunhas.

“A Inquisição de Goa” foi escrita pelo médico francês Charles Dellon. Sua primeira publicação fez sucesso em 1687. Em português teve apenas quatro edições em mais de três séculos, e só agora chega ao Brasil através do bom trabalho da Phoebus (aproveito para comemorar o aparecimento de muitas pequenas editoras por aqui, com lançamentos bem peculiares e corajosos). De certa forma fomos ingratos com Dellon este tempo todo, pois ele dedicou quatro dos 48 capítulos de sua obra para descrever a vida em Salvador, Bahia, cidade onde parou em sua volta da Índia rumo a Portugal, onde cumpriria cinco anos de trabalho forçado nas galeras de Lisboa.

A leitura certamente adquire maior densidade em tempos de intolerância religiosa. Já foi importante no século XVIII, influenciando a turma que inventou o Iluminismo, incentivando o combate pelo fim dos tempos inquisitoriais. Dellon descreve minuciosamente o processo bárbaro e absurdo ao qual foi submetido. Não houve tortura física (apesar de ter ouvido gritos em celas vizinhas). Seu suplício foi psicológico, executado com refinamento de sempre extrema crueldade, por meses a fio. Não importava que as prisões da Inquisição fossem mais limpas do que as pocilgas onde dormiu com prisioneiros comuns, ou que a comida (almoço às 6 horas, jantar às 10 e ceia às 16) tivesse qualidade razoável. O desespero era avassalador por ser exigida, com uma frequência aparentemente sem lógica, uma confissão de heresias que não foram cometidas, incluindo a delação de amigos e familiares que também não eram hereges. Quem não confessava seus “crimes” era queimado vivo. Resultado: uma eficiente máquina de vigilância permanente da vida privada de todas as pessoas, onde a mentira e a traição tornavam-se necessidades vitais.

Dellon narra suas duas tentativas de suicídio. Um dos capítulos mais impressionantes é aquele no qual conta sua tentativa de adestrar ratos para ter companhia. Ou suas suposições para os motivos da prisão: “as frequentes mais inocentes visitas que eu fazia a uma senhora” amada pelo governador de Damão e pelo notário do Santo Ofício da mesma cidade. Os motivos oficialmente, mas obscuramente, alegados foram suas opiniões sobre “os efeitos do batismo” ou a necessidade de cobrir crucifixos ao receber mulheres em seu quarto. Por isso, mas sem ninguém nunca ter lhe dado a explicação completa, passou anos preso e por pouco não foi para a fogueira.

O interesse da narrativa não vem apenas dos detalhes sobre o cotidiano da Inquisição, mas também da coleção de informações preciosas acerca do nascimento da nossa globalização laica. Dellon já exercia a medicina antes de completar 20 anos e com essa idade sai da França e vai trabalhar na Índia. Os relatos sobre as viagens oceânicas, sobre a vida nas cidades de vários continentes revelam um cosmopolitismo surpreendente. Na ida de Salvador para Lisboa: “a bordo portugueses, franceses, ingleses, holandeses, indianos, cafres e mais de trinta mulheres chinesas”. Na Bahia viu formigas, bichos do pé e libertinagem. Acho que ninguém falava ainda de carnaval.

carnavais

14/02/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13/02/2015

No início dos anos 1980, durante o carnaval, eu circulava sempre pela Rio Branco, para me misturar aos desfiles do Cacique de Ramos e do Bafo da Onça. Fausto Fawcett, na mesma década, cantava/ordenava a dissolução de egos na matéria em movimento. Não havia nem superego que resistisse ao movimento browniano daquela multidão que ocupava nossa avenida central. Em questão de segundos, todos seus quilômetros eram preenchidos por um único corpo pulsante misturando jaguares e índios arquetípicos. Anos depois, aquela coisa toda – como por um milagre – foi desaparecendo. Eu insistia em voltar para a Cinelândia, mas o ambiente era triste. Gatos pingados fantasiados não conseguiam produzir sensação de folia. Quem é muito jovem não acredita quando conto que houve anos em que o carnaval no Rio tinha clima de “Adeus, batucada”.

Hoje, novos blocos, cada vez mais gigantescos, reconquistaram as ruas, para surpresa geral. Não foi obra de política pública de “resgate” do carnaval popular de rua. Tudo aconteceu como um experimento de ciência do caos, fora das previsões das autoridades mais “antenadas”. Foi como rebelião do inconsciente carioca, que não se conformou com a obrigação de ter que viajar para Salvador ou Recife se quisesse brincar na rua durante os feriados carnavalescos. Seguimos o grito de guerra do Cacique: “vou festejar”. Aqui mesmo.

Bela lição para quem estuda ou promove a cultura: ainda bem que o mundo é imprevisível. Festa é vontade mutante. Ninguém sabe onde, quando e como vai aparecer ou desaparecer. (Talvez como tudo na vida, mas na festa essa característica geral é mais evidente.) Nenhum MBA vai enquadrá-la em modelo de negócio estável. É possível apenas aproveitar o embalo, eterno enquanto dura.

Sonho com uma rede global de carnavais, uma organização das nações unidas da folia. Seria a atualização Século XXI de um efeito colateral da imposição do catolicismo por colonizadores lusitanos. Pensei nisso quando passei um carnaval em Goa, na Índia (uma das músicas que faz mais sucesso no seu desfile ainda é “Mamãe eu quero”). Tive contato também com manifestações carnavalescas em Malaca, na Malásia (era uma espécie de entrudo, com o povo que fala cristão – ou kristang, ou papiá kristang, idioma crioulo descendente do português com estrutura gramatical do malaio – fazendo batalha de baldes d’água na rua), e na Guiné Bissau (o maior carnaval africano – ver algumas imagens no episódio do Navegador, programa da GloboNews, na próxima segunda-feira). Todos: locais em que Portugal deixou suas marcas malucas. Tanto em Goa, quanto em Bissau há um fenômeno curioso: indianos fantasiados de indianos, africanos fantasiados de africanos, como se a festa fosse a única ocasião em que podem ser quem “verdadeiramente” são (e então percebemos que tudo é mesmo fantasia e que “verdade é uma ilusão”, ou ao contrário, dependendo do contexto).

Claro que seria justo ter o português como língua oficial da ONU foliã. Mas não poderia ser o único. Há carnavais em Veneza, na Alemanha. E há o carnaval de Trinidad e Tobago, com seu filho, no meio de cada ano, em Notting Hill, Londres, Inglaterra. É a maior folia do Caribe, a grande festa do calypso, hoje soca (corruptela de soul-calypso, filha da união do calypso com o funk). Essa apropriação do pop dos EUA revigorou a tradição festiva de Trinidad e Tobago, que cresce a cada ano e se mantém única, “tipicamente” local. Assim como o reggae foi incorporado ao carnaval de Salvador transformando-se em samba-reggae, que é baiano demais. Sempre escrevo: identidade nunca pode ser pensada como algo estático, acabado. Ou frágil, a ponto de qualquer ameaça externa, ou mudança mais decisiva, condená-la à extinção. Os carnavais são laboratórios que testam e expandem os limites das tradições. Como se identidade fosse uma grande brincadeira (e não é?). Como se o mundo fosse terminar na quarta-feira.

Quando a soca se tornou muito popular, pensei que steel bands – orquestras com aquelas panelas de aço, deliciosa invenção de Trinidad e Tobago – poderiam desaparecer. Mas elas continuam lá, criativas e magníficas. Essa constatação não quer dizer que boas tradições não correm riscos de extinção. Afirmo apenas que a dinâmica é incontrolável. A melhor política de preservação não é garantia de eternidade. Eterno Deus Mu-dança.

Os instrumentos das steel bands foram novidade um dia (assim como os surdos das escolas de samba), mais recente do que parece. Quem pode saber se no próximo século um dos melhores carnavais do planeta não acontecerá na Suiça e na Áustria, com bandas de hang, o novíssimo instrumento de percussão (criado depois de 2000) tocado com maestria pelo percussionista dos shows da Bjork, Manu Delago?


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