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Grant Morrison, o retorno

14/01/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06/01/2012

Continuo minha última coluna do ano passado. Para quem apagou as memórias de 2011 pulando ao som de David Guetta ou Latino nas areias de Copacabana, digo como parei aquele texto, dedicado ao livro “Supergods”, de Grant Morrison, pensador central para nosso século XXI quase adolescente. No primeiro capítulo dessa história dos super-heróis, somos apresentados a uma interpretação original de sua origem nos anos 1930, com o confronto entre um Super-Homem apolíneo, diurno e socialista com um Batman dionisíaco, noturno, capitalista. Claro que nenhum dos dois ficou congelado nessa polaridade ideológica. Nos quadrinhos, os donos dos direitos dos super-heróis mais populares são as editoras, que contratam autores diferentes para criar suas próximas aventuras. Escritores, desenhistas e coloristas inventam novas características para velhos personagens – os mesmos temas ganham variações, algumas radicais, anunciando muitas vezes transformações culturais que ainda irão acontecer.

Para complexificar a sua narrativa, Grant Morrison tem mania de recorrer a outras dualidades, além daquela apolínea-dionisíaca, que acabam se sobrepondo umas sobre as outras, criando arranjos surpreendentes. Ele chega até a endossar a “Hipótese Sekhmet”, apresentada por Iain Spence, que faz conexão maluca entre a atividade solar e as grandes tendências artísticas. A cada onze anos, o Sol troca de polaridade, da atividade mais furiosa ao período de maior calma, gerando mudanças em seu campo magnético que por sua vez teriam efeitos concretos na atividade de nossos neurônios. Por isso a humanidade teria períodos mais “punks” e outros mais “hippies”, com trocas também a cada onze anos. Os punks seriam mais realistas, os hippies mais sonhadores.

Gosto mais de outra dualidade apresentada em “Supergods”, aquela que divide os autores de quadrinhos de super-heróis em duas tribos em guerra eterna: de um lado os “missionários”, do outro os “antropólogos”. Grant Morrison toma partido dos antropólogos – mas reconhece (e eu como antropólogo de profissão tenho que concordar) que não há fronteiras claras entre essas tribos. Pelo contrário: há muitas mestiçagens entre os dois pólos, com missionários com atitudes de antropólogos e vice-versa. Vejamos o que está em jogo, no limite. Os missionários tentam “impor seus próprios valores e preconceitos sobre as culturas que consideram inferiores – nesse caso, aquela dos super-heróis.” Os antropólogos tratam as outras culturas “com respeito e no interesse de compreensão mútua.” De vez em quando exageram e “viram nativos”, capitulando diante da cultura estrangeira – sem medo serem encarados como tolos.

Para Grant Morrison, o “missionário” tem, no fundo, vergonha do seu trabalho. Acha ridículo o uniforme dos super-heróis. Tenta portanto torná-los menos infantis, o que na maioria das vezes significa pesar a mão no lado realista (e realidade aqui é quase sempre sombria, quando não desesperada.) Os antropólogos levam a sério o discurso nativo dos super-heróis: se eles acreditam ter superpoderes, quem somos nós para desmenti-los ou chamá-los para a realidade? E devemos confessar (já estou aqui assumindo plenamente meu relativismo antropológico): achamos bonitas suas máscaras e capas coloridas; queremos que sejam felizes em seus universos; adoraríamos também testar a dor e a delícia de voar, ser invisível, ter cromossomo mutante. Queremos que seus mundos sejam realmente mágicos.

Conflito sem trégua entre realistas e desbundados, que torna nosso mundo da produção cultural mais divertido. Ao ler a tese do Grant Morrison me lembrei da volta de Augusto Boal para o Brasil, quando apresentou seu “c’est magique” no Teatro Cacilda Becker (já se chamava assim?) no Catete. No palco os atores tentavam encontrar soluções para um problema social. A platéia poderia interromper a encenação a qualquer momento se considerasse mágica a solução apresentada por quem conduzia o espetáculo. Bastava gritar “c’est magique” e expor a razão para considerar que tal solução não funcionaria na realidade. Eu estava na platéia. Regina Casé também estava. Naquela época eu apenas era fã do Asdrúbal Trouxe o Trombone (vi “Trate-me Leão”, “Aquela Coisa Toda” e “A Farra da Terra”, todos várias vezes). Fiquei mais admirador da Regina quando ela, com enorme coragem, se levantou para dizer que fazia teatro justamente por ser espaço onde poderíamos inventar soluções mágicas. Não foi a toa que anos depois iniciamos uma amizade que já rendeu inúmeros produtos “antropológicos”, inclusive o programa Esquenta! que estará em cartaz na TV Globo durante todo este verão, e que na temporada passada apresentou empolgado a música “Liga da Justiça”, do LevaNóiz, que fez mágica no carnaval de 2011 em Salvador.

O “missionário” que Grant Morrison mais se delicia em atacar é Alan Moore, autor de “Watchmen”. Em “Supergods”, Morrison acusa Moore de militar pelo fim de toda a mágica no universo dos super-heróis: mesmo seu planeta Krypton é “um mundo despedaçado por tensões raciais, fanatismo religioso e brutal violência nas ruas, mas eu posso ver isso na TV”. Grant Morrison sempre quis que os super-heróis fizessem aquilo que os noticiários não mostram. Quem sabe assim não nos inspiram a ocupar o mundo diferentemente? Ou pelo menos nos ensinam que “as coisas não precisam ser reais para serem verdadeiras”.

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Hoje é o dia dos Santos Reis. Feliz folia para todo mundo.

Grant Morrison

07/01/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/12/2011

Grant Morrison escreveu “Supergods”, meu livro favorito de 2011. As listas de melhores do ano não concordam comigo. Houve grande espectativa pré-lançamento. O autor é um dos artistas contemporâneos mais influentes e respeitados, para muito além das fronteiras do seu mundo de origem, o dos quadrinhos. Na publicidade de “Supergods” apareciam os elogios rasgados de três figuras que só Grant Morrison poderia reunir: Stan Lee, um dos criadores do Homem-Aranha, do Hulk, dos X-Men (etc!); Gerard Way, cantor da banda de rock My Chemical Romance; e Deepak Chopra, talvez o mais popular escritor de auto-ajuda. Mesmo assim, depois que o livro foi publicado, houve um silêncio bizarro sobre seu conteúdo, como se ninguém soubesse o que fazer com aquela avalanche de informações.

“Supergods” estaria para os quadrinhos de super-heróis assim como “O resto é ruído” estaria para a música contemporânea se Alex Ross (o autor de “O resto é ruído”) fosse John Cage ou outro personagem central para a história contada no livro. Grant Morrison escreveu a saga dos super-heróis modernos, desde a aparição do Super-Homem em gibi de 1938, com uma profusão de detalhes, inclusive acontecimentos fabulosos de sua própria biografia, como se ele mesmo fosse super também.

Tem direito. Stan Lee decretou sobre sua obra: “Grant Morrison é um dos grandes escritores de quadrinhos de todos os tempos. Eu gostaria de não ter que competir com alguém tão bom quanto ele.” Para citar apenas um de seus feitos: “Batman: Arkham Asylum”, escrita por Grant Morrison, é a novela gráfica original mais vendida também em todos os tempos. Além disso há a invenção de “New X-Men” e muitos outros universos punk-apocalípticos, como a saga “Os Invisíveis”, na minha opinião uma das criações artísticas mais importantes do século XX, que será lida em tempos vindouros com a mesma reverência que hoje dedicamos a “Acossado” ou “A montanha mágica”.

Confesso minha dificuldade com a leitura de “Supergods”. Certamente faltou editor cuidando de transformar o material em algo mais palatável para quem, como eu, nunca teve muita familiaridade com os bastidores dos quadrinhos. Havia momentos em que me perdia no meio de tantos nomes de escritores, desenhistas, coloristas ou mesmo super-heróis que apesar de grande sucesso eram para mim superdesconhecidos. Essa opção enciclopédica afasta leitores que buscam apenas uma história alternativa da cultura do século XX através de alguns de seus personagens mais pitorescos, os que têm superpoderes até para mudar o curso da História.

Nunca fui fanático por quadrinhos, mas reconheço nos super-heróis um pano de fundo essencial para minha visão de mundo, que me conecta com as outras pessoas que vivem em nosso mundo. Uma das experiências mais desnorteadoras da minha vida aconteceu em Nova York, em 1989, quando a cidade estava tomada pela publicidade da estréia do primeiro filme “Batman”. Os cartazes não precisavam de palavras – só aquela figura do morcego estilizado dava conta do recado: todo mundo sabia do que se tratava. Eu estava hospedado no apartamento do meu amigo Julian Dibbell, antes de sua transformação em super-herói dos estudos ciberculturais. Naquela época, Julian subalugava um quarto para desconhecidos. Cada vez que o visitei tinha que conviver com seres bem esquisitos. Em 1989, o subinquilino era um russo chamado Vadim, que em época pré-perestroika fugira da URSS via Israel. Era filho de médico e engenheira, morava em Leningrado (hoje novamente São Petersburgo), perto dos estúdios da Lenfilm. Eu e Julian o convidamos para ver Batman conosco. Ele perguntou: o que é Batman? Foi o contato mais próximo que já tive com um alienígena. Um abismo de imaginação nos separava.

Hoje os jovens russos devem saber bem o que é Batman, ou mesmo Lanterna Verde. Não foi só o capitalismo, com todas suas bolhas e crises terminais, que penetrou na Cortina de Ferro ou na mais tradicional aldeia da savana africana. Com o triunfo dos chips de silício o mundo também se nerdificou: o que era antes obsessão de “geeks”, hoje é “mainstream” planetário. Tá tudo dominado por super-heróis, que conquistaram o mundo mesmo com suas fantasias ridículas. Como escreve Grant Morrison: “Numa cultura secular, científica e racional sem qualquer liderança espiritual convincente, as histórias de super-heróis falam em alto e bom tom com nossos maiores medos, mais profundos anseios, mais altas aspirações. […] Nós deveríamos escutar o que eles têm a nos dizer.”

E eles não dizem todos a mesma coisa. Grant Morrison começa o livro contrapondo o Super-Homem apolíneo, solar, socialista e o Batman dionisíaco, noir e capitalista. Clark Kent é um órfão de outro planeta que usa seus superpoderes para ajudar nossa pobre humanidade; Bruce Wayne é um milionário que combate o crime para vingar a morte dos pais.

As divergências não surgem apenas entre os super-heróis, mas entre diferentes “encarnações” de um mesmo super-herói, devido ao tratamento que receberam de seus vários autores – um mesmo tema sujeito a surpreendentes variações. Mas isso fica para a coluna da próxima semana. Até 2012! Que os super-heróis nos protejam do fim do mundo.


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