Posts Tagged ‘o mistério do samba’

samba francês 2

29/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 28/11/2014

A coluna da semana passada terminou com Alejo Carpentier, o escritor cubano, solto em Paris. Ou ainda em Havana, iniciando com amigos o afrocubanismo, uma reviravolta na consciência local, valorizando a cultura negra que antes era motivo de vergonha para a elite. Algo parecido com o que aconteceu no Brasil na mesma época: a identidade nacional se construiu em torno daquilo até então desprezado. Incrível como as mesmas figuras francesas têm local de destaque nessas transformações cubanas e brasileiras.

Exemplo, retirado do livro “Nacionalizando a negritude – afrocubanismo e revolução artística em Havana, 192-1940”, de Robin Moore: “Alejo Carpentier, um dos primeiros defensores do modernismo afrocubanista, decidiu apoiar o movimento depois de ter escutado as composições influenciadas pelo jazz de Darius Milhaud.” (Comprovando essa informação Moore cita artigo de Carpentier em jornal de 1925 elogiando guajira, bolero e clave.) Como hoje conhecemos bem, sobretudo depois do lançamento de “O boi no telhado”, livro organizado por Manoel Aranha Correa do Lago, além de jazz, sambas, polcas e maxixes brasileiros foram citados na obra de Milhaud, que morou no Rio, de 1914 a 1918, como secretário do poeta e diplomata Paul Claudel. Sabemos também como “O boi no telhado”, sucesso carnavalesco de 1918, virou nome de um dos principais clubes noturnos da Paris vanguardista. Uma Paris que consumia igualmente música cubana, em estabelecimentos como o Melody’s Bar e o Cabaña Bambú, localizados no bairro de Montmartre.

Em “O mistério do samba”, eu comento a importância enorme do poeta francês Blaise Cendrars para a “descoberta do Brasil” por modernistas como Mário e Oswald de Andrade (o livro de poesia “Pau-brasil” é explicitamente dedicado “a Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”), além de apresentar Donga para Prudente de Morais Neto, que depois leva o novo amigo – e Pixinguinha, e Patrício Teixeira – para tocar samba para Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.

Os franceses continuam consumidores ávidos de músicas (pop ou tradicional) das mais variadas procedências geográficas, e cuidam de redistribuir as melhores informações coletadas para o resto do mundo. No meu “avant-propos” para a nova tradução francesa de “O mistério do samba” por falta de espaço nem fiz os devidos agradecimentos para parisienses que não estão citados no livro, mas que foram centrais para minha própria descoberta de uma maneira de olhar/pensar o Brasil e a música brasileira, em todo seu cosmopolitismo. Então agradeço por aqui ao jornalismo musical praticado na revista “Actuel” e no jornal “Libération” nos anos 1980, desbravadores das fronteiras, naquele tempo quase impenetráveis (não havia internet popularizada), de um ambiente sonoro que quase ficou conhecido como “sono mondiale”. Sempre lamentei que o termo “world music”, bem mais rígido, tenha se tornado o padrão hoje. Sinal da perda de protagonismo francês na cultura internacional. Pena. É quase sempre empobrecedor (a não ser em raros monólogos geniais) ter apenas um ator (e uma única língua diplomática) em cena.

Ainda guardo muitos recortes das colunas “Selection disques noir”, “Selection soul”, sempre bem ecléticas, que Philippe Conrath assinava no “Libération”. Tenho igualmente minha coleção de “Actuel”, primeira revista a colocar – por exemplo – o raï, pop argelino, na capa, como se fosse a música mais popular do planeta. Sinto falta do espírito aventureiro e globalista do pessoal da “Actuel”. Não há hoje publicação semelhante, cobrindo o que acontece de interessante em todos os continentes, das cidades de Madagascar à floresta amazônica, passando pelo estúdio parisiense de Martin Meissonier, produtor de King Sunny Adé, Khaled e outros nomes que deixaram de ser “exóticos” por causa de seus discos. Não posso me esquecer também de Rémy Kolpa Kopoul, que tantos bons serviços prestou (e continua a prestar) para o pop brasileiro em todas suas vertentes, inclusive trazendo Kassav’ e Salif Keita, entre muitos outros, para tocar por aqui.

Viajando pela África, sempre fiquei impressionado com o trabalho de uma rede de centros culturais franceses, capazes de impulsionar o desenvolvimento de fenômenos até então desvalorizados por instituições locais, como o rap moçambicano ou uma certa pintura congolesa (nomes como Chéri Samba, que também foi parar na capa da “Actuel”). O equivalente aqui no Rio é a biblioteca da Maison de France, local também central na minha formação e de tantos cariocas. Acho que ainda está em reforma. Quando reabrir agradecerei pessoalmente a seus funcionários, doando exemplar de meu samba em francês. (O exemplar do MIS já está prometido.)

samba francês

22/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/11/2014

A tradução francesa de “O mistério do samba” acaba de ser publicada pela Riveneuve, editora parisiense. É boa maneira de comemorar os vinte anos da minha defesa da tese que deu origem a esse livro. Já havia edições em inglês, italiano e japonês, mas fiquei todo este tempo torcendo pelo lançamento na França. Afinal, em suas páginas descrevo processo de construção de identidade nacional-popular brasileira que não teria acontecido, com toda sua originalidade moderna, sem a influência de Paris.

Sorte: meu tradutor foi o antropólogo Jérôme Souty, autor de “Pierre Verger – do olhar livre ai conhecimento iniciático” (editora Terceiro Nome), obra que já analisa invenções franco-brasileiras. Quem fez nossa apresentação foi Milena Duchiade, através do telefone fixo da sua livraria, a Leonardo da Vinci, um dos mais importantes pontos de encontro de ideias do Rio de Janeiro. Sempre que aparecia por lá, ela me incentivava a batalhar pela divulgação internacional dos meus livros. Como constatava minha inabilidade nesse território, Milena tomou a iniciativa generosa de me colocar em contato com Jérôme, que por sua vez conhecia os editores da Riveneuve e o programa para traduções da Fundação Biblioteca Nacional. Para nossa surpresa, a partir dali tudo aconteceu bem rápido, como nos encontros França/Brasil descritos em “O mistério do samba”.

Escrevi pequeno “avant-propos” para a nova publicação. São apenas cinco parágrafos (um deles lamentando a impossibilidade de Gilberto Velho folhear esta versão da tese que orientou), mas consegui citar novamente lista muito parcial de convidados que provaram feijoada (e compotas de bacuri) no apartamento parisiense de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade em 1923: Cocteau, Léger, Brancusi, Satie e, claro, Cendrars. Quando me deparo com esses nomes, o que mais me intriga é outro mistério, paralelo ao do samba: quem cozinhava? Oswald? Tarsila? E as compotas de bacuri (logo bacuri!), hoje ainda difíceis de serem encontradas no Rio de Janeiro? Eram bagagens de viagens em navios transatlânticos?

O “avant-propos” também inclui uma brincadeira que aqui transformo em pergunta implicante: como Woody Allen não incluiu essas feijoadas em “Midnight in Paris”? Há negros no filme “Manhattan”? Em “Midnight to Paris” eles aparecem em papéis secundários e cenas rápidas. Mas tudo ali se passa como se a gênese da era das vanguardas fosse resultado de “affair” privado entre artistas dos EUA e europeus, narrativa estabelecida como oficial nas histórias do modernismo (que apenas recentemente estão sendo reescritas para incluir mais diversidade), até outro dia percebido como criação daquilo que depois apelidamos de Primeiro Mundo. Perdemos assim a noção do grau extremo de multiculturalismo nas encruzilhadas artísticas da Paris do início do século XX.

Fico curioso para saber se os artistas brasileiros ou cubanos, entre muitas outras nacionalidades, que viviam em Paris naquela época eram vistos por europeus como mais exóticos ou periféricos do que os americanos do norte. Lembrando: só mesmo depois da Segunda Guerra é que os EUA se transformaram em Império, vendendo também sua arte como fenômeno global (por exemplo, e sem juízo de valor, fazendo com que Gertrude Stein tenha ficado mais conhecida mundo afora do que Oswald de Andrade). Mas qual era o lugar do “resto do mundo” em torno dos anos 1920? Eram tempos em que a “descoberta” da estética africana por Picasso já deixava de ser um choque e virava modismo que tornou possível que movimentos intelectuais em outras partes do mundo valorizassem aspectos “negros” de suas culturais locais. Sim, o jazz fez sucesso em clubes parisienses. Mas fez mais sucesso do que a infinidade de ritmos apresentados por bandas cubanas?

O choque vanguardista de Paris foi impulso decisivo para que os modernistas brasileiros descobrissem também a riqueza do nascente samba e das tradições africanas neste nosso lado do Atlântico. Um dia pretendo comparar melhor o que aconteceu por aqui com situações muito semelhantes em países da América do Sul e do Caribe. Tenho mais informações sobre o exemplo cubano. Um livro como “Nacionalizando a negritude – afrocubanismo e revolução artística em Havana, 1920-1940”, de Robin D. Moore (University of Pittsburgh Press, ainda não lançado no Brasil), revela a importância que a estadia parisiense teve para a geração de Alejo Carpentier voltar para Cuba valorizando uma cultura negra que era ainda percebida com vergonha ou preconceito pela elite local, até então encantada pela imaginária pureza branca da alta cultura europeia. Assunto de sobra para a próxima coluna.

o resto do mundo

01/06/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 31/05/2013

Em 2002, a editora da Universidade das Índias Ocidentais, que tem campi na Jamaica, em Barbados e em Granada, publicou a tradução para inglês de meu livro “O mistério do samba”. Fui para Kingston acompanhar o lançamento. Conheço outros brasileiros com vistos jamaicanos carimbados no passaporte. Suas viagens foram motivadas ou por amor pelo reggae ou por desejo de resort e água fresca. Eu conheci o estúdio (ainda pré-digital) de Sly Dunbar, dei entrevista de rádio intercalada por seleção musical (toquei o samba-reggae do Olodum), mas o lugar onde passei mais tempo foi em sala de aula. Conheci vários professores com trabalhos fascinantes – repensando o lugar do Caribe no mundo – e desconhecidos no Brasil. Isso me fez ter consciência do insólito da minha condição: a recíproca certamente não era verdadeira – qual jamaicano teve livro lançado por editora universitária brasileira? E por que a resposta mais provável (“nenhum”) não nos causa mais espanto?

Estamos acostumados a só prestar atenção em pensadores estrangeiros se eles nos são apresentados por prêmios como o Nobel ou por universidades americanas ou europeias. Mesmo com relação à cultura chamada de popular, os canais de comunicação diretos com países de mesmo IDH são raros. Tudo tem que passar antes pela aprovação das metrópoles: até o kuduro (nascido em Angola, terra com intercâmbio cultural secular com o Brasil) precisou tocar em Coachela para só depois chegar na Fosfobox. Quando o assunto é produção acadêmica, o ambiente fica tão rarefeito quanto o ar no topo do Aconcágua.

Empolgado, voltando da Jamaica tentei lançar por aqui livro da Carolyn Cooper sobre letras de dancehall ou feminismo caribenho. Lancei também a ideia de seminários anuais com o objetivo de construir pontes com a vanguarda do pensamento de um país diferente por edição. Nada foi muito adiante. Muitos textos que escrevi para esta coluna provam que não abandonei esse projeto, até porque a evolução recente do mundo aponta para uma realidade cada vez mais descentralizada, onde a inovação de mais futuro – vide o modelo de negócios do pop coreano – aparece fora dos tradicionais centros de poder cultural e econômico. O Brasil mesmo – vide, por exemplo, os últimos números de “melhores do ano” da revista Art Forum (para citar o poder ainda considerável de uma publicação do ex-Centro) – ganhou projeção inédita entre caçadores de tendências de todos os tipos, da aviação à literatura.

A fragmentação da produção do novo vai ficar mais radical. Não comecei falando de Jamaica à toa. Lembrei minha viagem “universitária” de 2002 quando outro dia recebi link para matéria (publicada em site do Primeiro Mundo) sobre o simpósio “Desenvolvendo o Caribe” que aconteceu no mês passado em Kingston. Foi ali que descobri o nome de Julian Jay Robinson, ministro de Ciência, Tecnologia, Energia e Mineração do governo jamaicano. As políticas que defendeu no simpósio parecem banais (para quem está acostumado com o mundo pós-TED): transformação da sua ilha em território acolhedor para start-ups tecnológicas, com banda larguíssima e estímulo para “open data” e “open government”.

Certamente: a receita é comum (o que inclui também diagnósticos semelhantes para problemas sociais e econômicos), mas o modo variado como ela está sendo aplicada pelo mundo afora merece nossa total atenção. Estamos acostumados a fazer comparações apenas com o “caso americano”, o “caso alemão”, quando muito com o “caso japonês” e talvez as respostas que procuramos tenham mais a ver com experiências que estão sendo feitas agora em realidades bem pouco óbvias. Nesse seminário sobre o desenvolvimento do Caribe, o mais interessante era ouvir relatos sobre lugares que antes nunca eram lembrados quando o debate tinha como foco políticas públicas ou empresariais de ponta.

É isso: para os países caribenhos a lição mais importante pode vir, quem diria, do Quênia. Uma das estrelas do simpósio foi Paul Kukubo, CEO do Conselho para Tecnologia da Informação e Comunicação baseado em Nairobi, que acompanhou de perto o desenvolvimento do sistema de transferência de dinheiro por celular (créditos de tempo de ligação convertidos em créditos monetários, usados principalmente para trabalhadores das periferias urbanas mandarem dinheiro para parentes que moram em aldeias rurais sem banco nenhum nas redondezas) ou do tablet popular construído para atender necessidades bem africanas.

Claro: muitas dessas tentativas vão fracassar. Mas diversidade é boa para isso: quanto mais gente diferente tentando coisas diferentes, mais chance de acerto. Por isso é cada vez mais importante ficar olhando para onde “ninguém” mais olha

agradecimento

21/04/2012

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 20/04/2012

Peço desculpas, mas preciso repetir aqui o último parágrafo dos agradecimentos que abrem o meu livro “O mistério do samba”, de 1995: “sou grato a meu orientador, professor Gilberto Velho, pelo estímulo intelectual infalível, pela amizade inquebrantável, pelos prazos inevitavelmente rígidos, pelos telefonemas de madrugada (dez horas da manhã para mim é madrugada) e, principalmente, pelo pioneirismo com que instituiu os estudos da complexidade na antropologia. Ficaria muito honrado em ver meu trabalho considerado um pequeno desenvolvimento de algumas das ideias originais que integram sua obra.” Gilberto ficou um tanto constrangido, considerou minha declaração exagerada, e fora do tom academicamente correto. Não mudei nenhuma vírgula. Continuo tendo a certeza de que minhas palavras eram totalmente justas.

Ainda bem que expressei minha gratidão antes de sua morte, ocorrida no sábado passado. Não me interessam elogios póstumos. Porém, ao reler aquilo que escrevi anos atrás, percebo que fui até recatado, e tal constatação nada tem a ver com o doloroso luto: sei agora que tudo o que fiz depois, mesmo longe da antropologia, segue sua orientação, e procura olhar o mundo com as ferramentas que sua obra me forneceu. Se desconfio do simples, do homogêneo, e quero sempre revelar complexidade e heterogeneidade no mundo, a culpa é do Gilberto. Foi ele que treinou meu faro por mediadores, por pessoas que se alegram ao colocar estilos de vida diferentes em contato (e procuro ser uma delas em todos meus trabalhos, mesmo nesta coluna). Sua orientação me fortaleceu para encarar o desafio das cidades, das identidades nunca permanentes, das metamorfoses vibrantes da vida contemporânea, sem refúgio fácil naquilo que consideramos familiar.

No agradecimento de 1995, destaquei o “pioneirismo com que instituiu os estudos da complexidade na antropologia”. É isto mesmo: não estava falando da antropologia brasileira, e sim da antropologia mundial. Muitas vezes somos tacanhos por não reconhecer inovações produzidas ao nosso redor, em nosso país. Sendo claro: Gilberto não importou ideias estrangeiras, adaptando-as às necessidades nacionais. Seu trabalho principal foi o desbravamento de um novo campo de estudos dentro da antropologia, sem similar “lá fora”. Encontrou inspiração em conceitos e práticas de uma vertente da sociologia dos EUA (a turma de BeckerGoffman, herdeira de mestres alemães como Schutz e Simmel, talvez os autores mais amados por Gilberto) para inventar uma maneira de estudar antropologicamente a realidade urbana. Naquela época, final dos anos 60, era raro encontrar no mundo etnógrafos pesquisando em suas próprias cidades. Até hoje, em vários países, antropologia urbana é “tendência”. O Brasil, seguindo os passos pioneiros do Gilberto, acumula há décadas um rico corpo de investigação antropológica sobre suas metrópoles.

Pioneirismo não era apenas fazer “trabalho de campo” nas cidades. A escolha dos temas que seriam estudados também foi ousada. Gilberto falava em complexidade, muito antes que os chamados estudos da complexidade virassem moda na física, economia ou informática. E procurava o complexo onde menos se esperava: num prédio de conjugados de Copacabana ou entre aristocráticos consumidores de drogas. Desde o início de sua carreira como professor, passou a orientar muitas teses com objetos que nunca tinham sido alvo de atenção acadêmica, conectando arquitetura e antropologia, psiquiatria e antropologia e por aí afora. Olhando a lista de orientações de seu currículo Lattes, encontramos de heavy-metal suburbano carioca a lan-houses em Porto Alegre.

Foi esse olhar atento para o não convencional que me levou a fazer antropologia. E não pensei duas vezes ao propor meu tema de mestrado: baile funk. Se até hoje, depois de tanto sucesso, funk ainda é vítima de tanto preconceito, imagine em 1986. Com Gilberto, eu tinha incentivo para estudar algo considerado na época sem importância ou desprezível. E também para mudar radicalmente de assunto e abordagem logo depois no doutorado, quando fiquei fascinado por um encontro entre Pixinguinha e Gilberto Freyre em 1926 na Rua do Catete, o embrião de “O mistério do samba”. Gilberto (Velho) era sim controlador, estabelecendo regras detalhistas para a execução da pesquisa de seus orientandos (os telefonemas de manhã cedo checavam se já estávamos trabalhando). Mas seu controle era paradoxal: no lugar de buscar resultados previsíveis, a disciplina deveria produzir o inesperado.

Quando convidei Gilberto para conhecer um baile funk, ele respondeu que só iria dentro de um papamóvel (aquele carro usado pelo Papa). Claro que acabou indo conhecer as terras do DJ Marlboro sem proteção alguma. Esse humor era típico do Gilberto, estratégia sempre usada para tirar seus interlocutores da zona de conforto. Nunca dizia quem eram os outros convidados dos jantares em sua casa. Quando muito falava que esperava uma antropóloga húngara ou a rainha da Jordânia. Lá chegando encontrávamos pessoas totalmente diferentes das anunciadas. Uma vez ele disse que eu jantaria com antropólogas portuguesas que estudavam o hip hop de Lisboa. Para variar, conheci realmente especialistas em rap lusitano. Como vou sentir falta dessas surpresas. Minha missão é procurar maneiras de tornar o mundo cada vez mais alegremente imprevisível. Assim continuarei empenhado no desenvolvimento da obra do Gilberto.

boas traições/traduções

17/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/12/2011

No número da revista Adbusters que trazia a convocação para a ocupação de Wall Street, os artigos que realmente me impressionaram tinham assinaturas de Manuel Castells e Franco Berardi Bifo. O sociólogo espanhol Manuel Castells tem boas conexões brasileiras. Prova: o posfácio que escreveu para a biografia de Ruth Cardoso. Ou o prefácio de FHC para “A sociedade em rede”, seu clássico cibercultural. Na Adbusters, o texto de Castells analisava as “acampadas” das praças espanholas que serviram de inspiração para os ocupantes americanos. Não escondia sua simpatia: os objetivos do movimento – entre eles: controles dos bancos, reforma fiscal e abolição da Lei Sinde (que tenta impor, em nome da defesa dos direitos autorais, várias restrições para as liberdades na internet) – são julgados “concretos e razoáveis”. E declarava: “partidos e instituições vão ter que aprender a conviver com essa sociedade civil emergente.”

O texto de Franco Berardi – filósofo, escritor e agitador cultural italiano – tinha tom distinto, que reflete a trajetória política de seu autor. Bifo, apelido que virou parte do seu nome, participou do grupo Potere Operario, do movimento Autonomia, fundou a mítica Radio Alice (a primeira rádio livre da terra de Berlusconi), trabalhou com Félix Guattari, e recentemente publicou livros como “Mutação e cyberpunk” ou “Neuromagma”.

Preciso citar inteiro o primeiro parágrafo do seu artigo na Adbusters, para o leitor tremer nas bases: “Gostaria de falar sobre algo que todos sabem, mas que, pelo que parece, ninguém tem a ousadia de dizer. Isto é, que o tempo da indignação acabou. Aqueles que ficam indignados estão já começando a nos entediar. Mais e mais, eles nos parecem como os últimos guardiões de um sistema podre, um sistema sem dignidade, sustentabilidade ou credibilidade. Nós não temos mais que ficar indignados, nós temos que nos revoltar.”

Gostei de fazer essa tradução totalmente livre de algo que foi escrito em italiano, via inglês canadense. Não apenas por não ter paciência com indignação, muitas vezes apenas uma fantasia politicamente correta para a burrice que se acredita inteligente. Mas por ser uma maneira de retribuir a tradução que Bifo fez de “O mistério do samba” para italiano.

Esse meu livro teve três traduções, todas envoltas em alegríssimos mistérios. A primeira foi para inglês, trabalho do historiador americano John Chasteen, resultando numa versão bem melhor que a brasileira. Essa tradução foi também publicada pela editora da University of West Indies, da Jamaica e de Granada, cujo lançamento me levou para Kingston, onde provoquei polêmica com palestra que elogiava o ragga, tido como lixo cultural por grande parte da elite intelectual local (gente culta geralmente gosta de raiz, lá de reggae de raiz). A segunda tradução, para o japonês, foi feita do inglês pelo adorável Musha, o mesmo que gravou disco cantando uma versão bossa nova de Psycho Killer, a música dos Talking Heads.

Caminhos muito malucos. Porém, nada se compara com a surpresa que me causou a tradução italiana. Quando soube que ela tinha acontecido, o livro estava pronto para ir para as livrarias. Bifo mandou email para me dar a boa notícia e passar um contrato para assinatura. Eu sabia bem quem ele era, admirava vários de seus trabalhos, mas nunca tivemos contato pessoal anterior. Fiz a pergunta mais óbvia: como descobriu o meu livro? Respondeu que comprou numa livraria em Belo Horizonte (!). Acrescentei inocente: “eu não sabia que você falava português…” Não estava preparado para o que iria ouvir: “Não falo, aprendi a traduzir por causa do seu livro.”

Como diria Jorge Benjor: que maravilha! Leio italiano com alguma dificuldade, mas consegui entender o texto da contracapa, que traduziu meu livro também para a revolta pós-Autonomia: “‘Il mistero del samba’ é um livro conta a ideologia da identidade, contra as ilusões perigosas da autenticidade local e das ‘raízes’ que têm tanto peso no modo atual de relacionamento com a hibridação, a mestiçagem, a contaminação que representam, não só no Brasil, o futuro da humanidade.” Na Itália, o livro ganhou um subtítulo-manifesto: “contaminação e fantasmas da autenticidade”. Fiquei todo satisfeito com a comprovação de que não temos nenhum controle sobre a maneira como nossos escritos são lidos. A única pessoa que tinha intuído o lado “occupy” do meu samba foi Eduardo Viveiros de Castro, que participou da banca da minha defesa de tese, e brincou sério: “você escreveu sobre o rock.” Rock sem raiz. Não sei qual foi a repercussão do livro na Itália, nem tenho ideia de quantas cópias vendeu por lá. Apenas recebi uma carta do filósofo Mario Perniola, outro de meus ídolos, com outros elogios. Missão cumprida.

Já que me perdi da Adbusters, volto para a América do Norte por outro caminho, outra revista. A Adbusters é divertida, provoca tsunamis meméticos, está agora na boca do povo. No entanto, para entender o que está acontecendo hoje no mundo, a revista que considero ideologicamente mais interessante, apesar de linha editorial e administração mais caretas, se chama Make (as diferenças começam no site: makezine.com; a Adbusters é .org). Em vez de apenas se indignar, faça. Faça você mesmo. Minha profecia: depois da ocupação será a hora de fazer e refazer. Não haverá maneira de conter um movimento feito por gente que faz tudo, sem intermediários. Mais Make na próxima coluna.


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