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minc-cc novamente

23/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/02/2011

Em sua coluna de domingo passado, Caetano Veloso transcreveu email de Joyce Moreno, apoiando a decisão da ministra Ana de Hollanda de não mais publicar o conteúdo do site do MinC sob licença Creative Commons (CC). O texto de Joyce contém imprecisões. Diz, por exemplo, que o Google patrocina o CC com “30 milhões de dólares!” Gostaria de saber quem passou essa informação para Joyce, e se ela checou sua veracidade antes de fazer seu texto circular pela internet. O que eu sei é que o Google doou 30 mil dólares para o CC em 2006 e, na última década, doou uma média de 100 mil dólares por ano. A diferença para os 30 milhões é enorme.

Em 2010, o Google fez doações num valor total de 145 milhões de dólares. Entre as muitas organizações que receberam doações estão: a Bharti Foundation, que cuida de escolarização de crianças na Índia; a Global Strategies for HIV Prevention, que melhora o acesso a medicamentos na África; a UNICEF; a Ashoka; a APC. Insinuar que, ao receber doações, todos passam a trabalhar para os interesses do Google, não me parece nada sensato. (E, mesmo sem doações, o ECAD tem acordo comercial com o Google – ver bit.ly/f1FFbw.)

O CC, como a Wikipedia, é sustentado primordialmente por doações descentralizadas de indivíduos do mundo inteiro. Todo fim de ano, faz uma campanha mundial para doações. Em 2010, a campanha arrecadou 522.151,25 dólares, incluindo os apoios de empresas. É possível ver os dados da campanha neste link. Há uma lista de todos os doadores em bit.ly/aV3J9d e o relatório financeiro de 2009 pode ser consultado, na íntegra, em bit.ly/hpHZki. Antes de levantar suspeitas sobre a atuação do CC, todos deveriam estudar com atenção esses documentos, que são de transparência exemplar.

Outra imprecisão no texto de Joyce: o CC não é uma “licença norte-americana privada”. É sim uma organização não-governamental que criou um sistema de licenças que podem ser usadas por criadores, organizações e empresas. A Al Jazeera acaba de licenciar as imagens das manifestações do Cairo em CC, autorizando sua exibição em todas as TVs. Ninguém é obrigado a usar as licenças se não quiser.

Voluntários de 70 países se inspiraram no trabalho do CC norte-americano e desenvolveram sistemas de licenciamentos semelhantes a partir de legislações locais. Assim foram criadas entidades independentes e separadas do CC norte-americano, que por sua vez redigiram licenças também diferentes das norte-americanas. As licenças CC-BR, criadas pelo Creative Commons Brasil, são totalmente brasileiras e só podem ser aplicadas no Brasil.

O conteúdo do site do MinC era publicado com uma dessas licenças totalmente brasileiras (mesmo com a inspiração norte-americana – e não entendo por que não podemos nos inspirar em boas ideias norte-americanas, afinal somos ou não o país da antropofagia cultural?), produzida por uma entidade brasileira, o CC Brasil, independente do CC norte-americano. A ministra Ana de Hollanda declarou para matéria do caderno Prosa e Verso, aqui deste jornal, que “o MinC só retirou o selo das Creative Commons do site, mas não o licenciamento”. Infelizmente o MinC retirou o licenciamento sim, ministra – e nada havia de irregular nesse licenciamento. Agora temos apenas uma frase vaga: “O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”. Essa é a “licença” que vale hoje. A licença CC-BR anterior tinha outro texto, que inclusive diferenciava reprodução de publicação, como exige a Lei do Direito Autoral brasileira. Agora as pessoas podem reproduzir o conteúdo, mas ao publicá-los em seus blogs estão fazendo algo sem autorização explícita – isso cria uma incerteza jurídica desnecessária. Por isso digo que as licenças CC levam o direito autoral mais a sério.

Tudo o que li em defesa da atitude do MinC deixa claro que o problema não era a licença. A própria ministra acredita que o licenciamento continua o mesmo. O problema era a sigla CC e o desconhecimento sobre o que é o CC. Em seu blog, Joyce escreveu: “Como ela [Ana de Hollanda] retirou do site do MinC o logo do Creative Commons, houve a celeuma, reclamando que ela estaria ‘se alinhando ao ECAD’ e se aliando ‘ao que há de mais conservador’. Mas peraí, pessoal: se eu entro num restaurante, faço meu prato, almoço e vou embora, não vão chamar a polícia para me cobrar o calote? Então, por que a criação alheia (alimento da alma) pode ser usada à vontade, sem que os autores recebam???”  Aldir Blanc também declarou: “Não há retrocesso algum em querer pagar com justiça o direito autoral dos criadores”. Não entendi o raciocínio. Quem é contra o pagamento para autores? O CC nunca disse que criadores não devem ser pagos. E o que o licenciamento do conteúdo do site do MinC tem a ver pagamento para autores? Parece que a sigla CC no site do MinC era entendida como um manifesto em prol do calote aos autores. Isso é um absurdo. Repito mais uma vez: a licença CC defendia muito mais rigidamente os direitos de autor do que a frase que está no site agora.

A história da batalha pelo direito do autor começa bem antes do início do século XX. É uma bela e complexa história. O Creative

minc-cc

23/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 28/01/2011

O plano era passar um tempo sem falar em direito autoral por aqui. Há outras coisas interessantes no mundo. Também seria deselegante parecer estar pressionando a ministra da cultura a ter rápida posição sobre o assunto. Posse em ministérios exige calma e tempo. Como a história de Ana de Hollanda comprova disposição para diálogo, pensava que era isso que pedia em suas primeiras manifestações como ministra, declarando que só voltaria a falar sobre a reforma da Lei do Direito Autoral quando tivesse tempo para estudar com calma o projeto apresentado pela gestão Juca/Gil.

Estava então imerso em outros temas quando fui surpreendido pela barulheira no Twitter. A causa? O site do MinC, na calada da noite, havia trocado o licenciamento Creative Commons por declaração vaga: “O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”. Diante do protesto, foi publicada nota de esclarecimento, falando erroneamente em referência e não em licenciamento: “A retirada da referência ao Creative Commons da página principal do Ministério da Cultura se deu porque a legislação brasileira permite a liberação de conteúdo. Não há necessidade do ministério dar destaque a uma iniciativa específica. Isso não impede que o Creative Commons ou outras formas de licenciamento sejam utilizados pelos interessados.” Esclarecimento nada esclarecedor, que coloca ponto final em conversa que não teve início.

Volto ao assunto Gov 2.0, que dominou esta coluna recentemente. O site culturadigital.br, hóspede dos debates sobre o Marco Civil da Internet e a Classificação Indicativa, iniciativas do Ministério da Justiça, tem seu conteúdo publicado sob uma licença Creative Commons (CC). O blog do Palácio do Planalto tem licença CC (diferente da usada no culturadigital.br). O site da Casa Branca dos EUA “é” CC. O blog do Departamento de Finanças da Austrália é CC. Já o OpenData do governo britânico é diferente: não tem licença CC. Porém, seus responsáveis criaram uma outra licença, a Open Government Licence, parecida com uma licença CC, mas com outros detalhes e finalidades.

O MinC deveria ter seguido o exemplo do governo britânico. Ninguém é obrigado a usar licenças CC. Mas alguma licença é necessária (assim como, mesmo com uma legislação trabalhista geral, precisamos assinar diferentes contratos ao iniciar novos trabalhos). A declaração do MinC (“O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”) não é uma licença, não tem validade jurídica. Sim: a legislação brasileira já permite a “liberação” de conteúdo. As licenças CC-BR são totalmente baseadas na legislação brasileira – não propõem nada que essa legislação não permita. Sua novidade é dar uma redação juridicamente clara para a autorização prévia de alguns, não todos, tipos bem específicos de utilização desse conteúdo. Por exemplo: sua reprodução, sua tradução, sua “remixagem” etc. – dependendo da licença escolhida.

Se o novo MinC não queria sigla CC em seu site, que pelo menos se desse tempo para criar uma nova licença válida em tribunais, como fez o governo britânico. Isso não se faz apressadamente. Bons advogados são necessários para esse trabalho, que pode custar caro aos cofres públicos (vantagens das licenças CC: já estão prontas, são válidas juridicamente, são compreensíveis em qualquer lugar do mundo e ninguém precisa pagar para utilizá-las). Com a pressa, o conteúdo do site do MinC e as pessoas que reproduzem esse conteúdo estão agora desprotegidos. (E com muitas dúvidas. Um exemplo: o conteúdo do site pode ser usado para finalidades comerciais? Acredito que sim, mas o texto não deixa isso claro.) Essa atitude não incentiva a defesa dos direitos autorais e sim cria um clima de “ninguém precisa licenciar nada” ou vale tudo.

Já há muita complexidade no debate sobre direito autoral. O MinC não pode atuar para criar confusão. Precisamos de licenças e regras claras. O CC prega exatamente o contrário do liberou geral. Com suas licenças todo mundo fica sabendo exatamente o que pode ou não fazer com cada conteúdo, seguindo as determinações de seus próprios autores. Ninguém “abre mão de seus direitos” e sim exerce mais plenamente seus direitos ao estabelecer o que pode ser feito com suas obras. Para “liberar” (prefiro dizer “autorizar”) alguns usos do conteúdo produzido seja em sites governamentais ou privados, precisamos deixar clara que liberação é essa. Sem algum tipo de licença, a lei entende que ninguém pode fazer nada com esse conteúdo, sem autorização a cada vez que for usado para qualquer fim. Uma experiência como a Wikipedia, onde podemos a todo momento editar o texto dos outros, seria ilegal se não acontecesse com licença clara que autoriza a reedição contínua.

Não estou aqui para pedir a volta da licença CC. Quanto mais licenças, melhor: aumentam nossas opções, segurança e legalidade. Seria ótimo que o MinC fizesse a crítica das licenças CC, para aperfeiçoá-las em outras licenças. Que comece logo o diálogo, com calma e tempo. Agradeço a Caetano Veloso por ter, em sua coluna do domingo passado, expressado seu desejo que é uma (boa) ordem: precisamos de uma “conversa produtiva” entre todos os grupos interessados em “levar o Brasil para a frente sem perder a dignidade.”

continuidade

23/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/01/2011

Ano novo. Governo novo. Descobriremos aos poucos o que há de continuidade e ruptura com o governo anterior. A maioria dos brasileiros votou pela continuidade de várias políticas públicas. Porém, são outras pessoas no poder. Divergências sempre vão existir, e é absolutamente saudável que existam. Por exemplo: em suas primeiras entrevistas, a nova ministra da cultura, Ana de Hollanda (muito bom ver uma mulher com sua história no comando do MinC), sugeriu a necessidade de revisão de projetos da gestão Gil/Juca. Ficam já claras diferenças no modo como encara a questão dos direitos autorais e sua adequação para a cultura digital. Vamos ver como a polêmica será conduzida daqui para frente e como o novo MinC dialogará com outras áreas do governo, que certamente manterão o tradicional apoio do PT ao software livre, fundamento imprescindível (justamente por sua maneira inovadora de lidar com os direitos autorais, sem nunca propor sua abolição) de vários projetos de inclusão digital de importância decisiva para a nova administração. A presidente Dilma declarou, em campanha: “quero ser presidente da inclusão social, mas também quero ser presidente da inclusão digital”.

Minha posição sobre o assunto é conhecida. Escrevi vários textos sobre direitos autorais, inclusive uma edição anterior desta coluna (09/07/2010), da qual cito o seguinte trecho: “Em artigo publicado há poucas semanas no Observer, John Naughton – professor da Open University britânica – afirma: ‘nossas leis de copyright estão agora tão risivelmente fora de contato com a realidade que estão caindo em descrédito. Ela precisam urgentemente serem reformadas para se tornarem relevantes para as circunstâncias digitais. O problema é que nenhum de nossos legisladores parece compreender isso, então isso não vai acontecer tão cedo.’ Temos oportunidade e legisladores [no Brasil] para fazer isso acontecer em breve. Por que não aproveitar? Por que se preocupar com intrigas pequenas, quando é possível fazer algo grande? Ou continuo esperando demais do Brasil?” Há, no próprio MinC, um excelente acúmulo de reflexão sobre o tema dos direitos autorais, levando em consideração a complexidade do problema e vários pontos de vistas conflitantes. Isso não pode ser esquecido agora, em busca de uma solução mais rápida e simples.

Pois não há soluções simples. O desafio digital é muito novo. Todos os dias aparecem utilizações surpreendentes da internet. Maneiras inéditas para se fazer cultura são inventadas e logo se transformam em motores da criatividade popular. Há poucas semanas (24/12/2010), aqui mesmo no Segundo Caderno, meu ídolo Leandro Sapucahy anunciava um novo projeto: “Muitos fãs pegam minhas músicas, juntam imagens, montam clipes e põem no YouTube. ‘Polícia e bandido’, por exemplo, tem dez clipes. Por causa dos meus dois primeiros discos, recebi muita música com temática parecida, porque achavam que ia gravar outro assim. Só que eu já estava em outro momento. Farei então um site. Selecionei 12 canções, vou recortar, pegar um minuto e meio de cada, escolher um grupo de garotos e cada um vai fazer um clipe e botar na rede. As músicas ficarão inéditas em disco.” Não sei se está claro para todo mundo, mas, para a Lei do Direito Autoral que temos agora, fãs não podem – sem autorização – pegar músicas dos outros para fazer clipes. Leandro Sapucahy poderia processar quem fez os clipes, ou o próprio YouTube por exibir esses clipes sem sua autorização. Mas o uso não-autorizado lhe deu ideia para um excelente projeto. Essa prática de fãs fazendo clipes é hoje tão comum, e tantos artistas a incentivam (pois os clipes viram divulgação para seus trabalhos), que a sociedade como um todo tolera o “desvio da lei”, contribuindo assim para o descrédito da legislação como um todo. Não existe democracia com lei desacreditada. Por isso a necessidade de uma revisão da lei, possibilitando (se as partes assim desejarem) a legalização do que hoje já é parte integrante e central da cadeia criativa contemporânea.

No site pessoal da agora ministra Ana de Hollanda há uma página para vídeos. O que encontramos por lá é material “do” YouTube, com recursos de “embedding” (quando “pedaços” de um site aparecem “dentro” de outros – prática também não prevista na Lei do Direito Autoral atual). A legislação atual é nebulosa. Não deixa claro o que podemos ou não publicar online, em que sites e em que circunstâncias.  Os vídeos são publicados com a melhor das intenções, para homenagear ídolos e divulgar seus trabalhos. Muitos artistas acabam aceitando que as coisas hoje aconteçam assim, sem apoio de uma lei clara. Por isso estamos todos (fãs, artistas etc.) desprotegidos, agindo no lusco-fusco de um arcabouço legal caduco. Precisamos de nova lei para nos proteger, também não criminalizando o que não consideramos crime, e encontrando maneiras ágeis de autorizar práticas comuns, sem atravancar os novos processos criativos já adotados pela maioria, e que podem ser de interesse de muitos artistas.

Claro: nada disso é contra os direitos de ninguém. Um autor vai ser sempre detentor dos direitos sobre suas criações. Ninguém pode “abrir mão” de seus direitos. Um autor, justamente por ser detentor direitos de suas obras, poderá, se quiser, autorizar previamente alguns usos dessas obras, facilitando por exemplo a criação dos clipes que fortaleceram os sambas e a carreira de Leandro Sapucahy.

direito autoral

27/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/07/2010

 

Até 28 de julho, está em Consulta Pública a proposta de revisão da atual Lei de Direitos Autorais, lançada pelo Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura. Todos podem participar. É só se cadastrar no site do MinC, fazer críticas, propor melhorias. Seria uma pena se pessoas ou instituições com opiniões divergentes não participassem do processo, alegando de antemão que tudo que o MinC propõe é “dirigista”. A proposta governamental é explícita quanto a seus objetivos: “incorporar um leque amplo e diversificado de sugestões com vistas a permitir o aprimoramento das políticas públicas e reduzir as possibilidades delas incorrerem em erros.” A recente discussão pública sobre o Marco Civil da Internet foi exemplo de mudança clara da visão inicial a partir das críticas feitas por vários grupos e indivíduos. Em editorial, a Folha de S. Paulo reconheceu: “O documento sofreu mudanças -e melhorou- ainda nesta etapa.” Conclusão: “O governo deve enviar o projeto de lei ao Congresso nas próximas semanas. Haverá oportunidade para aperfeiçoamentos na Câmara e no Senado, mas o texto, em linhas gerais, é satisfatório.” O mesmo pode acontecer com a Lei dos Direitos Autorais, se a sociedade assim desejar. Nada ainda está definido. Tudo pode mudar.

É um sinal muito positivo que um debate complexo, polêmico e sofisticado como esse, central para os destinos da cultura contemporânea, possa estar acontecendo de forma tão aberta e avançada no Brasil, dando exemplo para outros países. Em artigo publicado há poucas semanas no Observer, John Naughton – professor da Open University britânica – afirma: “nossas leis de copyright estão agora tão risivelmente fora de contato com a realidade que estão caindo em descrédito. Ela precisam urgentemente serem reformadas para se tornarem relevantes para as circunstâncias digitais. O problema é que nenhum de nossos legisladores parece compreender isso, então isso não vai acontecer tão cedo.” Temos aqui oportunidade e legisladores para fazer isso acontecer em breve. Por que não aproveitar? Por que se preocupar com intrigas pequenas, quando é possível fazer algo grande? Ou continuo esperando demais do Brasil?

A reflexão sobre os direitos autorais é uma das aventuras mais interessantes do pensamento humano. Sua história, que se confunde com o desenvolvimento da própria noção de autor, não começou hoje, nem vai ter ponto final agora. Vale a pena voltar a seus primórdios, citando novamente o texto de 1813 do nada stalinista Thomas Jefferson, explicando a opção da lei americana por diferenciar propriedade intelectual de propriedade de objetos físicos: “Se a natureza fez alguma coisa menos suscetível que todas as outras de ser transformada em propriedade exclusiva, essa é a ação do poder de pensamento chamada idéia, a qual um indivíduo pode exclusivamente possuir apenas enquanto mantê-la para si mesmo; pois no momento em que é divulgada, ela se força na possessão de todos, e quem a recebe não pode dela se desfazer. […] Aquele que recebe de mim uma idéia, recebe a instrução toda sem diminuir a minha; como aquele que acende a vela na minha recebe o fogo sem me escurecer.” Por isso ter um carro é diferente de ter um livro. Se alguém rouba meu carro, fico sem o carro. Mas se alguém me rouba um livro já lido fico sem o objeto de papel, porém seu conteúdo continuará presente em minha memória, já misturado às minhas próprias idéias, gerando novas idéias impulsionadas pela leitura.

Um carro não cai em domínio público. O objeto livro também não: pode ser herdado por várias gerações. Mas o conteúdo do livro passa a ser propriedade coletiva depois de determinado tempo, podendo ser usado por todos, em nome do bem comum. A lei de copyright seria uma concessão que a sociedade dá para os criadores poderem continuar criando, tendo por um tempo o monopólio do uso comercial dos seus trabalhos. Isso: por um tempo (na época de Jefferson, 14 anos). Depois voltariam necessariamente para o uso coletivo. A idéia de direito de autor, mais européia, é um pouco distinta, mas gera questionamentos semelhantes. Victor Hugo, por exemplo, considerava a possibilidade de que o direito das obras artísticas pudesse passar para os herdeiros dos seus criadores uma “idéia caprichosa e bizarra de legisladores ignorantes”. Ninguém precisa concordar com ele: suas palavras nos lembram que nunca existiu consenso neste debate, mesmo entre criadores que poderiam lucrar com isso.

Imagine o que Hugo e Jefferson pensariam da época pós-internet, quando meu fogo pode iluminar a vela de criadores de todo mundo num piscar de olhos, quando o raro se tornou abundante através cópias digitais baratas e perfeitas, quando o sampler já é há décadas motor da criatividade musical. Como diz John Naughton: para acabar com esses “problemas” é preciso desligar a internet. Ou como diz o editorial da Folha: “A insegurança jurídica […] não é desprezível. Criadores e gestores de conteúdo, desde o simples blogueiro aos maiores portais, encontram-se desprotegidos.” E também artistas, e governos, e toda a indústria cultural. Por que não tentar inventar a nova proteção, adequada aos novos tempos? A atuação de Gilberto Gil como ministro criou, dentro e fora do Brasil, a expectativa de que possamos apresentar, se não soluções definitivas, pelo menos novas maneiras de encarar os problemas colocados pela digitalização da cultura. Deveríamos aceitar esse desafio.


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