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clássicos XXI

28/01/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 20/01/2012

No final de 2011, Thales de Menezes, da Folha de S. Paulo, me fez a proposta: “Gostaria de convidá-lo para nos ajudar a eleger os primeiros clássicos da música (nacional e internacional) deste século. A ideia é apontar dez músicas ou álbuns de 2000 para cá que você acha que já se tornaram clássicos, que serão reconhecidos como tal daqui a 20 anos”. Aceitei o desafio, até para me obrigar a voltar a escutar música de maneira “adequada”, atividade em segundo plano na minha vida desde o aparecimento do YouTube (passei a “ver” músicas em computadores com precária qualidade sonora). Depois que fiz minha seleção soube que a ideia da Folha mudara para uma eleição exclusiva de canções. Parece mudança boba, mas não é (um álbum pode ser um clássico sem nenhuma canção clássica). Pena, não tive tempo para novas escolhas. Não devo ter sido o único a desistir. A matéria com o resultado ainda não foi publicada. Mas o tempo passou e constato que fiquei apegado à minha lista. Resolvi divulgá-la tipo bloco do eu sozinho.

Antes confesso: adoro essas listas, mesmo tendo deixado de acreditar em clássicos. Claro que ainda há muitos álbuns e canções excelentes sendo produzidos. O problema parece ser mais de fartura do que de carência criativa. Fartura também de canais de comunicação onde as novidades circulam de forma cada vez mais segmentada. A constituição do cânone clássico pressupunha espaço comum de consagração artística, ou instâncias de legitimação mais disseminadas, com autoridade respeitada fora dos mundinhos cujo conjunto é chamado de internet ou novas mídias. Minha lista tinha um objetivo secreto: usar a velha mídia de papel para divulgar meus clássicos particulares; uma tentativa de tirá-los dos seus guetos. Porém, ao fazer as escolhas, percebi que cada uma das obras eleitas conquistou lugar na minha lista não apenas por méritos individuais e sim por representar tendências coletivas, que valorizam processos e não produtos, o que também entra em choque com a ideia de clássico definitivo.

Espero que tudo fique mais claro ao revelar minha lista – que não tinha ordem de preferência. Comecei com o óbvio, pois acabara de escrever a coluna sobre meus discos preferidos do ano passado: “Recanto” e “Smile”. O disco dos Beach Boys já era clássico há mais de quatro décadas, mesmo sem ter sido propriamente lançado – e quem pode dizer que a mixagem de 2011 é a versão definitiva? Por seu lado, “Recanto” colocou a MPB para funcionar no fluxo não-linear da eletrônica contemporânea. Espero o remix que Diplo prometeu fazer para “Miami Maculelê”. Talvez outros DJs-neguinhos entrem na brincadeira acabando de vez com o limite entre “Tudo dói” e “Casa das primas” (que, ao que tudo indica, antes de ser funk era sertanejo de Santa Catarina).

Não consegui eleger apenas álbuns ou canções. Poderia ter produzido uma lista só de mixtapes, seleções de músicas feitas por indivíduos ou coletivos que mesmo com sua relação precária com legislações do direito autoral se tornaram um dos principais caminhos para a popularização dos sucessos na era da cultura digital. Para representar as mixtapes escolhi “Piracy funds terrorism”, de Diplo e M.I.A., que mereceria ser clássica apenas por seu título, mas ainda fez o serviço de conectar tecnoperiferias do mundo inteiro, levando suas músicas para as pistas de dança centrais. (Aproveito a deixa para vender outro peixe: minha mixtape clássica deste início de 2012 é a que Spoek Mathambo fez para o site MTV Iggy, com novidades espetaculares do pop africano – Art Melody, de Burkina Fasso, já é meu herói.)

A primeira canção que aparece na minha lista é “Minha mulher não deixa não”. Canção? Aquilo é outra coisa, está além da música, é jogo de multidão. Não escolhi a versão do Reginho, nem a resposta do 3 na Palomba (seu CD “Volume 3”, com versões de “Farofafá”, “Tiririca”, “A véia debaixo da cama”, além da sugestão pirateira “pode copiar!!!” impressa na capa, também se tornou meu clássico). Bom mesmo é o conjunto de milhares de vídeos publicados online, com gente sempre se acabando de dançar e rir. Música é mesmo a maior desculpa para a diversão.

Outras canções entraram na minha lista representando estilos musicais decisivos para a trilha sonora dos tempos atuais e vindouros. “Gasolina”, do Daddy Yankee, fez o reggaeton popular até na Malásia ou em Goiás. “Backward”, de Kode 9 & The Space Ape é minha preferida do dubstep (hoje onipresente na música mais pop, de Britney a Korn). “Heartless”, do Kanye West, foi escolha esteticamente incorreta para representar a cada vez mais exuberante riqueza do hip hop – e viva o autotune, o instrumento musical mais amado/odiado dos nossos novos tempos pós-canção.

De volta a álbuns nada típicos (e mesmo anticlássicos) quis provocar ouvidos alheios com o “Congotronics”, do Konono Nº 1 (música pós-pop congolesa que fez sua primeira apresentação internacional no Percpan brasileiro), ou “E ponto final”, da banda Tecnoshow (que lançou Gaby Amarantos e é CD pioneiro do tecnobrega), ou – único da lista baseado em guitarras – “White 1”, do SunnO))) (no futuro o rock será apenas um “drone”).

Fico alegre imaginando o mundo maluco que teria essas músicas como clássicos consensuais. Ainda bem que nem eu nem ninguém tem o poder de impor nossos gostos para toda gente. De acordo? Ainda podemos, ou seria desejável, chegar a qualquer consenso sobre essas coisas?

deixa não/sim

22/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 31/12/2010

Último dia de 2010. A Modern Sound, loja de discos de Copacabana, encerra suas atividades. A Blockbuster americana entrou com pedido de falência este ano. Final de uma época. Lembro das minhas viagens de adolescente, do Rio de volta para Brasília, com LPs importados carregados cuidadosamente na sacola da Modern Sound – medo do vinil empenar e assim perder a grana de muitas mesadas. Estranho, agora me dou conta: nunca mais tinha comprado nada ali. E nas minhas mais recentes viagens internacionais trouxe pouquíssimos CDs. Meu som está quebrado, não tem peça para reposição e fico com preguiça de tentar resolver o problema. Não baixo música, escuto quase tudo que me interessa via YouTube, ou sites de streaming. Nem penso em arrumar mais espaço em prateleiras (na verdade no chão da minha casa, onde pilhas de CDs e LPs atravancam todos os caminhos) ou nos discos rígidos para armazenar pesados arquivos sonoros. Tudo está na “nuvem”, abençoada nuvem, facilmente navegável com a ajuda do Google. Esses meus novos hábitos não são minoritários. O fechamento da Modern Sound é mais uma prova de que todo mundo passou a consumir música online.

Ou não. A internet não é a única culpada. O buraco do modelo de negócios fonográfico é bem mais embaixo, ou acima e por todos os lados. E também não é só questão de economia. Vivemos uma grande transformação cultural no modo como nos relacionamos com a música. Mais precisamente: voltamos ao padrão básico de consumo musical da humanidade, aquele que prevaleceu na maior parte das culturas e mesmo na história da chamada Civilização Ocidental até pelo menos o início do Século XX. Música quase sempre foi um bem efêmero, sem registros físicos (mesmo partituras são invenções recentes). Só com a chegada dos toca-discos e depois dos gravadores é que isso mudou e as pessoas aprenderam a comprar discos e fitas para escutar em casa na hora que sentissem necessidade. Mesmo durante o tempo de império do fonograma, as comunidades que ainda produziam “folclore” tinham uma outra relação com a arte sonora, nunca tratada exatamente como Arte. Não havia divisão clara entre quem tocava e quem escutava, tudo era feito na hora, mais ou menos improvisadamente, com autoria coletiva. A idéia de se registrar aquilo para escutar depois, fora da festa, não fazia sentido. Para escutar novamente aquela música, ou para fazer novamente aquela música, a gente precisava esperar por novas festas.

Quando passeio pelo YouTube, não posso deixar de pensar: eis o novo folclore. Como diz o Kraftwerk: “music, non-stop”. Festa, non-stop, tanto em termos geográficos quanto temporais. Todo mundo fazendo música, todo mundo fazendo clipes para as músicas dos outros, todos os quartos do mundo unidos por web-cams numa produção musical/dançante/festiva constante e avassaladora. Ninguém se contenta apenas em ouvir a música: é preciso expor para o mundo sua própria interpretação sonora/visual/coreográfica daquele hit do momento, numa conversa musical sem fim. Hit: não é mais questão de discos vendidos, mas sim de “views”, audições, número de clipes feitos por fãs, o que pode gerar dinheiro com shows, pois os shows são materializações – também efêmeras, mesmo quando registradas por milhões de celulares – da festa que acontece na rede.

O hit do momento, a música que vai sacudir o Brasil neste verão é “Minha mulher não deixa não”. Fico na dúvida até se é música, e aqui não vai nenhum juízo de qualidade artística. Acho que é mais um mote, um tema para improviso e diversão das massas. Procure por esse título no YouTube. Você vai encontrar milhares de vídeos. Há a música tocada em todos os ritmos imagináveis, com muitas letras diferentes. Há tecnobrega, forró, samba, funk, sertanejo. Há respostas para a letra “original” (mas nesse caso, ninguém sabe qual a verdadeira origem), inclusive dizendo o oposto: “Minha mulher não manda em mim“. Isso sem contar com os vídeos que apenas criam novas imagens para uma das versões da música, geralmente com gente se esbaldando de dançar, em seus quartos, quintais e ruas de todo o Brasil. É uma grande brincadeira coletiva, uma explosão de criatividade jocosa, uma gargalhada eletrônica juntando incontáveis risadinhas. (E, claro, para a atual Lei do Direito Autoral, toda essa brincadeira está fora da lei.) Na vitrola, e mesmo na TV, perde grande parte da sua melhor graça.

Diante dessa saudável bagunça toda, e do fechamento da Modern Sound, resta a pergunta: o disco acabou? Claro que não! Sei lá como vai funcionar o negócio, mas nunca escutei tanto disco bom recém-“lançado” para vendas em canto nenhum. Como o maravilhoso Mafaro, de André Abujamra, um dos meus preferidos de 2010. Diz a letra da sua faixa “Daunloudaram”: “Ei tudo bom / Quem sabe algum dia alguém / escute o seu som / Ei num esquenta, esquece / Já baixaram seu CD inteiro na / internet”. Tomara que baixem mesmo, e comprem, e façam vídeos incríveis para cada música. (Tomara que apareça um jeito do artista ganhar dinheiro com isso.) Motivos para a festa não faltam no disco. Festa de muitas fantasias étnicas: do afro-beat à farra árabe ou cigana, tudo linkado pela luz da cauda da flecha de Oxossi ou pela proteção de Logun-Éde.

André se explica: “Mafaro quer dizer Alegria na língua do Zimbabwe. Este CD é para aceitar a alegria.” Tudo muda o tempo todo. Que todo mundo, incluindo meu querido Pedrinho da Modern Sound, fique protegido da tristeza e encontre motivos para alegria nova em 2011. E depois.


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