Posts Tagged ‘Larry Page’

velocidade

27/07/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 26/07/2013

Beto Villares tem ouvido bom. Ele é produtor de vários discos que sempre nos apresentam tratamentos sonoros originais. Por exemplo: “São Mateus não é um lugar assim tão longe”, de Rodrigo Campos; “Vagarosa”, da Céu; “Siba e a Fuloresta”. Outro de seus talentos é captar invenções poéticas na fala cotidiana. Se não me engano foi uma criança tentando oferecer serviço informal de guia turístico no litoral nordestino que lhe deu a ideia para o título do seu único CD até agora: “Excelentes lugares bonitos”. De um agricultor pós-caipira com bem mais idade, convidando-o para outro café ao lado de seu roçado, guardou frase que virou bordão em nossas conversas: “bobagem pressa”. Adotamos, eu e Beto, essas palavras, como ideal de vida.

Por isso os recados que se dizem urgentes são os que eu mais demoro a responder. Aprendi que não requerem ação imediata. Quando ligo dias depois, as coisas já se resolveram ou ainda estão lá paradonas, sem prejuízo algum. A urgência foi banalizada de tal modo que precisamos usar “urgente mesmo!” ou “urgentíssimo!” quando o bicho está pegando. Porém, mesmo nesses casos, há controvérsias sobre a necessidade da pressa. Já vivi situações realmente graves na vida – dentro da sala de emergência de hospitais é onde descobrimos com sofrimento: só podemos ficar esperando, ninguém sabe dizer ao certo quanto vai demorar. Até que uma decisão (geralmente coletiva) seja tomada, ajuda manter a calma.

Volto então ao assunto iniciado seis colunas atrás. Parece que foi há uma eternidade. Quando comecei a escrever sobre o poder do Google, o mundo era diferente. Nunca tinha ouvido falar de Edward Snowden ou do projeto de ciberespionagem do governo americano (que deve ser classificado como urgentíssimo, e isso seria “desculpa” para furar a fila do processo legislativo comum). Também o gás lacrimogêneo e o coquetel molotov não tinham voltado com tudo nas ruas de todo o Brasil. A impressão é de atividade frenética, de nada será como antes, mais uma vez. As multidões estão tão ansiosas e apressadas como Larry Page, o cara do Google que reclamou da lentidão e das imperfeições do mundo real, querendo outro lugar – com outras leis que ninguém sabe ao certo como serão criadas: plebiscito? democracia direta? sábio ciberplatônico? – para “experimentar coisas novas e descobrir o efeito sobre a sociedade e as pessoas”.

Recomendo a todos a leitura vagarosa de livro fininho de entrevistas com autor que a velocidade das modas intelectuais parece ter transformado em relíquia dos anos 1980: “A administração do medo”, de Paul Virilio. Interessante como começa usando a palavra “ocupação” com sentido diferente do atual “occupy” (Virilio viveu na França ocupada pelos nazistas): “o medo é um ambiente, um meio, um mundo. Ele nos ocupa e nos preocupa.” O ataque atinge ponto central do discurso da pressa: “o medo e sua administração estão hoje fundamentados na incrível difusão do tempo real” ou na “ditadura do tempo real”. Hannah Arendt vem a seu socorro com palavras sombrias: “o terror é o consumação da lei do movimento.”

Virilio é pensador apocalíptico. Mas seu lema não é “pare o mundo que eu quero descer”. Ele sabe que não é possível parar – sua proposta é a diversificação de ritmos (a cronodiversidade), pois nossas sociedades ficaram arrítmicas, ou melhor, “elas só conhecem um ritmo, aquele da aceleração contínua. Até o crash, e ao crash sistêmico.” Não há mais tempo para pensar, debater: acelerando tudo, acabamos sendo obrigados a transferir o poder de decisão para mecanismos que podem “funcionar na velocidade imóvel da instantaneidade.”

O crash de 1987, por exemplo, foi resultado também da conexão quase instantânea de bolsas de todos os continentes, revelando a “impossibilidade de gestão dessa velocidade” por simples seres humanos. Já que os Estados não podem mais controlar a economia, o que lhes resta é “convencer os cidadãos que podem lhes assegurar sua segurança corporal”. Correria e trapalhada. Já descobrimos: num trem bala, é impossível enxergar qualquer coisa se olharmos diretamente para os lados. Sem a visão lateral ficamos cada vez mais perdidos. Virilio repete aquilo que um onceiro de Guimarães Rosa já sabia: “a sobrevivência está ligada à antecipação da surpresa; e a surpresa nunca é frontal.”

Em qualquer situação, só com tempo podemos escolher bem entre várias soluções possíveis, todas elas com vantagens e desvantagens. Democracia é arte lenta e muitas vezes chatérrima. Confiança não pode ser construída, ou ser merecida, na instantaneidade, na velocidade dopada. Virilio arremata: “o direito do mais rápido é a fonte do direito do mais forte. Hoje, o direito está submetido a um estado de urgência permanente.” Em resumo: além de “bobagem pressa” devemos aprender a dizer “perigo pressa”.

novo partido

08/06/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/06/2013

Sempre dou gargalhadas ao ler cada edição de “Tecnicamente incorreto”, coluna de Chris Matyszczyk no site CNET. Isso não quer dizer que seu conteúdo seja apenas piada. O bom humor embala uma das mais sérias investigações sobre o girar do mundo em torno do Vale do Silício. Por exemplo: seu artigo recente intitulado “Google: o terceiro partido político da América” é leitura obrigatória para quem realmente se preocupa com o lugar da democracia em nossas sociedades tecnicamente encantadas. Todas as frases provocam sorrisos de reconhecimento que logo se transformam em arrepios de lúcido apavoramento.

Larry Page, fundador e CEO do Google, fez discurso na última edição da I/O, conferência “para desenvolvedores” que sua empresa realiza com fanfarra todos os anos. Os comentários de Matyszczyk se esbaldavam com a mais explícita ironia: “O congresso é um cachorro que não quer sair para passear. Você pode dar um puxão na sua coleira, mas ele fica sentado no meio da calçada, rosnando um desafiador ‘não’. […] Então aparece o político mais ambicioso da América. […] O homem que é o Google […] fez sua turma pensar que ele estava falando sobre tecnologia. Sua agenda verdadeira, no entanto, é política. Onde o governo não pode fazer nada, o Google pode fazer tudo.”

O discurso abordava assuntos tão diversos quanto saúde pública ou ecologia. Para qualquer problema, o Google tem uma solução revolucionária, como aquele carro elétrico sem motorista. A política tradicional – vilã de sempre – dificulta a realização dessas experiências. A invenção tecnológica é o reino da rapidez; a mudança das leis insiste na lentidão. Page reclama: “Há muitas, muitas coisas importantes e sensacionais que podemos fazer, mas não podemos porque são ilegais ou não são permitidas pelas regulamentações.”

Parece Roberto Carlos cantando “será que tudo que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda”? (Com uma diferença californiana: ninguém no Google deve gostar de nada que engorde.) Ou lembra episódio do seriado “Viagem ao fundo do mar” que vi quando criança: o submarino precisava de autorização para lançar mísseis e acabar com algo que destruiria o planeta. O Congresso em Washington precisava seguir seu lento processo de tomada de decisão. Os militares se revoltaram e salvaram a humanidade. Nesses casos, a democracia e o estado de direito são vistos como estorvos. Alguma mente iluminada sabe o rumo que as coisas devem tomar para a felicidade geral.

Page revela seu sonho: “Como tecnólogos devemos ter lugares seguros onde podemos experimentar coisas novas e descobrir o efeito sobre a sociedade e as pessoas, sem a necessidade de implantar no mundo normal. Pessoas que gostam de esse tipo de coisa podem ir lá e experimentar.” (A tradução foi feita com velocidade espantosa pelo Google Translate, é claro.) Qualquer semelhança com o anarquismo pós-moderno das Zonas Autônomas Temporárias de Hakim Bey, ou com o Burning Man realizado “fora da lei comum” no deserto de Nevada (o primeiro “doodle” do Google foi desenhado para avisar que Page e Serge Brin tinham viajado para esse festival) não deve causar espanto.

O sonho acabou? Se o Google é mesmo um partido político, Page pode proferir os discursos para animar as massas, mas o programa ideológico mais careta acaba de ser publicado em “A nova idade digital”, livro de Eric Schmidt (atual “executive chairman” da empresa) e Jared Cohen (diretor do “Google Ideas”). Os elogios na contracapa são assinados por nomes que já demonstram que o público alvo é tradicional: Bill Clinton, Henry Kissinger, Madeleine Allbright, Tony Blair. O tom é certamente moderado: a introdução começa definindo a internet como “o maior experimento envolvendo anarquia na História”, mas termina clamando pelo estabelecimento de pontes sobre o “cânion” que divide as pessoas que entendem de tecnologia e aquelas encarregadas de cuidar das questões geopolíticas mais difíceis.

Discursos, programas… Na prática, a tecnologia tem inventado suas próprias leis, na marra. Por exemplo: se os governos demoram com as reformas do direito autoral, o YouTube (do Google) inventa maneiras de reconhecer músicas usadas em qualquer vídeo. Resultado: mesmo pirateadas as músicas podem gerar dinheiro para seus autores e entram na contabilidade da parada do sucesso oficial. Isso é o mais perigoso: a mistura de legalidade e ilegalidade que se torna prática cotidiana. A democracia, para ter futuro, precisa enfrentar com vigor o novo desafio imposto pela velocidade tecnológica. Entre a velocidade e a lentidão, precisamos inventar outro tempo para não deixar que duas ou três empresas passem a ter o controle do mundo. Volto a este assunto semana que vem.


%d blogueiros gostam disto: