texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06-05-2011
Saint Étienne, além de ser o nome françês para Santo Estêvão, protomártir da Igreja Católica, é também cidade da França, e o time de futebol dessa cidade. Atravessando o Canal da Mancha, e perdendo o acento agudo na viagem, vira nome de banda – provavelmente a banda mais chique da história da música pop (e a mais londrina depois do The Kinks?). Para não haver dúvidas de que foi uma homenagem ao time, seu primeiro disco, “Foxbase alpha”, de 1991, tem início com a vinheta “This is radio Etienne”, com narração de locutor futebolístico da terra de Étienne de La Boétie, que logo dá lugar a uma versão celestial e dançante (a Wikipedia classifica a banda como “alternative dance”) de “Only love can break your heart, canção de Neil Young. Preciso deixar logo claro: Saint Etienne é minha banda pop preferida, talvez a mais completa tradução da perfeição pop. Continuando exagerado: sua música é uma das melhores coisas da vida, talvez só comparável a um doce de caju bem feito. Infalivelmente, quando coloco um de seus discos para tocar, fico alegre. Uma alegria leve, mas potente, que aumentou recentemente quando soube que a banda voltou a viajar, primeiro para um show em Cingapura, e agora para uma excursão escandinava. Isso aumenta minha esperança de um dia vê-la tocando no Rio.
Sean O’Hagan, músico dos grupos Microdisney e The High Llamas, escreveu no jornal The Guardian que os componentes do Saint Etienne são “românticos urbanos”. Eu diria mais: ninguém pode amar tanto a vida na cidade – ou, especificamente, a vida em Londres – quanto eles. Sua mais recente compilação de sucessos é intitulada “London conversations”. Toda sua obra pode ser pensada como um hino de amor para essa cidade, compartilhável em outras realidades urbanas diferentes, sobretudo vistas por gente que não sente nenhuma vontade de trocar a confusão metropolitana por uma casa no campo. Em seu último álbum de estúdios, o concentual “Tales of Turnpike House”, lançado em 2005 e narrando a vida de condôminos de um edifício londrino, há a faixa “Relocate” cuja a letra é a enésima briga de um casal: a mulher que quer ar puro, porcos e galinhas; seu marido não dá o braço a torcer: “eu amo a cidade, sei que não é bonitinha, mas pelo menos tem vida”. Duas visões se mundo incompatíveis. Não preciso nem dizer de que lado a banda Saint Etienne está.
Eu andei pelas ruas de Londres em julho de 2005, na época em que a cidade sofreu vários atentados. Olhava para seus típicos ônibus de dois andares, vermelhos, e não podia deixar de pensar: “lá vem uma bomba”. Foi nessa viagem que comprei o DVD Finisterre, que trazia um documentário sobre Londres cujas imagens eram projetadas nos shows que o Saint Etienne fez para o lançamento do disco de mesmo título. Não pode haver mais sincero elogio para uma cidade e sua capacidade de se transformar, superando várias crises sem se fechar em tola xenofobia. Londres é o que é por ser ponto de encontro especial, de forte identidade, mesmo mutante. Costumo dizer que uma cidade não fica completa, satisfeita consigo própria, se não produz um estilo musical para chamar de seu. Londres produziu o drum’n’bass e as variantes do two-step garage. Aquilo é primeiro de Londres. Mas seus bairros também souberam absorver invenções sonoras de todos os continentes, do barroco alemão ao rhythm’n’blues norte americano (até chegar ao reggae de Kingston e ao house de Chicago), dando-lhes seus sotaques (pois são vários) inconfundíveis. O Saint Etienne processa – em seu estúdio-instrumento-musical – Burt Bacharach, Ennio Morricone, nothern soul, disco italiano, dub e outras belezas/estranhezas e o resultado se tivesse GPS daria as coordenadas geográficas do mapa londrino.
Vários de seus discos têm o costume de apresentar vinhetas entre as canções – por sua vez sempre frágeis, algo tronchas, vaporosas que quase se desmancham na primeira audição (vide “London belongs to me”) até revelar sua já citada perfeição – e textos de escritores nos encartes. Douglas Coupland, autor do mais-que-influente romance “Generation X”, produziu uma mistura de ficção e juramento de fã para acompanhar o disco “Good humor” (o lançamento mais pop da gravadora “grunge” Sub Pop?). Para ele, mesmo as palavras “Saint Etienne” transmitem o sentimento de “um mundo onde as mulheres usam pérolas e podem cantar afinadas”, ou “um mundo onde a nostalgia é fora de propósito pois todos nós vivemos num presente glorioso”. (É preciso acrescentar: Sarah Cracknell, cantora do Saint Etienne se veste como uma senhora chique e tem voz afinadamente anti-expressionista de elegância bem britânica.)
Gosto também do texto de Simon Reynolds publicado no encarte de “Sound of water”, que lança a idéia de que o “adorável” – ou simplesmente a busca do belo – pode ser a nova vanguarda, e que o experimental não precisa ser chato ou “difícil”. Em cada canção do Saint Etienne, os mais belos lugares comuns da tradição pop convivem com um rigor eletroacústico produtor de esquisitice braba, audível só para quem se interessar por esse “dark side” do som.
Apenas uma coisa me incomoda no Saint Etienne (algo que também chega a me irritar em Londres): uma ditadura exagerada do bom gosto. A imagem, o som, a referência: tudo opressivamente certo. Mas é assim: não existe nada apenas perfeito. Nem na perfeição pop.